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sábado, 25 de fevereiro de 2012



ZÉ MELRO DO ANIS ESCARCHADO - Novos Contos não Urbanos


Zé Melro é franzino de estatura e há muito que a elegância o abandonou, como fez quase toda a gente à sua volta. Remete-se por agora às suas dimensões abonadas no sentido das larguras, que embrulha em roupa cinzenta e algo ausente de cuidados, em cujos brilhos apenas encontram reflexo nos olhos quase perdidos numa cara de lua cheia. Cara de cem rugas e cabelo grisalho sem linhas.
Quando vem aqui à taberna, senta-se sempre no mesmo banco e se lá está alguém, já sabe que tem de ceder o lugar... Encosta a barriga ao balcão e repete a solenidade:
"- Bota aí um escarchado!"
Dou meia volta e do armário do canto tiro uma velha bota de louça caldense e atiro-lhe para dentro a dose de anis costumeira que o mantém nos níveis que a sua precária dignidade precisa.
O resto da clientela já lhe conhece os estribilhos, mas gosta sempre de o ouvir porque a entoação das suas palavras desenha o curso dos ventos, ainda para mais quando o escarchado lhe entra no circuito sanguíneo e lhe abona o palavreado com o travo da erva doce. E espera que ele fale...
Zé Melro é um homem colocado no interior do seu tempo e de quando em quando, abre uma porta por onde se esgueira o seu pensamento e por isso, quase nunca lhe falta a clarividência da simplicidade. Os copitos a mais, em casa, preenchem-lhe a viuvez, pousando sobre a almofada da sua cama o vulto da sua Madalena.
- "Que já lá está!"
 Apesar da ter apenas a 4ª classe, lê escorreito e tudo o que apanha. E pensa firme.
"- É preciso ter cuidado, sabem?! Isto está perigoso. Anda aí uma rapaziada com umas ideias malucas e outra sem ideias. Nem se sabe o que é pior! Sobem-lhe à cabeça as importâncias e transferem o tampo das almofadadas cadeiras, ajustadas aos seus importantes rabos, para perto das cabeças e depois começam a pensar que são os mentores de todas as coisas. Substituem-se a Deus mas ignoram princípios e fins. Sou quase analfabeto mas não sou estúpido. O povo está fraco, só pensa nas suas saídas e há sempre gente má no limbo das portas. Esticam as orelhas e vão por ali fora a tratar das suas vidas, destratando pelo caminho a dos mesmos desgraçados de sempre.
O povo parece estar todo enfiado nas suas tocas, botando um olho de cada vez cá para fora para espreitar as pernas do mundo e se ele estiver de saias, se mudou as cuecas... Se tudo parece sossegado, volta p'rá toca e dorme.
As coisas estão como alguma fruta. Lisas por fora e vai-se a ver, podre por dentro. Desata tudo a cuspir e depois é o salve-se quem puder, uns a desviarem-se das cuspidelas dos outros!"
Faz-se silêncio. Uns gozam esgares superiores para afugentar a sua ignorância e o medo, outros embrulham o amarelo dos seus sorrisos nos guardanapos do balcão e baixam a cabeça em direção aos respetivos copos.
"-Olhem que isto não é do anis! Sou velho e viúvo mas não sou louco nem estúpido. Leio o livro do mundo há muitos anos e aprendo o que lá está!"
(c) António Luís
blog O homem das tabernas



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