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sábado, 20 de abril de 2013

27 leiam comigo - Hugo Chávez - Da Origem Simples ao Ideário da Revolução Permanente - O Socialismo do Século 21 (parte 2)


27 leiam comigo - Hugo Chávez - Da Origem Simples ao Ideário da Revolução Permanente - O Socialismo do Século 21



   27. O Socialismo do Século 21
   Hugo Chávez postou-se diante de 25 mil fãs em polvorosa dentro de um estádio de futebol de Mar del Plata, Argentina. Aquele era o mês de novembro de 2005, e 33 presidentes da América Latina e George W. Bush reuniam-se para a quarta Cúpula das Américas. O encontro visava em parte a consolidar o apoio aos planos norte-americanos de criar um pacto de livre comércio que abarcasse desde o Alasca até a Argentina. O encontro, porém, mal começara e Chávez já chamava mais atenção do que Bush. De pé ao lado do líder venezuelano, dentro do estádio onde ocorria a “contracúpula”, encontrava-se a maior lenda da história do futebol argentino, Diego Maradona. Os manifestantes exibiam cartazes nos quais comparavam Bush a Adolf Hitler e gritavam em uníssono, quando ingressavam no local: “Bush, o fascista! Bush, o terrorista!”. Pesquisas mostravam que Bush era, entre os latino-americanos, o mais impopular dos presidentes dos Estados Unidos que já existira.
   Chávez provocou urros de satisfação quando declarou que o líder norteamericano perdia tempo ao tentar ver aprovada a Área de Livre Comércio das Américas, um elemento fundamental do Consenso de Washington. “Todos nós trouxemos uma pá porque Mar de Plata vai enterrar a Alca”, disse Chávez, em meio a um discurso de duas horas. “A Alca está morta, e nós, o povo das Américas, somos os que a enterramos.” Em uma iniciativa que comparou com a Aliança para o Progresso de John F. Kennedy, Chávez anunciou um programa de assistência previsto para durar uma década, com gastos de 10 bilhões de dólares visando a eliminar a fome da América Latina.
   Enquanto Chávez discursava, o ódio em relação a Bush e às políticas sustentadas pelos Estados Unidos, que contribuíram para atirar a Argentina na pior crise econômica de sua história, extravasava em violência nas ruas.
   Os manifestantes tentaram romper as barreiras de ferro e chegar aos locais da cúpula, entre os quais o Sheraton Mar del Plata. Jogaram pedras, quebraram janelas, saquearam lojas e atearam fogo em um banco usando um coquetel Molotov. A polícia disparou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Até o cair da noite, 50 pessoas tinham sido detidas.
   No dia seguinte, Chávez apareceu na primeira página de The New York Times e de outros grandes jornais após deixar Bush em segundo plano. O diário The Washington Post descreveu-o como um homem que assumia o “papel de um alegre provocador”.
   Mesmo escritores acostumados a criticá-lo duramente, como o colunista Andrés Oppenheimer, do Miami Herald, reconheceram que Chávez vivia um dia de glória enquanto estripava Bush, que parecia perdido ao receber “uma surra de relações públicas”. A visita dele à América Latina, imaginada como um momento de triunfo, terminara em distúrbios e bombas de gás lacrimogêneo nas ruas, e sem nenhum acordo de comércio em mãos. “O grande perdedor hoje foi George W. Bush”, gabou-se Chávez. “O homem saiu daqui ferido. Era possível ver a derrota estampada em seu rosto.”
   Um dia antes do início da cúpula, a Venezuela encenou uma invasão simulada do seu território pelos Estados Unidos. O exercício integrava os esforços de Chávez a fim de preparar o país para um eventual ataque dos soldados norte-americanos. Militares camuflados saltaram de botes nas praias da Venezuela, enquanto centenas de moradores que os confrontaram na areia gritavam: “Fora gringos!” e “Liberdade!”. Apesar de autoridades norte-americanas terem zombado, classificando os temores de Chávez como autêntica paranóia, o presidente venezuelano e seus aliados faziam questão de não deixar cair no esquecimento as recentes invasões ocorridas na região. Essas intervenções incluíam o Panamá, em 1989, para depor Manuel Noriega, Granada, em 1982, para destronar os sucessores radicais do esquerdista Maurice Bishop, a República Dominicana, em 1965, para tirar do poder Juan Bosh, e Cuba, na malsucedida invasão da baía dos Porcos, em 1961, para derrubar Fidel Castro. Em alguns casos, os motivos oferecidos pelos norte-americanos para justificar as invasões revelavam-se ridículos. No caso de Granada, o governo Reagan alegou estar resgatando estudantes de medicina oriundos dos Estados Unidos. No caso do Panamá, o governo de Bush pai transformou Noriega em um demônio envolvido no tráfico de drogas, mesmo com o contra-senso de, durante anos, o político constar da folha de pagamento da CIA, que Bush dirigira.
   Chávez também se lembrava de como os Estados Unidos se mantiveram omissos e permitiram que rebeldes de direita, entre os quais ex-agentes da CIA, expulsassem o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide do Haiti, em fevereiro de 2004. A maior invasão recente conduzida pelos Estados Unidos ocorrera no Iraque, onde o governo Bush acusara falsamente Saddam Hussein de possuir armas de destruição em massa e de ter participado, de alguma forma, dos ataques de 11 de setembro. Se os Estados Unidos demonizassem Chávez o suficiente, talvez conseguissem criar um ambiente propício ao apoio ou mesmo a uma intervenção norte-americana.
   O líder venezuelano adotou outras medidas, a fim de se preparar para uma invasão. Ele criou uma milícia civil reservista que, segundo previa, chegaria a somar 2 milhões de integrantes. Donas de casa, professores, estudantes e motoristas de táxi passaram finais de semana tomando lições sobre primeiros socorros, manuseando fuzis automáticos e marchando em formação. Algumas pessoas acusaram Chávez de estar formando uma milícia ao estilo cubano para espionar seus adversários, reprimir os dissidentes internamente e defender sua Presidência a todo custo. Mas houve poucos indícios materiais para corroborar essas acusações, e a possibilidade de o governo Bush lançar uma invasão não poderia ser descartada de forma definitiva. “Os Estados Unidos invadiram o Iraque com base em mentiras, e agora eles estão falando mentiras sobre o governo venezuelano. Então, precisamos estar preparados”, afirmou o general da reserva Alberto Müller Rojas, conselheiro de Chávez para questões de segurança interna.
   Além disso, o governo Bush adotava medidas para tornar mais vulneráveis as defesas militares da Venezuela. Os Estados Unidos recusaram-se a vender peças de reposição para os caças de combate F-16, de fabricação norte-americana. Mais adiante, em maio de 2006, o governo daquele país afirmou que a Venezuela não colaborava com a guerra contra o terrorismo. O que se somava à suposta falta de cooperação do governo venezuelano na guerra contra as drogas e na guerra contra o tráfico de seres humanos. A mais recente condenação significava que os Estados Unidos suspenderiam a venda de qualquer tipo de arma para os venezuelanos. Nenhuma outra peça de reposição para aviões de fabricação norte-americana comprados pela Venezuela seria enviada. A questão não era em nada irrelevante. Segundo algumas estimativas, das 277 aeronaves da Força Aérea da Venezuela, 177 tinham sido fabricadas nos Estados Unidos.
   Se o governo norte-americano não vendesse armas para que os venezuelanos pudessem se defender, então Chávez procuraria por armamentos em outros lugares. O dirigente tentou selar acordos com a Espanha e o Brasil, mas os Estados Unidos contribuíram para brecá-los ao se recusarem a vender peças sobressalentes. Chávez, então, voltou-se para a Rússia. O líder venezuelano assinou um contrato para receber 100 mil fuzis de assalto Kalashnikov, que substituiriam os já envelhecidos FALs da Bélgica, os quais seriam repassados para as milícias civis. Chávez comprou uma licença dos russos para montar uma fábrica de Kalashnikovs na América do Sul. Além disso, encomendou 24 dos avançados jatos Sukhoi-30 e 15 helicópteros.
   Os Estados Unidos classificaram esse como um alarmante aumento no número de armas na Venezuela e advertiram que parte desse material poderia acabar nas mãos de guerrilheiros colombianos. As Forças Armadas da Venezuela, no entanto, gastavam menos do que a vizinha Colômbia, por exemplo, que despendera 6,3 bilhões de dólares na área de defesa, em 2005, ou do que o Chile, com 3,9 bilhões de dólares naquele mesmo ano. E, principalmente, gastava muito menos do que os Estados Unidos, cujo Orçamento para a área de defesa em 2006 seria, segundo estimativas, de 500 bilhões de dólares, incluindo os gastos com as guerras no Iraque e no Afeganistão. Chávez prometeu usar todos os meios disponíveis para resistir a uma invasão norte-americana. Os militares venezuelanos chegaram a mobilizar a colaboração de 500 índios armados com flechas envenenadas. “Se eles tiverem de disparar contra qualquer invasor, vocês estarão acabados em 30 segundos, meu querido gringo”, afirmou o presidente venezuelano.
   Além de uma invasão dos Estados Unidos, a outra única opção real de que dispunha a oposição interna a Chávez para tirá-lo do poder seria assassiná-lo. Tratava-se de uma opção plausível. Os opositores do presidente, no entanto, talvez tivessem percebido que o matar não significaria o fim do chavismo; essa manobra apenas atiraria o país em uma catastrófica guerra civil. Centenas de milhares de simpatizantes de Chávez em fúria, muitos deles armados, tomariam as ruas. “A Venezuela nunca voltará a ser governada pelos Imorais”, disse uma chavista a um repórter. “Não voltaremos a ser um país no qual o dinheiro do petróleo é usado para a minoria e não para os barrios. E o que acontecerá se Chávez for morto? Uma guerra civil. Nós estamos preparados.”
   A antipatia do governo Bush em relação a Chávez alimentava-se de muitos fatores, apesar de o líder venezuelano acreditar que o principal era o acesso ao petróleo. Chávez costumava avisar que a Venezuela interromperia o suprimento de petróleo ou explodiria os campos de extração, como acontecera no Iraque, se os Estados Unidos invadissem o país ou se ele fosse assassinado (presumivelmente com o aval do governo norte-americano). O dirigente implantava um modelo econômico alternativo que investia contra a postura pró-mercado do Consenso de Washington. Ao desafiar a hegemonia norte-americana, dava um exemplo “perigoso” e “radical”, que outros países do Terceiro Mundo poderiam seguir. Como o programa dos sandinistas na Nicarágua, na década de 1980, de Allende no Chile, na de 1970, de Bosch na República Dominicana, na de 1960, de Arbenz na Guatemala, na de 1950 e, virtualmente, todos os projetos esquerdistas ou progressistas implantados na América Latina desde o nascimento da Doutrina Monroe em 1823, a Revolução Bolivariana na Venezuela precisava ser esmagada. Os norte-americanos não tinham aprendido com os últimos 200 anos de história de seu “jardim” ou mesmo desde a famosa declaração de John F. Kennedy a diplomatas latino-americanos em 1962: “Os que impossibilitam a revolução pacífica tornam inevitável a revolução violenta”. Chávez esforçava-se ao máximo para, diante da hostilidade implacável dos Estados Unidos, continuar com sua revolução pacífica.
   O presidente da Venezuela mencionou pela primeira vez a expressão socialismo do século 21 no Quinto Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, Brasil, em novembro de 2005. Tratava-se ainda de uma idéia sem definição e de uma alternativa ao modelo que provocara estragos na América Latina. Algo que se colocava entre o “capitalismo selvagem” e o comunismo fracassado. Independente do que fosse, não se tratava de uma reedição do socialismo de Estado da União Soviética, do Leste Europeu e mesmo da amada Cuba de Chávez. O presidente da Venezuela sabia que esses projetos continham falhas e que a maior parte dos venezuelanos não aceitaria uma repetição do comunismo à maneira de Fidel. Chávez, por outro lado, não idolatrava o capitalismo sem limites, cujos resultados ele havia testemunhado com os próprios olhos na Venezuela e no restante da América Latina. “O modelo capitalista é perverso”, disse certa vez. “Ele favorece a minoria e expropria da maioria.” Sua missão, acrescentou, traduzia-se em “uma busca por justiça social, por igualdade”.
   A implementação de seu novo modelo econômico nem sempre seguiu um padrão linear. Um diretor da estatal venezuelana do petróleo certa vez comparou esses esforços a “trocar o pneu com o carro em movimento”. Mas alguns elementos claros surgiram quando Chávez se preparava para concorrer à reeleição em dezembro de 2006. Os mais óbvios eram as missões sociais. O Estado chamava para si a responsabilidade por melhorar a educação, a saúde, a distribuição de comida, a moradia e o atendimento a outras necessidades básicas.
   Um outro elemento central consistia no modelo de “desenvolvimento endógeno” cuja pretensão era fazer da Venezuela um país auto-suficiente. Um exemplo podia ser visto em uma área de Catia chamada Gramoven, onde a pdvsa entregara um armazém abandonado a uma cooperativa por meio da qual homens e mulheres fabricavam sapatos, camisetas e outros produtos, tudo gerido de forma coletiva. A Missão Reviravolta também incluía cursos, que encorajavam a adoção de uma postura de cooperação em detrimento daquela de competição capitalista sem limites. O governo patrocinou a criação de milhares de cooperativas semelhantes, que produziam de tudo, desde milho a iogurte.
   E também implantou o que veio a chamar de “co-gestão”, ou “co-administração”. A idéia consistia em ajudar os trabalhadores a comprarem ações das empresas e a assumirem responsabilidades administrativas em algumas empresas que faliam. Um dos modelos de maior destaque desse tipo de empreendimento verificou-se com a fábrica de alumínio Alcasa, uma estatal então obsoleta e localizada na Ciudad Guayana, um pólo industrial. Os operários escolheram seus próprios gerentes e transformaram um modelo de administração piramidal em um modelo horizontal no qual os trabalhadores discutiam e participavam de forma mais ativa. A companhia elétrica Cadafe, de propriedade do Estado e que fornecia 60% da energia consumida na Venezuela, também implantou um modelo de co-gestão.
   Chávez estendeu o modelo para várias fábricas em processo de falência ou inativas, que o governo expropriou para que não fossem fechadas. Um dos casos mais conhecidos envolveu a fabricante de celulose Venepal, grande produtora de papel e papelão. Nos seus tempos áureos, a Venepal chegou a empregar 1.600 trabalhadores, controlando um imenso complexo que incluía milhares de acres de terra, casas, uma escola, um estádio de beisebol, um hotel com piscina e seu próprio campo de pouso e decolagem.
   Os proprietários fecharam o complexo durante a greve do petróleo (que durou de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003), fazendo com que a empresa mergulhasse em queda livre. Depois de uma série de reaberturas e fechamentos tumultuados que incluiu um período de 72 dias com os operários ocupando e dirigindo a fábrica, a empresa entrou em falência definitivamente, no final de 2004. Semanas mais tarde, em janeiro de 2005, Chávez anunciou que o governo nacionalizaria a Venepal. O Estado pagou aos proprietários o valor de mercado da empresa, ajudou a reabri-la, concedendo um crédito de 6,8 milhões de dólares e entregou metade das ações aos operários. Chávez ressaltou que a desapropriação, embora representasse uma nova direção da Revolução Bolivariana, não significava o início de um processo de nacionalização em massa. “A desapropriação de hoje foi uma exceção, ela não faz parte de uma política governamental”, disse, apesar de seus adversários mostraremse desconfiados. Os operários geriram a fábrica segundo um modelo de “cogestão” e planejaram utilizá-la em benefício da revolução, fabricando papel ou cadernos para as missões educacionais. E sonhavam com usar o estádio de esportes e as outras instalações do complexo em nome da comunidade.
   Se Chávez saiu atrás de fábricas improdutivas, sairia atrás também de terras improdutivas. Como parte de seu socialismo do século 21, o presidente anunciou a aceleração do programa de reforma agrária iniciado em ritmo lento depois dos decretos de novembro de 2001 que antecederam o golpe de abril do ano seguinte. Da mesma forma como desejava usar os recursos naturais e a mão-de-obra venezuelana para fabricar suas próprias mercadorias, Chávez queria tornar o país auto-suficiente em produção de alimentos. Não obstante dispor de grandes extensões de terras aráveis, a Venezuela importava 70% de bens alimentícios. A distribuição das terras mostrava-se totalmente inadequada. Segundo uma estimativa do governo, 5% dos fazendeiros possuíam 75% das terras férteis. “Qualquer revolução de respeito não pode permitir uma situação dessas”, disse Chávez. “Isso é algo feudal, é algo da pré-história.”
   Um dos primeiros alvos do governo dificilmente poderia ser superado em significado simbólico. Os agentes do Estado desembarcaram em uma fazenda de 32 mil acres de propriedade do Lorde Vestey, aristocrata inglês magnata do setor de carnes. Autoridades aventaram a hipótese de os ancestrais de Vestey terem adquirido as terras de forma ilegal, já que o processo de tomada de posse de terras na Venezuela se pautava pela corrupção. Os representantes do lorde juraram poder apresentar todos os documentos legais e descreveram a si próprios como vítimas de um programa de reforma agrária mal orientado. Os discursos inflamados de Chávez a respeito da reforma agrária já haviam, muito tempo antes, levado centenas de agricultores a invadirem El Charcote (o charco), montando barracos e começando a cultivar a terra. Autoridades do governo insistiam que desapropriariam apenas as terras improdutivas e que ressarciriam os respectivos donos. E que apenas tomariam posse imediata de terras obtidas ilegalmente.
   Os adversários argumentaram que Chávez embarcara em um irrealizável e quixotesco empreendimento fadado ao fracasso - como foram outros tantos projetos de reforma agrária surgidos ao logo da história da América Latina. Alguns sugeriram que o presidente flertava com o mesmo destino de outros líderes que tentaram realizar reformas agrárias e foram depostos por golpes patrocinados pela CIA, entre os quais Salvador Allende no Chile, em 1973, e Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1954. A mensagem parecia clara: nem pense em tentar isso.
   Os ambientalistas também criticaram Chávez por tentar dividir acalentadas áreas de preservação, como a enorme fazenda de Hato Piñero, com 195 mil acres e localizada no Estado de Cojedes. A propriedade abrigava espécies ameaçadas ou raras como o jaguar, o mutum-de-globo-amarelo, a capivara - o maior roedor do mundo - e a anta, que se assemelha ao cruzamento entre um porco e um tamanduá. A propriedade abrigava uma criação com um total de 11 mil cabeças de gado, recebia cientistas envolvidos em pesquisas e atraía ecoturistas do mundo todo dispostos a pagar cem dólares por dia, ou mais, para ver alguns dos animais e plantas mais exóticos da América do Sul. Os ecologistas avisaram que dividir a fazenda em pequenas propriedades significaria o fim de seu valor como área de conservação e destruiria a última área relativamente intocada dos llanos selvagens.
   No entanto, para alguns dos simpatizantes de Chávez, Hato Piñero não passava de uma fortaleza bem protegida da qual apenas os turistas cheios de dólares e os venezuelanos ricos conseguiam desfrutar, enquanto muitos dos moradores do país mal conseguiam comer. Eles questionavam a validade da pretensão conservacionista dos proprietários da fazenda e apontavam para as várias áreas de desmatamento existentes na área. Chávez descreveu os donos de Hato Piñero como integrantes da elite de proprietários de terra pouco afeitos à realidade e insensíveis.
   O presidente mostrava-se determinado a avançar em sua reforma agrária. Ele adotou medidas para retificar erros do passado, fornecendo crédito e assistência técnica aos novos proprietários de terra e exigindo que 15% dos empréstimos bancários fossem concedidos ao setor agrícola. Não obstante os temores, o governo respeitou, em termos gerais, o direito à propriedade privada. Foram poucos os casos de desapropriação. No final, as autoridades chegaram a um acordo com os proprietários de El Charcote. A empresa aceitou vender a fazenda do Estado de Cojedes por 4,2 milhões de dólares e uma outra propriedade de 106 mil acres que possuía no Estado de Apure, por 4,7 milhões de dólares. No entanto, manteve sob seu controle mais oito fazendas com um total de 638 mil acres, a fatia maior de suas terras. Chávez saudou o acordo como um modelo para outros grandes proprietários de terra. O próprio governo possuía grandes fazendas que poderiam ser distribuídas.
   Se Chávez conseguisse implantar uma reforma agrária duradoura na Venezuela, o feito seria monumental. No começo de 2007, o governo tinha distribuído quase 9 milhões de acres para 800 mil famílias de agricultores. O preço pago não fora nada irrisório: cerca de 170 líderes camponeses foram assassinados em meio à luta.
   Para além da reforma agrária e do movimento de co-gestão, Chávez adotou medidas para criar empresas de propriedade do Estado nos setores de telecomunicação, viagens aéreas e petroquímicos. Fundou estatais que produziam de tudo, de tratores a “computadores bolivarianos”. Passou a controlar a pdvsa, colocando-a sob o domínio do governo, elevando as taxas cobradas das empresas estrangeiras de petróleo. Um novo estudo iniciado em 2006 indicou que as reservas comprovadamente existentes da Venezuela, antes calculadas em 80 bilhões de barris, poderiam chegar a 316 bilhões de barris se o óleo pesado do leste do país fosse incluído na conta, o que faria do país o maior detentor do combustível no mundo, ultrapassando os 260 bilhões de barris da Arábia Saudita.
   O modelo econômico que Chávez criava não contou com aprovação unânime. As pessoas contrárias diziam se tratar não apenas de uma obra ainda em desenvolvimento - mas de uma obra fadada ao fracasso. Argumentava-se que o “desenvolvimento endógeno” e a “co-gestão” não passavam de versões requentadas das políticas de substituição de importação que tomaram conta da região nos decênios de 1960 e 1970. E, na opinião dessas pessoas, o alcance desses projetos seria limitado. Duvidava-se da possibilidade de os planos de Chávez darem vazão a um período longo de prosperidade e acreditava-se que todo o seu projeto entraria em colapso quando os preços do petróleo caíssem.
   A dependência excessiva em relação ao petróleo era um ponto a ser considerado, apesar de Chávez rebater que as cooperativas visavam precisamente ao desenvolvimento de fontes alternativas de renda. O presidente estava convencido de que o capitalismo sem limites despojara a América Latina. Seus aliados apontavam para o fraco desempenho econômico da região desde o surgimento da “revolução do livre mercado”. De 1980 a 2005, a renda per capita subira apenas 10%, segundo o FMI. Mas aumentara 82% entre 1960 e 1980, antes da adoção daquela doutrina. “Os últimos 25 anos revelaram-se um fracasso sem precedentes para a América Latina”, concluiu o economista Mark Weisbrot, que o descreveu como o pior desempenho econômico de longo prazo na região, nos últimos cem anos.
   Nesse meio-tempo, depois de sofrer abalos devido ao golpe de 2002 e à greve do petróleo, a economia da Venezuela oferecia sinais de recuperação. A taxa de crescimento deu um salto, ficando em 28% em 2004 e 2005, a melhor da região. O boom continuou em 2006, com 10,3% de crescimento. Até mesmo a publicação The Economist, não obstante apontar para algumas tendências “preocupantes”, concluiu que as políticas econômicas de Chávez “nem mesmo remotamente lembram o comunismo cubano”. Segundo alguns relatos, o setor privado acabou detendo uma fatia ainda maior da economia do que antes da posse de Chávez. Apesar de o presidente falar sobre o socialismo do século 21, muitos economistas consideravam as políticas como medidas de “reforma gradual” mais semelhantes a uma democracia social de estilo europeu do que ao comunismo de Cuba. Ex-guerrilheiros marxistas, como Douglas Bravo, chegaram a acusar seu antigo aliado de ter traído a causa. Ao contrário de um revolucionário, afirmou Bravo, Chávez era um neoliberal.
   A idéia chavista sobre uma nova economia não se pautava nas noções usuais sobre comércio entre nações, baseadas simplesmente na lógica da obtenção do maior lucro possível para si próprio. O presidente venezuelano introduziu a idéia da solidariedade. Em vez de competição, incentivava a cooperação. O exemplo mais óbvio disso eram os acordos de petróleo assinados com países de toda a América Latina. Alguns desses pactos ofereciam financiamento em termos favoráveis, permitindo a países que pagassem até 40% de suas contas durante longos períodos de tempo, períodos de até 25 anos. As taxas de juros poderiam ser tão baixas quanto 1%. Em troca, Chávez recebia de tudo, desde médicos cubanos a vacas argentinas, passando por arroz caribenho. Não se tratava de simplesmente distribuir petróleo gratuitamente. Nas palavras dele: “Quanto custariam 20 mil médicos cubanos?”.
   Chávez usou os acordos de petróleo para divulgar sua idéia sobre uma América Latina unida, conforme proposto pelo seu herói Simón Bolívar quase duzentos anos antes. O líder venezuelano criou alianças regionais por meio de pactos como a PetroCaribe, que ofereceu a 14 países caribenhos um total de 198 mil barris de petróleo por dia com “condições favoráveis de financiamento”. A PetroSul uniu o Brasil, o Uruguai, a Argentina e a Venezuela. A PetroAndina colocou juntos a Colômbia, o Equador, o Peru, a Bolívia e a Venezuela. Chávez acalentava o projeto de unir todos por meio de um grande empreendimento conjunto chamado PetroAmérica.
   Um dos planos mais ambiciosos para unir a região previa a construção de um gasoduto que se estenderia por 9 mil quilômetros, saindo da Venezuela para atravessar o Brasil e chegar ao sul da Argentina. Linhas auxiliares ligariam o gasoduto ao Uruguai, ao Paraguai e à Bolívia. O custo do projeto ficou estimado em 20 bilhões de dólares, apesar de alguns especialistas terem alertado que complicações supervenientes poderiam significar um gasto duas vezes maior do que esse. O gasoduto teria uma extensão duas vezes maior do que a da fronteira do México com os Estados Unidos e poderia transformar-se no mais longo do mundo. Chávez batizou-o: o “oleoduto do sul”. E o descreveu como um símbolo da nova era de cooperação regional e de limitação à influência norte-americana na América Latina. “Esse é o fim do Consenso de Washington”, declarou. “Esse é o começo do Consenso Sul-Americano.”
   Alguns especialistas do setor de energia viram no projeto uma simples quimera. Segundo essas pessoas, o gasoduto pautava-se mais pelas ambições políticas de Chávez do que pelo bom senso econômico. Destacaram as dificuldades de atravessar os vastos e delicados ecossistemas da floresta Amazônica na Venezuela e no Brasil. Ambientalistas alertaram sobre os perigos não apenas para as espécies exóticas de aves e outros animais existentes na região, mas também sobre os perigos para as populações indígenas isoladas. Grupos como o Greenpeace destacaram a atuação anterior de Chávez em relação ao setor, não obstante o líder venezuelano ter dado sinais de maior sensibilidade quanto às preocupações ambientalistas, divulgando alertas sobre o aquecimento global, defendendo o controle das emissões de carbono, conclamando seus seguidores a preferirem o transporte público ao uso de veículos particulares, distribuindo milhões de lâmpadas fluorescentes, que gastam menos energia, e até instalando postes de rua alimentados por luz solar. Mas o líder venezuelano continuava a insistir na exeqüibilidade do projeto referente ao gasoduto. Chávez observou que a Rússia construíra um gasoduto de milhares de quilômetros estendendo-se até a Europa. Os presidentes Lula, do Brasil, e Kirchner, da Argentina, concordavam com a idéia. Na opinião de alguns especialistas, a obra poderia ser concluída dentro de cinco a sete anos, ao passo que Chávez considerava ser possível fazer com que o projeto pagasse por seus custos nos cinco a oito anos seguintes à respectiva conclusão.
   O presidente da Venezuela elaborou outros planos para incentivar a unidade regional. Propôs a criação de um “Banco do Sul” que funcionaria como uma versão latino-americana do FMI. Sugeriu a adoção de uma moeda comum latino-americana semelhante ao euro, da União Européia. Aderiu ao pacto conhecido como Mercosul e do qual participavam o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Chegou a propor enviar um satélite latino-americano ao espaço e organizar uma versão latino-americana da Otan. A idéia contou com pouco apoio em uma região assolada no passado por sangrentas ditaduras militares.
   Ainda assim, o tema comum de todos esses projetos consistia no fomento da unidade entre os países latino-americanos - uma unidade que integrava os planos de Bolívar - e no estímulo à criação de um mundo multipolar. Os projetos não se baseavam exclusivamente na oposição aos Estados Unidos, mas na crença de que haveria mais estabilidade em um mundo com vários centros de poder.
   Convencido disso, Chávez ampliou seu projeto econômico e geopolítico para além da região, levando-o para outras partes do globo. Em face de uma relação cada vez mais conflituosa com um governo Bush resolvido a isolá-lo internacionalmente, o presidente venezuelano buscou aliados onde quer que pudesse encontrá-los. Sua maior iniciativa internacional fora da América Latina envolvia a China. O gigante asiático deixava para trás décadas de controle comunista para adotar, com uma freqüência cada vez maior, elementos da economia capitalista. Em busca de novos mercados, o comércio do país com a América Latina ampliava-se a olhos vistos. Chávez decidiu embarcar na onda expansionista. O mercado energético na China, sempre ávido por combustível, casava perfeitamente com os planos do líder venezuelano de afastar-se o máximo possível dos Estados Unidos e patrocinar um “mundo multipolar”. Chávez assinou um acordo para enviar petróleo aos chineses.
   Tudo começou com um compromisso de fornecer, em 2005, 30 mil barris de petróleo por dia. Até 2007, esse volume saltaria para 300 mil, com uma meta final de enviar 500 mil barris de petróleo por dia até 2009 ou 2010. O acordo integrava os esforços de Chávez para aumentar de 15% para 45% a fatia das exportações venezuelanas de petróleo bruto e de outros derivados para a Ásia.
   Chávez precisava de mais navios-tanque para enviar o combustível à China e a outras partes do continente asiático para as quais ampliava a distribuição, de forma que selou um acordo com os chineses para comprar deles oito embarcações do tipo. Ele assinou outros acordos com o Brasil, que venderia mais dez navios-tanque, e com a Argentina, de onde viriam mais quatro, entre os quais um batizado de Eva Perón. No total, Chávez pretendia triplicar a frota venezuelana para um total de 58 navios-tanque, até 2012. O dirigente também assinou contratos com a China em vários setores, incluindo da construção de fábricas de computadores e de telefones celulares à montagem de plataformas de petróleo marítimas na Venezuela. Em agosto de 2006, Chávez realizou sua quarta visita ao território chinês desde que tomara posse como presidente. Nessa época, a pdvsa já possuía um escritório em Pequim.
   Alguns consideraram os planos petrolíferos de Chávez algo pouco realista, em vista da grande distância existente entre a Venezuela e a China - 45 dias de navio, segundo algumas estimativas. Especialistas previram que apenas o transporte do combustível custaria a Chávez algo entre 5 e 10 dólares por barril. Argumentavam que o mercado natural da Venezuela era os Estados Unidos, para onde o país enviava 60% de sua produção de petróleo. O presidente venezuelano respondeu que conseguiria superar os problemas de trans-porte selando acordos de troca com novos aliados como a Rússia, a Indonésia e a Austrália, que entregariam o petróleo à China, livrando a Venezuela da necessidade de atravessar todo o Pacífico com sua carga.
   O membro mais surpreendente da aliança internacional em expansão de Chávez era o Irã. O dirigente estendera a mão para esse importante produtor de petróleo do Oriente Médio no início de sua Presidência, quando conseguiu, com sucesso, que os países-membros da Opep diminuíssem sua produção, obtendo, assim, uma alta nos preços do combustível. Em 2006, quando o governo Bush se mobilizava abertamente para tirá-lo do poder, Chávez aprofundou os laços com o Irã, país constante do “eixo do mal”, um conceito criado por George W. Bush, que incluiu nesse grupo também o Iraque e a Coréia do Norte. Na concepção de Chávez, não havia nada a perder. O governo norte-americano dava sinais claros de não desejar aproximar-se dele e Chávez precisava de aliados poderosos. Ele assinou vários acordos com o Irã, prevendo a instalação de fábricas iraniano-venezuelanas no país sul-americano para a produção de diversos tipos de mercadoria, entre os quais reluzentes betoneiras vermelhas, instrumentos cirúrgicos, tijolos, bicicletas, carros e ônibus. Os países acertaram, ainda, produzir petróleo e derivados do petróleo juntos, dar início a um programa de bolsas de intercâmbio para estudantes e abrir uma conexão aérea direta entre Teerã e Caracas.
   Para além dos acordos comerciais, Chávez transformou-se no maior defensor do direito iraniano de desenvolver a tecnologia nuclear, programa esse que o país islâmico insistia estar voltado exclusivamente para a produção de eletricidade, apesar de as acusações norte-americanas dizerem o contrário. Quando Chávez visitou Teerã, em julho de 2006, recebeu a maior condecoração oficial do país, a dourada Eminente Medalha da República Islâmica. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, realizou uma visita à Venezuela semanas mais tarde, em setembro, e Chávez, como retribuição, concedeu-lhe uma medalha de honra criada para homenagear Simón Bolívar. Os dois referiam-se um ao outro como “irmão” e transformaram em objetivo comum seus esforços de denegrir o inimigo comum, o governo norte-americano liderado por Bush, bem como seu maior aliado no Oriente Médio, Israel. “Salvemos a raça humana”, disse Chávez. “Coloquemos fim ao império norte-americano.”
   Essa aliança com o Irã gerou outras vantagens. Depois da deposição do xá e da crise dos reféns em 1979, o Irã continuou a possuir aeronaves militares de fabricação norte-americana, como os caças F-111, F-14 e F-15 comprados quando o xá estava ainda no poder. O país precisou adaptar várias peças, a fim de ser capaz de continuar utilizando os aparelhos. Desta vez, o país poderia compartilhar sua experiência com Chávez para que a Venezuela conseguisse manter no ar os F-16 e outros jatos, apesar da recusa norte-americana em vender-lhe peças de reposição.
   A florescente aliança com o Irã fez soar alarmes dentro do governo Bush. Surgiram acusações infundadas de que a Venezuela enviaria urânio tirado de sua selva Amazônica para o Irã, a fim de ajudar este país em seu projeto nuclear.
   Pintaram-se cenários apocalípticos nos quais radicais e terroristas islâmicos instalavam bases de operação no território venezuelano. Na verdade, as relações de proximidade entre a Venezuela e os países islâmicos não eram uma novidade, tendo sido iniciadas quando da formação da Opep, em 1960, em grande parte por meio dos esforços de Juan Pablo Pérez Alfonso, então ministro venezuelano do Petróleo. A aliança de Chávez com o Irã diferia pouco dos fortes laços selados pelos Estados Unidos com regimes polêmicos como parte do que Henry Kissinger chamava de Realpolitik.
   Ainda assim, a amizade crescente de Chávez com Ahmadinejad chamava atenção para um processo de radicalização alimentado pela postura de enfrentamento adotada no governo Bush. Caso os Estados Unidos tivessem assumido uma atitude mais moderada, como fora o caso durante o governo Clinton, parece razoável perguntar se Chávez estaria agora cortejando alguns dos regimes do planeta mais declaradamente contrários aos norte-americanos. O reinado de Otto Reich e de seus asseclas fez dessa uma questão a ser debatida. O fanatismo ultraconservador deixado como rescaldo da Guerra Fria ajudou a radicalizar e a afastar Chávez. O sucessor de Reich, Roger Noriega, viu-se substituído pelo diplomata de carreira Thomas Shannon em outubro de 2005, mas as políticas em relação à Venezuela pouco mudaram. Um especialista em questões políticas da região chamou-a de “política do arpão”.
   Mesmo quando os Estados Unidos enfrentaram problemas na guerra do Ira-que e quando os preços do petróleo dispararam, as tensões em relação a Chávez não deram sinais de retração. A secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, referiu-se à Venezuela e a Cuba como os “assessores” do Irã. Rice anunciou que os Estados Unidos adotariam uma “estratégia de vacinação” nos outros países latino-americanos, a fim de limitar a influência da Venezuela. Em agosto de 2006, o governo Bush nomeou J. Patrick Mather, há bastante tempo trabalhando na CIA, para supervisionar as operações de espionagem sobre a Venezuela e Cuba. Antes, um cargo dessa natureza existia apenas em relação ao Irã e à Coréia do Norte. De forma absurda, a Venezuela passou a ser considerada uma ameaça comparável àquela dos países do “eixo do mal”.
   A escalada das hostilidades norte-americanas em relação a Chávez e a seu governo não passou despercebida pelos cidadãos comuns da Venezuela. Quando o embaixador William Brownfield, substituto de Charles Shapiro, visitou um barrio de Caracas, em abril de 2006, para doar equipamentos de beisebol, os simpatizantes de Chávez reuniram-se do lado de fora do estádio reservado para a cerimônia a fim de gritar: “Fora! Fora!”. Quando o embaixador saiu do local, os manifestantes jogaram ovos, tomates e cebolas em seu carro. Cerca de dez motociclistas perseguiram o veículo de Brownfield ao longo de uma estrada, jogando comida e depois batendo contra o carro quando
   o tráfego o obrigou a parar. O episódio repetia uma cena ocorrida em 1958, quando venezuelanos enfurecidos, devido ao apoio dos Estados Unidos ao ditador Marcos Pérez Jiménez, quase arrastaram o vice-presidente Richard Nixon para fora de seu carro. O governo norte-americano pouco aprendeu com os erros do passado.
   Como Chávez era considerado uma ameaça à democracia e à estabilidade na América Latina e como tinha sido incluído, com base em provas duvidosas, no Relatório Nacional sobre o Terrorismo, um documento dos Estados Unidos, por “oferecer guarida” para terroristas, o governo norte-americano tratou de investigar seus aliados - mesmo alguns deles presentes em universidades dos Estados Unidos. Em março de 2006, dois investigadores do condado de Los Angeles, que faziam parte de uma força-tarefa do FBI de combate ao terrorismo, apareceram no escritório de Miguel Tinker-Salas, professor da Faculdade Pomona. Tinker-Salas, nascido na Venezuela e professor de história da América Latina, costumava adotar uma postura favorável em relação a Chávez. Os investigadores interrogaram-no durante 25 minutos, questionando-o sobre seus eventuais laços com o governo venezuelano e com a comunidade venezuelana existente nos Estados Unidos. Os dois policiais interrogaram até mesmo alguns dos seus estudantes que apareceram naquele momento para o plantão do professor, e ainda examinaram os desenhos colocados na porta do seu escritório.
   O reitor da universidade, David Oxtoby, disse que o interrogatório produzira um “efeito assustador”, ao passo que Tinker-Salas afirmou que seus estudantes tinham se sentido “intimidados”. Para algumas pessoas, a ação carregava algumas das cores sombrias vistas quando das investigações de J. Edgar Hoover, do FBI, sobre ativistas dos direitos civis como Martin Luther King Jr. e sobre artistas pacifistas como John Lennon, durante o programa Cointel, dos anos de 1960, envolvendo espionagem, chantagem e a prática de atos intimidativos.
   Não obstante os esforços dos Estados Unidos para manchar a imagem de Chávez e intimidar seus partidários, o líder venezuelano venceu com facilidade as eleições presidenciais de dezembro de 2006. O dirigente obteve um recorde de 63% (contra 37%) dos votos, em uma disputa cujo resultado previra-se meses antes. O principal adversário dele era Manuel Rosales, governador do Estado de Zulia e ex-membro da Ação Democrática, que aliás assinara o infame Decreto Carmona, responsável por anular o regime democrático da Venezuela durante o golpe de abril de 2002. Ainda vivendo dentro de uma redoma, a oposição convenceu-se de que obteria uma vitória arrasadora com Rosales. Quando perderam a disputa, os adversários de Chávez sacaram da manga as mesmas cartas usadas no referendo de 2004 sobre o mandato presidencial - fraude.
   Mas Rosales, mérito dele, reconheceu sua derrota e, assim, pela primeira vez, alguns membros da oposição aceitaram que Chávez era o presidente legitimamente eleito do país, ao passo que o bloco contrário representava a minoria dos venezuelanos. Essa atitude abriu a possibilidade de que a Venezuela deixasse para trás o período de golpes e sabotagem econômica que marcaram o primeiro mandato de Chávez, embarcando em uma nova era de política eleitoral sem sobressaltos.
   Fortalecido por sua vitória acachapante, Chávez, depois da eleição, deu uma guinada decisiva e acentuada em seus planos para o socialismo do século 21. Por volta da época em que tomaria posse para seu segundo mandato de seis anos, em janeiro de 2007, o líder venezuelano anunciou a nacionalização de várias empresas dos setores de telecomunicações, eletricidade e gás natural. E também disse que, no dia 1o de maio, o Estado assumiria o controle de quatro projetos multibilionários de exploração de petróleo no leste da Venezuela onde empresas estrangeiras tinham participação. Simultaneamente, Chávez declarou que estava dissolvendo o MVR e formando um partido socialista único, o Partido Socialista Unido da Venezuela, a fim de reunir os vários grupos que davam apoio ao seu governo. Comunicou ainda que o governo não renovaria a licença de transmissão do canal RCTV quando expirasse, em maio de 2007. Chávez tentou governar por decreto durante 18 meses, em algumas áreas, entres as quais a economia. Reformou novamente seu gabinete de governo, demitindo dois de seus maiores aliados - o vice-presidente José Vicente Ran-gel e Aristóbulo Istúriz, substituído no comando do Ministério da Educação por Adán, irmão de Chávez.
   O desenrolar dos fatos atingiu seu clímax quando Chávez tomou posse, no dia 10 de janeiro, e repetiu a famosa frase de Fidel Castro: “Pátria, socialismo ou morte - eu juro”.
   A frase e o ritmo açodado das novas medidas, adotadas no período de algumas semanas, provocou alarme no establishment, nos meios de comunicação e no governo Bush. Esses setores viram nas medidas de Chávez uma prova concreta de que o presidente instalava uma ditadura ao estilo cubano. Os adversários acusaram-no de eliminar a liberdade de expressão ao não renovar a licença da RCTV, de esmagar a dissidência política ao formar um partido único, e de aproximar-se de um modelo de economia controlada pelo Estado ao nacionalizar empresas importantes.
   Esses adversários, obviamente, contaram apenas uma parte da história. Chávez nacionalizava apenas uma empresa de telecomunicações, a CANTV, privatizada em 1991 e que detinha o monopólio da telefonia fixa dentro da Venezuela. Apesar de ter melhorado os serviços em um país onde o sistema de telefonia era tão precário que algumas empresas contratavam secretárias para ficarem apenas discando números o dia todo, a CANTV tampouco estava isenta de falhas. Levava-se, em geral, dois anos e algum suborno para conseguir a instalação de uma linha de telefone. As críticas dirigidas contra Chávez também deixaram de lado o fato de o governo planejar, de maneira geral, indenizar, a preços de mercado, os donos das empresas que viesse a comprar. Até então, as autoridades tinham agido dessa forma, a despeito de, no caso da CANTV, terem dito que pretendiam levar em conta dívidas da empresa com os trabalhadores e um “débito tecnológico” havido em relação ao Estado. Depois de a oposição quase o ter arrancado do poder em 2003, ao paralisar
   o crucial setor petrolífero, Chávez acreditava ser prudente assumir o controle das principais áreas estratégicas da economia.
   A não renovação da licença da RCTV não poderia ser descrita como uma medida de censura pura e simples, mas como uma decisão baseada na recusa do canal em pagar tributos e multas devidos ao governo e, mais importante, no fato de a rede ter apoiado e participado do golpe de abril de 2002 contra Chávez, somado ao fato de ter agido da mesma forma em relação à greve do petróleo iniciada mais tarde, naquele mesmo ano. A rede agiu de tal maneira
   - incitando os venezuelanos a derrubarem um presidente eleito democraticamente - que, se fosse nos Estados Unidos seria tirada do ar imediatamente pelo FCC. O governo Chávez precisou de cinco anos para fechá-la, apesar de o canal ainda continuar funcionando livremente via cabo e satélite.
   A manobra para formar um partido único também foi descrita de forma errônea. Não se tratava de banir qualquer partido, mas de convocar os que o apoiavam a unirem-se sob uma mesma legenda. A oposição continuava livre para agir. Os adversários de Chávez, a seu turno, tentavam formar um novo e único partido para opor-se ao presidente. Chávez não tinha por que calar seus opositores. Ele conseguia vencê-los facilmente em processos eleitorais livres e justos.
   Ainda assim, não havia dúvida de que a revolução chavista ingressava em sua fase mais radical e a pergunta sobre onde iria parar continuava em aberto. Até alguns dos partidários do dirigente questionavam o motivo de ele precisar governar por decreto a respeito de determinadas questões quando a Assembléia Nacional era totalmente controlada por seus aliados. Houve incômodo ainda com o fato de Chávez ter afastado do poder respeitados membros de seu gabinete, tais como Aristóbulo Istúriz e José Vicente Rangel, que ficaram ao seu lado - literalmente - durante alguns dos momentos mais difíceis da Presidência chavista.
   Não estava descartada a possibilidade de Chávez adotar medidas para replicar a revolução de Fidel na Venezuela, criando um Estado totalitário no qual o governo controlaria tudo, dos campos de extração de petróleo às sorveterias. Mas a probabilidade maior era de que caminhasse rumo a uma economia mista e uma democracia social, nacionalizando setores estratégicos importantes, unificando sua base política com vistas a avançar seu projeto de um novo socialismo e mantendo abertas as vias da liberdade de expressão e da democracia.
   Quando Chávez deu início a um novo mandato de seis anos, em 2007, a pergunta crucial a ser respondida girava em torno de saber se a Revolução Bolivariana estava de fato melhorando de forma sustentável as condições de vida da população ou se não passava de um amontoado de declarações esquerdistas de outras épocas e vazias de conteúdo. Fazia-se ainda outra pergunta: Chávez aprofundaria o processo revolucionário dando mais poder aos movimentos de base, ou ele próprio seria como o insubstituível protagonista de um monólogo cuja revolução ruiria quando ele deixasse o poder? Se abrisse o círculo de poder para incluir pessoas com pontos de vista críticos, então a revolução perduraria. Por outro lado, se o ego dele inflasse e ele se retirasse para um mundo de aduladores e assessores submissos, então a revolução, provavelmente, entraria em colapso.
   Como acontece com qualquer governo, as zonas cinzentas imperavam. Os adversários conseguiam apontar falhas evidentes. Uma das maiores foi a guerra contra a corrupção. Chávez havia subido ao poder prometendo combater a corrupção no país, entre os mais corruptos do mundo. No entanto, oito anos depois de iniciada a batalha, pouco havia para ser comemorado. A corrupção continuava arraigada na sociedade venezuelana. Acusações de ilegalidade chegaram a atingir até mesmo uma grande cooperativa governamental de açúcar instalada no Estado natal de Chávez, Barinas. Ele argumentava que a corrupção não era um simples problema, mas uma cultura num país onde a maior parte das pessoas considerava tolo alguém que não se aproveitasse de uma “oportunidade”. Chávez descreveu-a como um “monstro de mil cabeças”. E matá-lo não seria fácil. A solução do problema talvez levasse anos, ou mesmo gerações. O governo, é preciso reconhecer, prendeu vários oficiais das Forças Armadas envolvidos no escândalo da fábrica de açúcar em Barinas. Porém, mesmo alguns dos aliados de Chávez reconheciam que o dirigente precisava atacar a corrupção de forma mais contundente.
   Seus adversários viam na elevação das taxas de criminalidade um outro fracasso do governo. O número de assassinatos, alto durante os anos 1990, não diminuiu ao longo da Presidência de Chávez e, segundo algumas fontes, o problema até mesmo piorara. Um relatório das Nações Unidas asseverou que a Venezuela possuía a maior taxa per capita de mortes por arma de fogo no mundo. O governo insistia estar realizando avanços na batalha contra o crime ao combater uma de suas causas, a pobreza disseminada, e ao reformar as forças policiais, sabidamente corruptas, mal treinadas e mal pagas. No entanto, de forma semelhante ao que acontecia no restante da América Latina, o império da lei na Venezuela continuava sendo precário e o sistema judicial, vulnerável - os juízes permaneciam sujeitos a pressões econômicas e políticas.
   Os detratores de Chávez e mesmo alguns de seus partidários criticaramno por não desmantelar a cultura de apadrinhamento existente no país. Na Venezuela, uma palanca (indicação) revelava-se freqüentemente mais importante na obtenção de um emprego no setor público ou privado do que os estudos ou as qualificações profissionais. De maneira semelhante, mostrava-se importante ser leal a um dos dois partidos antes governistas, à Ação Democrática e ao Copei. Os adversários afirmavam que Chávez pouco tinha feito para mudar a mentalidade das palancas e que mesmo permitira que seu próprio governo se deixasse invadir por ela. O exemplo mais conhecido ficou sendo a “Lista Tascón”. Obtida por um congressista pró-Chávez da Assembléia Nacional, Luis Tascón; a lista arrolava mais de 3 milhões de pessoas que tinham assinado as petições de convocação do referendo sobre o mandato de Chávez. Inicialmente, Tascón colocou a lista em um site, a fim de permitir que os simpatizantes do mandatário se certificassem de que seus nomes não tinham sido fraudulentamente incluídos nas petições. Ao final, porém, as pessoas presentes no governo usaram-na para negar aos opositores de Chávez vários benefícios, de vagas de emprego a carteiras de motorista e passaportes. Os adversários do presidente viram naquilo o tipo de discriminação política típico dos regimes anteriores da Venezuela, que ele tanto prometera combater. Os simpatizantes do dirigente respondiam não ser injustificada a preocupação com a possibilidade de partidários da oposição ocuparem cargos públicos. Muitos deles tinham ajudado a desestabilizar ou a sabotar o governo durante a greve do petróleo.
   Tascón acabou suspenso do Movimento Quinta República, de Chávez, e o próprio líder venezuelano conclamou o país a “enterrar a lista”. O episódio, porém, levantou dúvidas sobre a profundidade das mudanças promovidas pela Revolução Bolivariana na cultura política do país. A incompetência do governo, um problema perene na Venezuela e no resto da América Latina, não desaparecera.
   Os adversários também reclamavam da concentração de poder nas mãos de Chávez. Alegavam que ele “controlava” o governo, a Justiça, a Procuradoria-Geral, as Forças Armadas, o Conselho Eleitoral Nacional e tudo o mais. É bem verdade que Chávez mantinha uma grande dose de influência sobre a Venezuela na qualidade de líder da Revolução Bolivariana. Mas nem tudo podia ser tributado a ele, e havia aspectos que se pareciam com o cenário visto em outros países. Nos Estados Unidos, o presidente da nação nomeia os juízes da Suprema Corte - George W. Bush escolheu conservadores com opiniões semelhantes às suas. O presidente norte-americano também nomeava seu próprio procurador-geral - John F. Kennedy, por exemplo, colocou Bobby Kennedy, o próprio irmão, no cargo. A oposição venezuelana aceitou inicialmente a composição do conselho eleitoral. Mesmo que o órgão fosse politizado, ninguém poderia pretender seriamente que as eleições na Venezuela não tinham sido livres e justas. Era verdade que Chávez possuía uma base de apoio esmagadora na Assembléia Nacional - em dezembro de 2005, os chavistas ocupavam todas as 167 cadeiras do órgão. Isso, no entanto, devia-se ao fato de a oposição ter boicotado as eleições daquele mês quando perceberam que caminhavam para uma derrota avassaladora. O domínio completo sobre a assembléia da parte dos chavistas forneceu aos oposicionistas o que desejavam - munição para disparar, afirmando que estavam vivendo em uma ditadura.
   Uma das maiores fraquezas da Revolução Bolivariana era o culto à personalidade envolvendo Chávez. O presidente agia como a figura solitária e dominante do palco quando se tornou líder do movimento e havia dúvidas reais sobre quão duradouro seria o futuro dos chavistas quando seu líder saísse de cena. Um analista de Caracas simpático a Chávez, ex-bolsista da Fullbright, Gregory Wilpert, não conseguia imaginar um futuro róseo:
   Se Chávez desaparecesse de um dia para o outro, o movimento inteiro se dividiria em mil pedaços, e isso porque teria perdido a cola responsável por mantê-lo unido. Essa dependência extrema em relação a Chávez também significa ser muito difícil para seus partidários criticarem-no. Todas as críticas passam pelo risco de minar o movimento, porque oferecem munição retórica à oposição. Uma outra conseqüência é que a falta de crítica isola Chávez e torna mais difícil o processo por meio do qual testaria suas idéias e suas políticas diante do mundo exterior. As críticas vindas das fileiras internas são raras e as críticas vindas de fora são descartadas facilmente. O resultado: um grande potencial para a adoção de políticas mal direcionadas.
   Um exemplo, concluiu Wilpert, era a lei de responsabilidade dos meios de comunicação, por meio da qual se aumentaram as penas para os que insultassem autoridades do governo. O analista descreveu-a como “contrária aos direitos civis” e acreditava que ela “não servia para nenhum propósito útil”. O polarizado cenário político da Venezuela criava um ambiente insalubre entre os chavistas, um ambiente dentro do qual qualquer um com alguma crítica seria tachado como “contrário à revolução”. Certas pessoas perguntavam-se se Chávez viveria o mesmo destino de Simón Bolívar, caso o seu projeto populista (e os preços do petróleo) desabasse sob seu próprio peso, fazendo com que as massas que o adoravam passassem, de forma igualmente rápida, a desprezá-lo.
   No entanto, embora fosse possível que Chávez se transformasse em um outro estereótipo de ditadorzinho e provasse ser verdadeiro o adágio de Simón Bolívar, segundo o qual “os que servem à revolução semeiam o mar”, o dirigente também desfrutava o potencial de ficar para a história como o mais importante presidente da Venezuela. Seus partidários acreditavam que as missões sociais do mandatário representavam o primeiro esforço sério e de grandes proporções para redirecionar os recursos do petróleo, favorecendo a maioria pobre do país. Essa era uma versão venezuelana do New Deal de Franklin Delano Roosevelt.
   Havia os que consideravam os programas uma mera ação populista, argumentando que pouco melhoravam a vida das pessoas no curto ou no longo prazo. Segundo alegavam, essas missões não integravam um modelo econômico viável, capaz de oferecer crescimento sustentável e de romper a dependência venezuelana em relação à flutuação dos preços do petróleo e nem a dependência do povo da Venezuela em relação ao Estado. Alguns jornalistas e analistas diziam que, apesar dos bilhões de dólares vindos do petróleo que caíram sobre a Venezuela, Chávez mostrara-se incapaz de reduzir consideravelmente a pobreza. O cenário parecia oferecer provas irrefutáveis da loucura do presidente. No entanto, essas declarações acabaram por se revelar mais um exemplo da desinformação.
   A taxa de pobreza quando Chávez subiu ao poder, em 1999, era de 42,8% e a cifra subira, de fato, para 55,1% até a segunda metade de 2003. Isso não deveria surpreender ninguém. O golpe de abril de 2002 e a greve do petróleo de dezembro daquele ano lançaram a economia em uma queda livre. Porém, quando os esforços da oposição para provocar instabilidade perderam gás, a economia expandiu-se. Aumentou em 17,9%, em 2004, e em 9,3%, no ano seguinte - as melhores taxas de crescimento da América Latina. A pobreza diminuiu acentuadamente, para 37,9%, na segunda metade de 2005, ou quase 5 pontos percentuais abaixo do índice registrado quando Chávez deu início a seu governo. E o dado levava em conta apenas a renda em dinheiro da população. Se fossem computados os alimentos subsidiados e a saúde gratuita, a taxa de pobreza terminaria por ser bastante menor. Essa cifra continuou caindo à medida que os programas sociais de Chávez ampliavam-se. Em 2006, sem incluir os subsídios, ficara em 33%.
   Outros indicadores também apontavam que a vida, realmente, estava melhorando para os milhões de venezuelanos pobres. O Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas para a Venezuela subiu de 0,765 para 0,772, entre 1999 e 2005. E esse dado baseava-se em grande medida em números de 2003, quando a economia ainda enfrentava uma profunda recessão. Os números, provavelmente, apenas melhorariam quando fossem inseridos dados relativos aos anos subseqüentes, nos quais a economia se recuperou. “O governo Chávez contou apenas com três anos de estabilidade e controle sobre o setor petrolífero”, afirmou o economista Mark Weisbrot, em novembro de 2006. “Nesse período, ele conseguiu ampliar de forma marcante o acesso à saúde pública e à educação. [...] Não conheço nenhum outro lugar do continente que obteve esse tipo de ganho.”
   Chávez iniciou ou concluiu uma série de grandes obras públicas, atingindo um ponto alto em 2006, pouco antes da eleição presidencial. Entre esses projetos incluíam-se desde centros de atendimento médico de alta tecnologia e usinas de petróleo até um sistema de bondes para levar os moradores dos barrios localizados nos morros de Caracas às estações do metrô subterrâneo. O presidente inaugurou uma ponte de 1,2 bilhão de dólares e 4 quilômetros, que atravessava o rio Orinoco e que levou cinco anos para ser construída. Chávez celebrou a conclusão de uma linha de metrô de 850 milhões de dólares, ligando a cidade-dormitório de Los Teques a Caracas. Sentou-se no banco do condutor quando a primeira nova linha de trem dos últimos 70 anos na Venezuela realizou sua viagem inaugural rumo outra cidade-dormitório, Cua. O presidente venezuelano até propôs construir uma estrada de ferro transcontinental que se estenderia rumo ao sul, até a Argentina.
   A fim de aprofundar o processo da democracia participativa, Chávez incentivou a formação de milhares de conselhos comunais de bairro com poderes para implantar, em nível local, projetos nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação e agricultura. O governo pretendia injetar ao menos 1,8 bilhão de dólares nos conselhos em 2007.
   O novo espírito era simbolizado pelos milhões de pessoas que caminhavam orgulhosamente pelas ruas com cópias de bolso da Constituição de 1999,
   o projeto da Revolução Bolivariana. Muitos conseguiam citar de cor artigos da Carta Magna e alguns se diziam responsáveis por seções do texto legal sugeridas por seus barrios à assembléia constituinte. Trechos da Constituição apareciam em pacotes de arroz, feijão, farinha e outros alimentos dos mercadinhos Mercal. Um professor de estudos religiosos da Faculdade Manhattan, que visitou a Venezuela em uma “turnê de realidade”, observou que a agenda dos direitos humanos constante do texto possuía “muitas semelhanças com os ensinamentos sociais da Igreja Católica”, entre os quais o recentemente divulgado “Compêndio da Doutrina Social da Igreja”. Não obstante as acusações de ser uma ditadura, a Venezuela dava sinais de vida com intensa atividade política sendo realizada em seus níveis mais básicos.
   À frente de tudo isso, Chávez mal tinha tempo para dormir; o líder encontrava-se profundamente envolvido com sua Presidência e curioso a respeito de todos os seus mínimos detalhes. Em seus encontros de gabinete, não havia dúvidas sobre quem estava no comando. Embora existisse espaço para a realização de debates, no final ficava claro que ele era o homem responsável por tomar as decisões.
   Cinco anos após o divórcio de sua segunda mulher, Chávez vivia de novo como homem solteiro. Ele não possuía tempo nem estilo de vida compatível com um casamento convencional. E costumava dizer que seu grande amor era o povo venezuelano e sua revolução. Com freqüência, tarde da noite, depois de a maior parte das pessoas ter saído do palácio presidencial, Chávez continuava acordado, analisando relatórios ou lendo até as 2 ou 3 horas. E mantinha uma TV ligada com o volume baixo. Quando um programa de entrevistas lhe chamava a atenção, não era incomum que a atração fosse interrompida por um telefonema - o presidente estava na linha.
   O velho mentor de Chávez na academia militar, general Jacinto Pérez Arcay, disse-lhe certa vez que não deveria reclamar sobre estar sozinho. Bolívar vivera da mesma forma após a morte da mulher, ocorrida pouco depois do casamento e que lhe proporcionou tempo e energia para libertar a América Latina. “Se ela não tivesse morrido”, afirmou-lhe Pérez, “Bolívar não teria sido nada mais que um major de San Mateo”, o pequeno vilarejo onde possuía sua fazenda.
   Ainda assim, uma fiel chavista, chamada Lina Ron, uma líder de rua sem meias palavras, escreveu um artigo de jornal em janeiro de 2007 conclamando o presidente a casar-se - e a escolher a companheira de revolução e ex-viceministra das Relações Exteriores Mari Pili Hernández como noiva. “Precisamos de uma primeira-dama agora!”, afirmou Ron. “Meu comandante (Chávez) está sozinho e não pode continuar vivendo assim.” A ativista acrescentou que Hernández deveria deixar seu ciúme de lado, uma vez que Chávez era “o homem mais amado pelas mulheres deste país”.
   Casado ou não, mesmo se a Presidência de Chávez chegasse ao fim de repente, o dirigente teria deixado sua marca na Venezuela. O país nunca mais seria o mesmo. Ele quebrara as pernas da minoria privilegiada de pele clara que durante décadas governara a Venezuela quase como uma máfia. A antiga ordem morria. E uma nova vinha à luz. Alguns acreditavam que o processo continuaria, com ou sem Chávez. O presidente oferecia apenas um símbolo da histórica passagem do poder para as mãos da maioria pobre, de pele escura e há muito tempo explorada; a minoria que agora controlava o país pela primeira vez desde a conquista espanhola, cinco séculos atrás.
   Quando Fidel Castro sofreu um grave problema de saúde, em agosto de 2006, Chávez figurava como seu herdeiro natural, na qualidade de principal líder da esquerda na América Latina e talvez no mundo. Em certa medida, o líder venezuelano já superara Fidel ao rodar pelo planeta e pregar a revolução iniciada por Bolívar quase dois séculos antes. Chávez completou 53 anos de idade em julho de 2007 - um homem ainda relativamente jovem. Em vista da autodestruição dos opositores dentro da Venezuela, o presidente não fazia outra coisa que ganhar força. Ele prometeu realizar um plebiscito sobre eliminar o limite de reeleições, a fim de que o homem indispensável à Revolução Bolivariana pudesse continuar no governo. Até mesmo seu antigo companheiro de armas, Francisco Arias Cárdenas, que o ajudara a liderar o golpe de 1992 e que mais tarde tinha se voltado contra Chávez, abandonou a oposição e regressou à base aliada. Assumiu o posto de embaixador da Venezuela junto às Nações Unidas em 2006 e comandou os esforços para que o país obtivesse um lugar no Conselho de Segurança da organização.
   No dia das eleições presidenciais, 3 de dezembro de 2006, milhares de simpatizantes de Chávez saíram de casa às 3 horas da madrugada e colocaram em alto-falantes montados sobre carros fitas com o toque de clarim para acordar seus vizinhos e lembrá-los de se dirigirem para os locais de votação antes do amanhecer. O comparecimento às urnas bateu um recorde no país
   - 75% dos aptos a votar. A somatória dos programas sociais de Chávez com seu carisma pessoal - mais os bilhões de petrodólares que despencavam sobre o país - mostrou ser forte demais para ser superada por qualquer adversário. Naquela noite, depois de ter sido eleito com a larga vantagem de 26 pontos percentuais, Chávez ingressou na sacada do Palácio de Miraflores e discursou para uma multidão em êxtase, que aguardara durante horas sob uma chuva torrencial. “Essa é mais uma derrota para o império do Mr. Danger. Essa é mais uma derrota para o demônio que quer dominar o mundo”, vociferou Chávez. Os venezuelanos, afirmou, tinham “votado pelo socialismo do século 21, esta nova era de Democracia Socialista”.
   Uma nova e mais radical fase da revolução estava prestes a iniciar-se. Chávez diferia de qualquer outra figura histórica da Venezuela. Era uma figura modelar para milhões de pessoas, um workaholic abstêmio, estudioso da história, viciado em livros e dono de língua afiada, egresso das classes mais desfavorecidas e que lutava para colocar fim a décadas de injustiça. “Isso é algo verdadeiro”, afirmou Juanita Ortega, uma freira e enfermeira norte-americana com 50 anos de experiência nos barrios do país. “A revolução perdurará enquanto não houver nenhuma interferência vinda de fora.” Os simpatizantes de Chávez prometeram defendê-lo a qualquer custo. Até com suas próprias vidas. Ele estava dando esperança para milhões de venezuelanos, e isso era algo que não sentiam havia muito, muito tempo.

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