Na 2ª série do Diário da República do passado dia 8 de janeiro foi publicado o Aviso 353/2013 da CGA onde consta que, em cumprimento no disposto no artigo 100.º do Decreto -Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro (Estatuto da Aposentação), se tornava pública uma lista dos aposentados e reformados que, a partir do próximo mês de fevereiro, ou desde datas específicas indicadas, passam a ser abonados da respetiva pensão pela Caixa Geral de Aposentações.
Ou seja, mais cerca de 1500 pessoas passam, ou poderão passar, à situação de aposentados (ou reformados), em fevereiro de 2013. Para alguns deles, porém, isso só acontecerá quando deixarem, de facto, as suas funções na administração pública estatal ou local, o que até poderá ocorrer, daqui a muitos meses ou, até, com anos de intervalo. Nestes casos, que serão poucos, não usufruirão entretanto a respetiva pensão de reforma, tendo acedido, contudo, ao estatuto de pensionistas potenciais.
Entre outras coisas, o Aviso publicado ilustra a enorme sangria de trabalhadores, e outros agentes da função pública, que vem acontecendo com uma regularidade e intensidade extraordinárias nos últimos meses. É impressionante, por exemplo, o que acontece nas áreas da Saúde, Educação, Forças Armadas, Segurança Pública e Autarquias Locais.
Entre cerca de quinze centenas, a comunicação social entendeu dar um notório relevo ao caso da presidente da câmara municipal de Palmela.
Notória e, deve acrescentar-se, dolorosa propaganda, porque, nos termos em que foi difundida, afeta pessoal e politicamente a pessoa zurzida, a sua família, amigos e, também, a organização política onde se insere.
Antes de prosseguir, impõe-se fazer uma declaração de interesses: sou da família da citada e, por outro lado, também acedi ao estatuto de aposentado há alguns anos atrás. Porém, não me sinto condicionado ética ou politicamente ao analisar de forma crítica o caso vertente. Antes pelo contrário.
Do ponto de vista dos procedimentos que conduziram à visibilidade do caso é muito simples: alguém, por motivos pessoais ou políticos, tendo tido conhecimento de que, no vastíssimo elenco, constava o nome da presidente de câmara de Palmela, soprou o assunto à imprensa, primeiro a nível local, daí tendo fluído de forma instantânea para outros fóruns. Aquele conhecimento ou foi obtido diretamente, ou foi tomado através de algum dos muitos catadores especializado em listas deste tipo.
Mas, qual é o facto central que releva na situação descrita, comentada de forma tão ampla a nível nacional, quando, na mesma lista, até havia outras situações idênticas?
Muito simples: trata-se de uma autarca que tem 48 anos e terá adquirido o direito a uma pensão de cerca de 1800 euros brutos!
É curioso verificar que aquela pensão é, em termos quantitativos, equivalente à de vários chefes municipais de 2ª classe, diversos chefes de divisão e da PSP, muitos guardas principais, escrivães de direito e, até, um grande pelotão de sargentos, que também constam da lista. Do ponto de vista do valor bruto da pensão, absoluto e comparado, estamos conversados.
Qual é, então, a singularidade da narrativa construída através desta mediatização?
É que, nos tempos que correm, é fatal acertar numa tripla como esta: ser uma “política”, privilegiada porque conseguiu, não obstante ser uma “jovem”, a “fortuna” de 1800 euros mensais!
É certo que ninguém teve o desplante de lhe apontar o mínimo laivo de ilegalidade ou de oportunismo. Pudera! A Ana Teresa, que tem tido uma vida pública e privada impoluta, pautada sempre pelos valores da lealdade, seriedade, trabalho, e dedicação às populações e aos amigos, limitou-se a exercer um direito que lhe é conferido no quadro legal português. Mas, pelos vistos, quem exerce os seus direitos, é penalizado com a censura pública. Mesmo quando não há nada, no conjunto dos seus deveres, que obste ao exercício daquele direito. Mas, é este o Portugal do século XXI, (des)construído nas últimas duas décadas, com especial ênfase desde há cerca de meia dúzia de anos!
É bom que conste que a pensão em causa, para além de não ser utilizável de imediato, pelo menos nos próximos meses, ou, quem sabe, nos próximos anos (bastaria que a visada se disponibilizasse para exercer outro tipo de funções públicas depois de outubro de 2013), só é alcançável porque a sua beneficiária terá que pagar cerca de 35 000 euros de descontos complementares à CGA, isto durante os primeiros cinco anos de recebimentos efetivos. Isto é, nesse período, a novel pensionista receberá cerca mil euros líquidos. Uma “fortuna” que, no entanto, não dará para ir até Paris!
O desconto complementar, isto é, além de todos os que já fez durante 27 anos de carreira contributiva, deve-se ao facto de, sete daqueles anos, poderem dobrar, passando para 34 anos a contagem de tempo total. Ou seja, é este o fator excecional existente na situação em análise: por exercer funções políticas autárquicas, e ao abrigo de uma lei que, embora já tenha sido alterada em 2005, ainda a contemplou parcialmente, a agora presidente pôde ver cumprir-se aquilo que consigo estava contratualizado há décadas.
Fica, assim, muito claro, que a atribuição desta pensão, mesmo que a beneficiária potencial não viesse a descontar ainda mais anos no futuro, o que é improvável devido à sua idade, não constitui um fator de desequilíbrio discriminatório no sistema de pensões da CGA.
Não é isso, no entanto, o que debitaram relevantes comentadores.
O Baldaia, coitado, diz que ainda terá que trabalhar mais “vinte anos”, para atingir a benesse agora recebida pela autarca! Mas, alguém acredita que ele vai ter de trabalhar até aos setenta para merecer a reforma? E será que recebe, agora e no futuro, apenas 1800 euros brutos por mês?
E o outro, um tal Monteiro, guarda-mor dos interesses da direita endinheirada, veio dizer que “muita gente que trabalhou 40 anos e não tem nem metade (e outros que nem reformados ainda podem ser) deve deixar cheios de inveja” e, ainda, que “é devido a reformas destas que uma boa parte das outras reformas (as do FMI) são impossíveis de levar neste país. É que se o Estado diminui o seu peso, lá se vão estas e outras regalias”. Trata-se de populismo e de inveja no seu melhor estilo, neste caso por parte de um senhor que, de certeza, estará muito bem aconchegado no patronal e balsâmico regaço. E, já agora dizer que, faltando-lhe um mínimo de decência na sua missão de escriba a favor dos “direitos do povo”, e para fundamentar os seus complexos cálculos, dá como tenebrosa a possibilidade da agora aposentada viver mais 40 anos!
Mas, imaginemos, por hipótese, que a autarca, alertada atempadamente de que o seu pedido, legítimo e legal, iria gerar toda esta polémica, tinha desistido de o fazer. O que aconteceria em outubro próximo, com enorme probabilidade, seria ficar sem emprego e…sem direito a qualquer subsídio de desemprego. Isto porque um responsável político que caísse nessas circunstâncias, a ele não teria direito! Estão a ver a coisa: os políticos têm que ser iguais aos desempregados em tudo, exceto nesta “pequena” questão do subsídio, porque, esse, não existe para eles. Nem grande, nem pequeno!
Por vezes, neste país, tem-se a estranha sensação de estar num imenso hospital psiquiátrico, onde, por imposição igualitária, os médicos e enfermeiros também devem estar doentes.
Mas, então, o que lhe restaria fazer para atalhar a mais que previsível aflição futura? Muito fácil: pelo menos no último ano do seu mandato deveria fazer vários contactos com diversas pessoas e entidades, designadamente privadas, para preparar o seu futuro profissional. Por exemplo, porque não com grandes empresas ou, até, com algum banco interessado em resolver as enormes imparidades imobiliárias que tem na região? Era isto que aconteceria com elevada probabilidade, se o escrúpulo pessoal e político da visada, neste caso, não o excluísse à partida. E seria isso bom para o sistema democrático? Certamente que não. Mas, isso é desejado, e em grande parte já conseguido, por todos aqueles que, na comunicação social convencional ou nas redes (ou teias?) desmaterializadas, fustigam a designada “classe política” como se ela fosse um todo indiferenciavel: no fundo, querem ter os políticos de cócoras e ao dispor dos seus interesses particulares!
A Ana Teresa, com a lisura que sempre usa, contactou atempadamente todas as entidades pertinentes, informando que iria pedir à CGA uma contagem de tempos no sentido de obter aquilo que veio agora a ser-lhe consignado. Ninguém lhe manifestou discordâncias políticas ou legais, ou preveniu contra o potencial agravo. Nem eu, com alguma experiência das coisas e da vida, vislumbrei problemas deste tipo, e também, curiosamente, acedi à possibilidade de me aposentar aos 48 anos, embora só tivesse exercido o direito tempos depois, tendo, entretanto, descontado mais alguns anos para a CGA. Eu, e muitas centenas de autarcas. Há casos em que eles se encontram ainda no seu posto de trabalho, não obstante terem obtido as condições para passarem à reforma há já muitos anos.
Portanto, face ao exposto, impõe-se uma primeira grande conclusão: é descabido e imoral atribuir qualquer tipo de responsabilidades a quem se limitou a cumprir todas as regras conhecidas. Nem o Jorge Jesus culpou o Artur pelo golo sofrido contra o Porto, embora, aí sim, tivesse sido um erro de palmatória. É assim que se estimula uma equipa.
Contudo, como não vivemos num país de fadas, a história é mais complexa.
É compreensível que, devido à enorme violência do ataque aos direitos e regalias sociais, mesmo os mais comuns, e perante a completa ausência de rumo governativo no sentido de um projeto de resgate nacional com interesse coletivo, os cidadãos deste país estejam em transe.
Com destaque para os trabalhadores sujeitos a uma crescente exploração, para muitos dos pequenos e asfixiados empresários, para os pensionistas e reformados assustados, para os desempregados angustiados, para os jovens expectantes e para os idosos desiludidos, enfim, os homens e mulheres deste povo adiado, todos estão impacientes, receosos e revoltados com a situação. Por isso, é normal que quem está em funções de responsabilidade pública, com destaque para os cargos políticos, esteja sujeito a um escrutínio ainda mais apertado de todos os seus atos. Até porque se foi criando uma nebulosa através da qual se vêm pardos todos os gatos. E isso serve perfeitamente os interesses de quem tem vindo a esmifrar este país, interna e externamente.
É de lamentar que, desde logo, se verifique uma intensa deriva social no sentido de relevar os atos de caráter pessoal praticados por quem está em funções políticas, em detrimento dos atos que praticam no seu exercício publico. Isto é, aqueles que cometem crimes políticos, económicos e sociais, todos os dias, só são verdadeiramente censurados pela opinião pública quando cometem algum dislate, tipo comprar uma licenciatura a pataco.
Impõe-se, parece-me, um combate firme ao populismo, doença política e social gravíssima, que tende a transformar grandes segmentos do povo em populaça, contaminando de forma profunda o sistema democrático.
Cada vez se pensa menos e se escreve mais nas imateriais paredes dos sanitários públicos da modernidade. Nessas muito sofisticadas redes internéticas utiliza-se, muitas vezes anonimamente, o mesmo material que se vai depositar nos lavabos. É o que está mais à mão, e serve, sem luvas, para caluniar ou criticar a eito quem tem alguma projeção pública.
Nesse combate contra o populismo não é de menor importância defender com frontalidade os interesses legítimos e vitais dos que exercem a atividade política.
O nível de desenvolvimento de um país, no seu sentido mais abrangente, passa muito pela qualidade dos seus recursos humanos e, de forma muito particular, pelo nível daqueles que exercem responsabilidades políticas.
Não se conseguirá ter um país que progrida, afugentando, vilipendiando e perseguindo aqueles que, dotados de capacidades e qualidade, se disponibilizaram para funções políticas, por vezes com sacrifício pessoal e familiar.
O sistema político deve ser servido pelos melhores. Não por incapazes, por oportunistas ou por agentes dos grandes interesses financeiros e económicos que, neste caso, até podem bem prescindir das suas remunerações e regalias porque, quem verdadeiramente lhes paga, são outros, os seus mandantes. E fazem-no antes, durante e depois de exercerem os cargos políticos.
Não há qualquer dúvida que houve pensões milionárias (muitos milhares de euros mensais) que foram conseguidas por alguns atores políticos, por vezes em situações excecionais de autodiscriminação positiva e, acrescenta-se, em curtos períodos. Isso é condenável e deve ser erradicado.
Já tenho muitas dúvidas sobre os casos hoje aqui tratados. Não me parece que seja neste campo que se deveria incidir. Mas, não posso falar em causa própria. Outros o deverão fazer.
Do ponto de vista formal existem, ou existiram, como se sabe, vários tipos de populismo, desde os movimentos radicais rurais do oeste e sul dos EUA em fins do século XIX, ao movimento narodniki russo, também no século XIX, passando pela ideologia de Estado ligada ao desenvolvimento rural de baixa intensidade em certos países africanos, e pelos vários ismos sul-americanos. Contudo, quase sempre, o populismo nacionalista termina, “conclamando os trabalhadores a prestar um apoio, nacional e patriótico, à burguesia” (Néstor Kohan).
É muito interessante ter em conta que uma das primeiras obras de Lenine foi, exatamente, “Quem são os Amigos do Povo e como lutam contra os social-democratas?”, escrita em 1894, visando, com grande ênfase, os populistas de então.
Mas, o populismo de que aqui hoje vos falei não é, por enquanto, deste jaez político. Foquei-me, apenas, em certos traços populistas verificáveis na crítica fácil a tudo quanto é político, e, também, em certas ações espontâneas antissistema, apontando para as características antitributárias do movimento Manuelinho de Évora (1637), ou da insurreição Maria da Fonte (1846), esta contra o “centralismo e despotismo” cabralista. Revolucionários, mas muito reacionários.
É necessário não confundir os hinos.
Eia avante, portugueses
Eia avante, não temer
Pela santa liberdade
Triunfar ou perecer!
É um refrão giro, a música empolga, mas não é o hino que nos interessa.

Praça do Bocage