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domingo, 26 de fevereiro de 2012

A VIDA QUE NOS IMPÔEM SEM NOS OUVIR - BAPTISTA BASTOS



Uma sondagem da Universidade Católica informa que 62% dos portugueses acha o Governo "mau" ou "muito mau."
Uma sondagem da Universidade Católica informa que 62% dos portugueses acha o Governo "mau" ou "muito mau." Era de esperar, e o próprio Passos Coelho sabia que isso iria acontecer. A verdade é que ele pouco mais pode fazer do que seguir as "instruções" da troika. Ou talvez pudesse; mas não quer. Aliás, tem tomado decisões muito para lá daquilo que a troika recomenda. E, manifestamente, está muito contente com isso, e com os aplausos que recebe.

O mal-estar acentua-se com o cortejo de infortúnios que nos impõem. Nunca será demais insistir nessa verdade, para que a memória se desvaneça, como é habitual nestes casos. O Executivo é permanentemente exautorado. A última desfaçatez popular foi com o Carnaval: não se acatou as decisões governamentais sobre a não-tolerância de ponto, e o ministro Miguel Relvas, muito desenvolto, veio para os jornais dizer que, para o ano, Carnaval nem vê-lo.

Na sequência destes factos, emergiu o folclore da ausência do dr. Cavaco a uma recepção na Escola Secundária António Arroyo. O homem ficou apavorado com a informação de que o aguardavam umas centenas de estudantes. E, à última hora, não apareceu, alegando um "imprevisto." A Imprensa saltou-lhe em cima. Ele perde "popularidade" a olhos vistos e as sondagens no-lo dizem. A António Arroyo, outrora chamada Escola de Artes Decorativas António Arroyo, é um alfobre de grandes figuras das artes e das letras portuguesas. De lá saíram, entre outros, Júlio Pomar, Vespeira, Costa Pinheiro, Mário Cesariny, uma lista muito apreciável de talentos.

Salazar e os seus áulicos desconfiavam do ensino que ali se ministrava. Um número importante de professores, provindo dos ideais republicanos e com a vocação pedagógica de não se limitar à normalização, formou, naquela Escola, não apenas grandes artistas, mas, também, cidadãos empenhados. A continuidade dessa tradição tem-se mantido, e o espírito de liberdade e de rebeldia não esmoreceu. O dr. Cavaco deve ter sido avisado de que os miúdos não eram de fiar. E não apareceu. Fique com quem praticou o ónus da culpa. Mas estas pequenas pusilanimidades pagam-se caro, e o dr. Cavaco tem sido fértil em dar razão a quem o detesta. Foi mais uma.

A Imprensa precipitou-se sobre o caso. E comparou-o ao "destemor" de Pedro Passos Coelho, que enfrentou uma multidão de protestatários, que o aguardava em Gouveia, durante uma visita à Festa do Queijo. Passos que, como se sabe, não morre de amores pelo dr. Cavaco, sentimento, aliás, correspondido, abichou o incidente para que se estabelecessem comparações. Porém, não é com "faits divers" desta natureza que se ganham as sondagens.

A troika continua a mandar em Portugal, a fazer conferências de Imprensa como pró-cônsules, a instalar-se em magníficos hotéis, a comer do bom e do melhor, a auferir balúrdios, e a tratar-nos como beócios. O extraordinariamente inesquecível Miguel Relvas continua dizer coisas absurdas e a demonstrar um contentamento infinito por ser ministro e tudo. E assim vai o País.


Um livro indispensável

No meio destas vergonhas, um espaço de felicidade e de prazer, com a leitura de "Largada das Naus", terceiro tomo da História de Portugal, de António Borges Coelho. Já neste jornal o ensaísta António Rego Chaves, meu amigo e camarada, se referiu, com minúcia e cuidado, a este trabalho exemplar. Mas nunca é demais voltar a falar no livro, tanto mais que há forças cada vez mais empenhadas em nos martirizar com inépcias e traições. "Largada das Naus" é um texto extraordinário, pelo rigor da investigação e pela beleza da forma. Sentimos o cheiro do povo, a coragem do seu empreendimento, soberano entre os outros; ouvimos os seus falares; sabemos da grandeza das suas próprias misérias. De repente, António Borges Coelho coloca o leitor nas naus, estamos todos com aquela gente suada e denodada, afinal gente vulgar que apenas quer fugir da pobreza e tentar, jogando a vida, melhorias e talvez fortuna. Dividido em pequenos capítulos, "Largada das Naus" é uma leitura fascinante, com a marca de um grande historiador e, por igual, de um grande prosador. Li, e estou a reler, com emoção e orgulho, este belíssimo texto, que resgata os meus desgostos e tristezas, e me dá ânimo para enfrentar os reveses actuais. Leitor dilecto: acompanhe António Borges Coelho neste empreendimento incomum. 



b.bastos@netcabo.pt


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