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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


Physalis, Cremilde, Sidónia e outras mulheres.



a Physalis(1) crescia no vaso de barro. anunciava, em floração de invernos,  o fruto próximo.  de árvore em árvore,  de galho em galho, um bando de pássaros negros abanava as manhãs num chilreio de ignomínias formando uma barreira contra o avanço da tempestade. num trapézio de ensaiar vaidades, subiam de tom, alteavam-se. dispersavam-se, porém,  e depois a chuva retomava o seu curso, espessando a claridade, que, no óbvio, diminuía francamente a visibilidade - o rio era então uma linha leitosa, esbatida contra as margens, contra o cinza matriz do céu.  Sidónia encostou-se à ombreira da casa, embrulhada num robe azul-marinho desbotado como as memórias, e que, àquela hora da manhã, já alta, por sinal, quase meio-dia,  ainda lhe aconchegava o corpo escanzelados de magro. era assim, nos últimos tempos.  sem ocupação conhecida,  e sem projecto de vida, sem quem a olhasse além dos olhos migalhados dos pássaros negros, os tais que povoavam os campos metafóricos da vida,  cada dia se aprontava mais tarde, e, por mais que se tentasse convencer de necessárias ablações, era-lhe, inequívoca,  a urgência reclusa dos espelhos dos olhos. das pupilas, das meninas dos olhos, razão de sua existência. ou não. Sidónia tinha alma de pássaro e estava morta – teria sido talvez por isso que quando os rios se juntaram em forma de cruz, no mouchão fronteiriço, as mulheres sangraram pela primeira vez, e as lezírias foram searas maduras. dizia, para quem a sabia ouvir, da democracia das águas, de como lavavam uns e outros sem atentarem às origens.  lavavan tudo, menos a má língua. 

numa manhã de atrevimento, atreveu-se. olhou de frente o céu, ele mesmo a atrever-se contra o espessamento da chuva, cada vez mais próxima. era a hora de partir.  deitou mão a alguns pertences, colocou a capucha de burel a agasalhar-se nos ombros ossudos, subiu-a ao peito,  determinada,  e  contra o queixo, o mais que pode. resguardada assim do frio da invernia rigorosa, saiu para a rua, sem destino concreto. os passos, firmes, igualmente determinados, chão do seu próprio chão,  encaminharam-na para o palácio da sua meninice. mediu diferenças, se as havia, afinou a esquadria. nada mudara, apenas envelhecera. o bulevar permanecia intacto, o lago dos peixes vermelhos ladeado de árvores,  as laranjeiras em fila indiana formavam uma espécie de praça forte contra a rudeza dos dias;  e que dizer do o ar dali, macio, ungento, a vedar-lhe golpes na própria casca?  aspirou forte.  isso, Sidónia, tu podes, tu consegues. um passo em frente, dois atrás, um de novo, agora…
talvez devesse dar-se ouvidos – reconsiderar o que a movia além dos passos, do verdete dos caminhos. talvez sim, quem sabe? 

igual a sempre, a profusão de folhas e de cores formava com o barro e a bosta dos animais passantes, uma pasta onde se enterrava, prazeirosa, um emplastre calmante a que se dava,  maçarica, esperançosa de que, numa outra vida, alciónica, quiçá, fosse luz além da barra. um dia, quando seguia a bordo para a ilha, o mestre Carlos falara-lhe dos maçariços, "almas-de-mestre", guias,   as estrelas mais brilhantes das Plêiades, segundo o próprio.
e  não era isso que a minava? pólipos alciónicos? como cogumelos, a proliferar nas vísceras... tudo se conjugava, afinal... conversa de merda...  quanto tempo lhe restava? querer alienar o tempo, dissera-lhe, era pois, uma impossibilidade - ele deixa sempre marcas. por isso o remédio,  se é que existe, está em não haver remédio;  enfrentar a besta pelos cornos de forma  austera e ríspida.  as bestas não reconhecem outra linguagem, Sidónia.  o doce já não resolve, sabes? por essas e por outras é que este país está como está, cravejado de diamantes em pano roto. fazes parte da "não pandilha" e resistes, ou, pelo contrário,  optas por chorar por dentro como as grutas, criatura? 
ainda te resta a escolha, o livre arbítrio…
um passo em frente, dois atrás; recorrente  o ditado americano "hell hath no fury like a woman scorned" fustigava-lhe o rosto. tantas as formas de traição e tamanha a sua passividade... ultrajante o frio que a fustigava de vitupérios e injúrias. seria bruxa, pois. que fosse!
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saiu sem rumo. havia dias,  vários, e  que a Cremilde  seguramente  pareciam   meses,  que perdera a vontade de se mimar, de se cuidar, de ser quem fora, ou cuidara  ser,  até então.  só a espaços, cada vez mais abetesgados e raros,  é que, e  por efeito dos tachos e as panelas, dos cheiros  das compotas fumegantes, ou das sopas, todos eles  fortes e revigorantes, sempre diferentes e feitos a olho, sem medida,  sem regra pelas suas próprias mãos intuitivas, as imagens do futuro se lhe revelavam,  vaporíferas. surgiam-lhe ora  recortadas e  figurativas, ora exactas em geometrias bruxuleantes, contra as paredes.  em ambos os casos despertavam-na para um sentimento a que chamava, plagiando sabe-se lá quem,  de "saudades de futuro". ainda  assim,  conservam-na  numa espécie de banho-maria. 
nesses momentos inalava  profundamente  a vida nas coisas breves, consciente de que   havia, algures, instalada num lugar distante, uma espécie de metanóia que a penitenciava em clausura e a mantinha prisioneira sem pulseira electrónica, sem apelo, sem agravo, na face oculta das coisas e se transformava na expressão corriqueira do seu sentir.  e havia, constatava,  vidente, alhures,  um tanque,  piscina olímpica,  de lágrimas não choradas, que, como um vento ronceiro, lhe impunha a mudança no pensamento...
 talvez devesse pôr-se em causa - reconsiderar o que a movia, além da cor. do imediato do seu mundo de folhas amareladas, dos silêncios e dos uivos dos cães, que, em ablação, a entristeciam, talvez devesse. mas não...
foi mais ou menos por essa altura que se avistaram em espelho. Cremilde baixou os olhos. Sidónia, pelo contrário, não tinha nada a perder, olhou-a bem de frente. nunca se soube de que falaram, mas o que quer que fosse, durou horas, prolongou-se além do inimaginável. o gelo da noite, como farpas, chispavas-lhe os olhos. na calada, Sidónia, envolta em burel,  uivou e era loba, embrenhada na floresta,
Cremilde retornou os passos. na cesta de vime carregava  as laranjas de todos os pomares que nunca haviam sido enxertados, bravos como ela mesma.  sem pressas, abriu um a um cada fruto, retirou-lhes os caroços, colocou-os a salvo, prestativos os sabia em pectina, cola natural e  consistente. e o quanto necessitava dela para realinhar os cacos - a vida era-me de vidro e partiu-se, disse. quanto às laranjas laminou-as em juliana, cobriu-as com água, macerou-as de forma demorada. no fim trancou as portadas.
um luz súbita rasgava o ventre da terra, o leito era-lhe desconforto e ansiedade.
soprou o dia, a noite e a madrugada. por fim, na manhã já alta, banhou-se, aprimorou as vestes, enrolou o cabelo na nuca, colocou a rede e as travessas. teria perto de cem anos. abeirou-se da cozinha, rigorosa nos seus próprios preceitos e princípios, inflexível consigo mesma, retomou a feitura dos dias de laranja amarga...

NOITE.DE.MEL

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