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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013


O silêncio dos inocentes

 
Casal da Formiga, vinte e nove de Dezembro de 2012.
 
Cinco minutos antes da hora marcada para o jantar, ouvi um grito descendo a chaminé seguido de um estrondo na lareira. Por entre uma nuvem de cinza e fuligem, a voz rouca de um ancião, entrecortada por uma tosse irritante provocada pelas partículas em suspensão, vociferava alguns impropérios – “Foscasse! C’um caraifo! Eu já não tenho idade p’ra estas m.... caraifos!”
Tentei afastar a poeirada agitando os braços com gestos largos e estendi a mão na direcção do Pai Natal. Ignorando o meu gesto levantou-se a custo e tentou compor a farpela e a aparência, ajustando o cinto à proeminente barriga e passando as mãos pelo fato amarrotado e pela barba em desalinho. Curiosamente, o barrete intacto e imaculado continuava no seu sítio, bem fixo à cabeça grande e redonda, deixando cair grossos caracóis de cabelo grizalho que emolduravam uma cara patusca e rosada.
- Obrigado por ter acedido ao meu convite para jantar, Pai Natal – disse-lhe eu em jeito de boas-vindas.
- De nada meu rapaz, é um prazer.
Sentámo-nos à mesa e começámos a depenicar pequenos pedaços de queijo e de presunto que a Lurdes Rata tinha cortado com a delicadeza de um lenhador. Servi-lhe um tinto alentejano e indique-lhe o cesto do pão.
- Diz lá meu rapaz, o que pretendes de mim? Não te esqueças que o orçamento está curto…
Franzi o sobrolho e atirei a matar, há muito que ninguém me tratava por “meu rapaz”.
- Em primeiro lugar quero que fique bem claro que não acredito em si! Não é de agora…
Pai Natal engoliu uma côdea e tossicou. Levou o vinho aos lábios parecendo querer ganhar tempo para responder.
- Então por que é que me convidaste para jantar?
- Convidei-o porque sei que se sente só após a azáfama do Natal. Todos se lembram de si até dia 25, a partir daí é mais um velho para as estatísticas.
- Convidaste-me então por caridade…
Deixei escapar um sorriso maroto.
- Não se preocupe que não ponho fotografias do nosso jantar no facebook.
- Agradeço a tua sinceridade mas, se não acreditas em mim como é que poderemos ter um jantar agradável? Vamos permanecer calados?
Terminei um pedaço de queijo, limpei os lábios ao guardanapo e voltei a encher os copos, retomando o diálogo.
- O facto de não acreditar em si não quer dizer que não o estime. Sei que ainda faz muita gente feliz e por isso merece toda a minha consideração. Porém, outros há em quem não consigo acreditar, não lhes reservando qualquer estima.
Desta vez foi o Pai Natal a fazer um sorriso maroto.
- Referes-te ao Passos Coelho e à pandilha? Para que conste, esse tal Gaspar chegou a trabalhar para mim como duende. Era um bocado aldrabão... conheço-o muito bem!…
- Refiro-me a todos os vendedores de ilusões que nos fazem infelizes e descrentes. Há micro-deuses por todo o lado. Nem a minha cidade escapa.
- Enganar faz parte da natureza humana. Nunca enganaste ninguém?
Fiz um ar surpreendido, procurando bem no fundo da minha consciência semelhante culpa.
- Alguns maridos talvez - respondi com a inocência do miúdo que foi apanhado a ir ao frasco dos rebuçados – mas o meu problema não são essas pequenas bagatelas – retomei - o meu problema são outros, o futuro, a dignidade das pessoas, a confiança, a esperança, a felicidade. Tudo isso nos está a ser roubado por gente incompetente que nos engana de forma descarada. Vejo a mediocridade e a incompetência serem premiadas e os mais capazes a serem despejados borda fora. Vejo muitos idiotas cheios de ideias. Estou farto! Farto!
O Pai Natal passou os dedos compridos pela barba manchada de fuligem e retorquiu com os olhos semi-cerrados - mas tu acreditas que é possível viver num mundo em que as pessoas se preocupem mais com os outros do que com elas próprias? Que ponham o bem comum acima do bem individual? Que olhem para as suas capacidades como forma de ajudar os outros? Em que os mais capazes sejam os líderes?
- Acredito, porquê?
- Ho, ho, ho! Então deixa-me que te diga uma coisa meu rapaz, tu ainda acreditas no Pai Natal!… Ho, ho , ho!
Fixei os olhos no prato e não fui capaz de replicar. A crueldade das palavras do Pai Natal abateram-se sobre mim como um cutelo. Inadvertidamente tinha dado a última machadada na réstia de ingenuidade que ainda havia no “rapaz” de cabelos grisalhos com quem partilhava a refeição, e ele sentia-o. “A verdade é tanto mais cruel quanto maior a nossa consciência da realidade” – pensei.
Concluímos a refeição sem voltarmos a abrir a boca. Despedimo-nos.
Temendo novo embaraço, insisti para que saísse pela porta da frente. Anuiu. Levou os dedos à boca e assobiou. Volvidos poucos segundos três pares de renas puxando um trenó topo de gama estacionaram em frente ao portão pequeno. Acenou-me pela última vez e despareceu na noite do Casal da Formiga.
Voltei para dentro e rememorei a canção do Zé Mário Branco:
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda
Tomei os hipnóticos do sono e deitei-me. Dormi que nem um anjo. Sonhei toda a noite com guloseimas, chupa-chupas, rebuçados, chocolates, brincadeiras de criança. E com gajas.
 

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