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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

TRADIÇÕES O ENTERRO DO BACALHAU


O ENTERRO DO BACALHAU

O cortejo fúnebre "Enterro do Bacalhau", tradição de riquissimo valor cultural que se perde nos anais do tempo, é representado pelas gentes do lugar do Soutocico, numa manifestação teatral com cerca de duzentos figurantes. Esta peça popular de cariz marcadamente pagão, percorre as ruas da aldeia no sábado de aleluia e inicia-se por volta das 21:30 horas para terminar próximo das 24 horas, altura em que é servida uma monumental ceia de bacalhau a todos os presentes, sejam dos actores ou simplesmente espectadores.
Representado em 1938 pela 1°. vez no lugar do Soutocico, constituiu tal êxito, na altura, que passou a ser o ex-libris histórico-cultural das pessoas da povoação, não obstante o mesmo ter sido proibido pelo regime de Salazar, a pedido das Instâncias Religiosas.
Quando aconteceu em Abril de 1974, as saudades do "Enterro do Bacalhau" eram tantas que o Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico decidiu reeditar o evento, fazendo para tal uma pesquisa apuradíssima. Reunidas, pois, as condições necessárias para a representação, e muito embora as autoridades religiosas voltassem a manifestar-se contra, certo é que voltou ás ruas por mais quatro vezes entre 1977 e 1983. Curiosamente, era nas gentes mais simples e convictamente ligadas á igreja, que mais se fazia sentir o entusiasmo transbordante pela representação da peça.
A tradição do "Enterro do Bacalhau" parece remontar ao século XVI, durante o movimento contra-reforma. Sabe-se que o Concílio de Trento, conferindo á Igreja Católica o poder centralizado e o autoritarismo que possuia antes da Reforma de Lutero e Calvino, levou a que a nova Inquisição combatesse em força as chamadas heresias, independentemente da perseguição aos dos Evangelhos atrás citados. Esta Igreja que proibia o consumo total da carne durante a Quaresma, abria um precedente a todos aqueles que comprassem a bula. Este indulto só servia os mais abastados, que o podiam pagar, enquanto os desfavorecidos, a grande maioria afinal, teriam de se socorrer do peixe na sua alimentação durante as sete semanas da quaresma. O peixe mais acessivel era o bacalhau. O povo revoltou-se contra esta determinação, mas teve de abdicar, não sem que antes criasse esta festividade pagã, como sentimento de revolta pela sua impotência.
O bacalhau implantou-se assim nos lares dos pobres, sendo o seu salvador. Cozinhado de mil maneiras diferentes, ele foi absoluto durante o período da Quaresma findo o qual o tribunal fantoche dos filhos o julgou e o condenou a morte, por inveja da sua popularidade. O advogado de acusação, o traidor "Filho da Maria Malvada", cujas origens eram de um mero filho do povo, fundamentou o seu ataque no facto de, durante o período de abstinência, só lhe ter calhado do mal-cheiroso, do escamudo, do mal-curtido, do rabo e asa, etc.
Esta traição enraiveceu uma vez mais toda aquela gente simples que, durante o cortejo, pede a sua cabeça, para que se faça justiça ao bacalhau.
Os três principais sermões: "Vida e Morte do Bacalhau", "Testamento do Bacalhau" e as "Exéquias do Bacalhau", formam com as quadras cantadas ao som da marcha fúnebre de Chopin, um espectáculo digno de ser visto. Para além dos três sermões apontados, é tradição do Soutocico, a queima do Judas, no mesmo dia e após o enterro. Logo que o bacalhau desce á cova, segue-se um sermão ao Judas que começa "...São Cipriano por Belzebú te invoco, pote das almas, toucinho crú, bruxas do inferno, luzecus do além, penas de corvo, sangue de frango, louvo o tranglomano, para sempre louvado, pater, filho e espirito sentado ..."
Seguidamente, o Judas é queimado e rebentado entre alaridos e gáudio da multidão.
I
Batem sinos nas capelas
bandeiras a meio pau
moços velhos e donzelas
ponham luto nas panelas
que morreu o bacalhau
II
Com dinheiro havia a bula
Nesse tempo tão sacana
Uns podiam comer carne
e outros só a barbatana
III
Sou um pobre desgraçado
e valho pouco dinheiro,
Peço que me enterrem.
Á rota de um taberneiro
IV
E quando de mim há falta
neste mundo rancoroso
sou sempre um escondido,
como sendo um criminoso
V
Foi Pilatos; teu amigo
e Caifaz teu redentor
de que recebeste patacos
para entregar o Senhor
VI
Já com os trinta dinheiros
em afeição derradeira
foste acabar enforcado
nos braços de uma figueira
Quando após muito tempo se fala, ainda que ao de leve, em apresentar ao povo o "Enterro do Bacalhau", de novo a população se transforma e a giganta, prende de satisfação e metamorfoseia a monotonia dos seus dias simples na encenação de algo de belo, envolvente, artístico e de uma imponência espectacular. Os ensaios á noite, depois de longa jornada, de trabalho, poderiam tornar-se fatigantes, porém a força de vontade e o querer participar nesta festa tão arreigada á gente do Soutocico, ontem como hoje, tudo transcende.
Imagine-se a descida, da calçada, no centro, do lugar, em sábado de aleluia á noite, com, um matizado fantástico dos coloridos trajes, grotescamente iluminados pela, infinidade de archotes que acompanham o cortejo. A definição só pode ser uma: esplendoroso! Ultrapassa tudo quanto há de imaginável em teatro popular de rua.
(in Arrabal - Terra de Santa Margarida, Quatro Séculos de História
de Comissão Coordenadora das Comemorações do IV Centenário da Freguesia do Arrabal)



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