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sexta-feira, 26 de abril de 2013


O VOO DO MILHAFRE


Por que estão sós o homem que caminha com as mãos nos bolsos, a mulher que faz as palavras cruzadas, o bêbado que folheia o jornal enquanto acende mais um cigarro? Por que não se sentam à mesa e partilham angústias? Por que te afastas tu deles enquanto neles projectas a tua solidão? Olhas-te no reflexo das águas e perguntas. Para nenhuma destas questões obténs resposta nos livros. Somente o pinheiro isolado que vigia o vale, enquanto sobre ele a lua estende um manto de sombra, somente o pinheiro isolado pode oferecer-te alguma sabedoria sobre o assunto. Com o seu silêncio, ele desperta em ti o medo que um dia disseste estar na origem da solidão. A solidão é o ovo onde o ódio germina, deves quebrar o ovo antes que o ódio nasça. Senta-te à mesa com o homem que caminha, a mulher que joga, o bêbado que lê. E deixa que sobre a mesa surja o amor encerrado na palavra partilhada.



Os mosquitos atacam-te, deslocam os poros na superfície do corpo, enxames de abelhas perseguem-te, um ruído permanente na cauda do tempo. Os dias passam, e as mãos é como se não obedecessem à vontade. Foram tantas as traições, que se torna imprudente confiar no sossego das águas. Pára. Começa por não mais te traíres a ti próprio. Mergulha o rosto ardente na seiva da serra, deixa que a água se misture com o teu sangue, traz a fonte à boca, respira fundo, estende as mãos. Diz: amo-te. Não temas. Um pássaro canta na casa abandonada, uma flor desabrocha na Primavera intermitente, aqui terminam as estradas alcatroadas, aqui começam os trilhos percorridos por pastores desavindos, ovelhas tresmalhadas, cães cruzados. Os lobos ficaram na cidade, deixa-os dormir embalados pelo próprio uivo. Já nada te importa, nada te comove. Apenas o saber-te aí, derradeira resposta para as perguntas nunca feitas. Há-de chegar o dia, não duvides, em que mais do que dúvidas e certezas tu ansiarás pelo silêncio das pedras.



Vê como nos fez tão pequenos a mãe de tudo. Ínfimas sementes de dúvida nas estrias da Terra. E no entanto erguemos casas em lugares impensáveis, colhemos o alimento, matámos a sede. Observa apenas. Não, vê. Seria injurioso pretender observar o que quer que fosse nestas águas. Vê. É como se o céu tivesse descido à terra e nós tivéssemos subido para lá das nuvens, para lá da distância que nos mantém próximos. Aqui devia o pensamento parar, devia o corpo deixar-se guiar pelo perfume agreste da vegetação, devia o corpo transformar-se numa pedra, ganhar asas, encarnar no milhafre que busca alimento. A ruína que além se volta para a nascente sou eu estendendo-te a mão.


Agora que o sol nos reclama para dentro da noite, repousa. Talvez sonhar já não possas. A idade excessiva do sonho tombou-te aos pés da realidade, caíste desprotegido, tiveste que aprender a respirar num mundo atacado pela tosse. Abre-te porém ao mundo, deixa que do teu corpo fuja o medo. Seus próprios trilhos ele percorra. Senta-te ao lado dos pastores e partilha com eles o pão, diverte o paladar com um sorriso inegociável, desce ao vale onde há milhares de anos os teus pares se inquietaram a gravar na pedra a paisagem dos dias. Faz da folha a tua pedra. Sempre assim foram os homens, nada de novo. Faz por não perderes o espanto, conserva-o vivo no regaço dos olhos. E se por algum instante a morte voltar a reclamar-te, responde-lhe que estás ocupado a aprender o voo dos milhafres:


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