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O Demétrio Alves já teve oportunidade de explicar aqui, e bem, por que razão são infundados os ataques feitos a Ana Teresa Vicente por ter requerido a reforma a que tem direito, de acordo com a lei.
A acesa discussão que se travou em torno deste assunto e as acusações que foram lançadas só podem ser justificadas com a lamentável degradação das relações sociais que está a ser promovida pelo atual governo. Foi Passos Coelho, secundado pelos membros do seu governo, quem iniciou esta absurda contenda entre os portugueses que têm reformas mais altas e os que têm reformas mais baixas, entre os que se reformam mais cedo e os que se reformam mais tarde, entre os que, por várias razões, têm regimes especiais de contagem de tempo de serviço e os que não têm. A técnica é velha como o mundo e tem nome: dividir para reinar…
O Governo conseguiu, num curtíssimo período, estilhaçar todos os equilíbrios, sempre precários, é certo, existentes nestas matérias entre os portugueses. Apostou na mais fraturante argumentação para o fazer, colocando de um lado “ricos” pensionistas que têm a reforma para a qual trabalharam e para a qual o Estado lhes permitiu criar expetativas, e todos os outros. A solução, para este Governo, não é encontrar soluções para que todas as pensões de reforma possam ser elevadas a níveis aceitáveis de dignidade, mas sim baixá-las a todas e aumentar ainda mais a pobreza, o que coloca, com maior intensidade, a necessidade de saber, como bem destacou ontem o deputado Bernardino Soares, na Assembleia da República, numa audição do PCP sobre pobreza infantil, se é o estado social que tem de ser sustentável ou se esta pobreza a que nos querem reduzir será, ela própria, sustentável para o país, com todos os efeitos futuros que a degradação das condições económicas de hoje terá amanhã.
A discussão do caso da Ana Teresa Vicente — que, em jeito de declaração de interesses, como se diz agora, aproveito para informar que conheço há mais de 25 anos — enquadra-se neste processo de divisão da sociedade portuguesa, com a variante de se tratar de um titular de um cargo político que acumula com a qualidade de autarca. Conhecido que é todo o discurso público sobre políticos e suas benesses produzido, contraditoriamente, por aqueles que nos últimos trinta anos, pensaram e concretizaram toda a legislação que lhes dá essas benesses, não deixa de ser estranha a escolha da Ana Teresa como alvo, ela que é militante de um dos partidos que votou contra tais leis.
A lei, em especial no contexto português de baixas reformas, de degradação de prestações sociais, é injusta, ainda que, hoje, já não seja possível contar o tempo de serviço dos autarcas como aconteceu até 2005. A injustiça reside não na atribuição de vantagens a titulares de cargos políticos, mas sim na disparidade que há nessas vantagens em relação à esmagadora maioria dos pensionistas, o que faz com que, primeiro, seja necessário elevar as pensões mais baixas, conferindo a quem as recebe mais dignidade e a possibilidade de sair da pobreza. Julgo que terá sido essa a principal razão que levou o PCP a pronunciar-se contra a legislação que permitiu dobrar o tempo de serviço dos autarcas. É, porém, necessário tentar perceber por que razões eram atribuídas aos titulares de cargos políticos algumas vantagens, na ausência de melhores salários, como hoje, na sequência deste caso, muitos defendem, ainda que, se tal acontecesse, o discurso sobre o que ganham os políticos seria certamente  mais agreste. Acredito que, na cabeça do legislador, estivesse a ideia de, assim, poder atrair para o exercício destes cargos gente qualificada que, de outra forma, não abandonaria as carreiras profissionais por longos períodos, nem se disporia a exercer um cargo político a troco de um salário muito abaixo do que poderia receber numa qualquer empresa privada. Claro que, quando se sabe que se quer obrigar os portugueses a trabalhar até aos 67 anos; quando as reformas são, de forma geral, baixas; quando se baixam as prestações sociais de forma acentuada, os benefícios atribuídos aos titulares destes cargos ganham uma carga negativa acrescida, ampliada, no caso em apreço, pelo facto da Ana Teresa ser comunista e ter 48 anos.
Ela tem, porém, a possibilidade legal de pedir essa reforma e, no caso dela, nem sequer vale a pena utilizar o argumento de ter o PCP votado contra a lei que permite a contagem do tempo de serviço dos autarcas, até 2005, a dobrar. Não foi por ser contra a entrada de Portugal na União Europeia que o PCP deixou de participar nas eleições para o parlamento europeu; nem sequer os comunistas deixaram de usar o euro por serem contra a moeda única. Se valesse o princípio de apenas aplicarmos, nas nossas vidas, as leis com as quais concordamos, viveríamos, seguramente, num estado selvagem, de todos contra todos.
No caso da comunista Ana Teresa é ainda necessário recordar que, para gente como ela, não há lugares de administração bem pagos, com principescos planos de reforma ao fim de meia dúzia de anos de atividade. Nem ela, acredito, os quereria, como quiseram muitos ex-governantes do PS, do PSD e do CDS que acabaram nas empresas em que o Estado tem influência ou em grandes empresas de obras públicas, e outras, com as quais fizeram negócios enquanto governantes. Aos comunistas, em geral, reserva-se o esquecimento e a arrumação na mais distante prateleira que exista.
Em abono do PCP há ainda que salientar que nunca este partido tomou qualquer posição política sobre casos concretos de autarcas que se tenham reformado mais cedo ao abrigo desta legislação. Não se trata de uma questão de moral política, que implicaria a retirada da confiança política à autarca, como se leu por aí. Neste caso, como noutros recentes, como o de Macário Correia ou Seruca Emídio, dois autarcas algarvios que pediram a reforma ao abrigo da mesma legislação, trata-se de uma questão de decisão pessoal, que tem de ser analisada à luz da história pessoal de cada um.
Na contenda que opõe populismos vários, uns mais interesseiros que outros, à reforma da Ana Teresa, há uma argumentação recorrente que aponta para a idade da presidente da Câmara Municipal de Palmela como fator mais relevante na matéria. Ignoram os defensores desta argumentação o que é a vida de um presidente de câmara; o que é abdicar de noites, fins-de-semana, vida pessoal, tempos de lazer, privacidade, segurança pessoal e familiar, de tudo o que o comum cidadão tem, por 12 ou 16 anos. Muitos dirão que só o fazem porque querem. Claro que assim é, mas isso não retira todo o peso associado à vida de autarca, toda a intensidade que tem o desempenho de um cargo destes. Sim, outras classes profissionais têm também uma atividade bastante desgastante, é um facto. Mas para esses devemos exigir, também, melhores condições, melhores reformas.
Conheço quem tenha quase mais anos de serviço do que de vida por ter exercido atividades de elevado risco e por isso receba pensões de reforma bastante aceitáveis. Vamos também diabolizar estes profissionais? Ou não será a atividade de autarca também uma atividade de risco?

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