Posted in Costumes
Albertina e Tomás entraram para a escola no mesmo dia. Juntaram-nos na mesma sala de aula e aí iriam permanecer enlaçados durante os quatro anos seguintes
Ela reparou logo no colega. Melhor dizendo fixou aquela cabeça cheia de cabelos encaracolados e imaginou-se com os seus deditos a abrir caminhos e descobrir os segredos que aqueles espaços abertos na farta cabeleira deveriam conter.Ele era como tantos outros rapazes de seis anos nas suas brincadeiras das quais as meninas eram excluídas. Não conhecia, no entanto, ainda, a persistência de Albertina que com o decorrer dos meses conseguiu aquilo que nem a mãe de Tomás tinha obtido, a possibilidade de usar livremente as suas mãos nas ondas do seu cabelo.Cresceram, mudaram de ciclo e de escola e o seu laço manteve-se. O passar dos anos tinha-lhes permitido atingir um novo estatuto, agora eram considerados namorados sem nunca terem dado um beijo.Um dia ele comunicou-lhe que os pais tinham arranjado trabalho no estrangeiro e que iria partir com eles. Entre lágrimas, abraços, soluços e os seus primeiros beijos, Tomás prometeu-lhe que voltaria e que, entretanto, daria notícias. Numa pálida manhã, Albertina que tinha o cuidado de ficar sempre na carteira atrás de Tomás para o poder observar livremente, apenas pôde olhar para a cadeira vazia, imaginar os seus caracóis e chorar. Ninguém lhe fez perguntas pois todos perceberam.Tomás nunca escreveu e a vida prosseguiu. Quando acabou a escolaridade obrigatória, Albertina foi trabalhar. As posses da família não eram suficientes e mais um salário, por pequeno que fosse, era sempre bem-vindo.Ela tinha agora dezanove anos e podia dizer-se que era uma rapariga atraente. Continuava sem namorar, não porque pensasse especialmente em Tomás que se tinha transformado numa doce recordação mas, confessava ela às amigas, «não aparecia ninguém que lhe acelerasse o coração».Numa tarde quente de final de primavera, ao acabar o seu turno no supermercado, Tomás estava à sua espera. Ao longe viu-o e enquanto corria para se pendurar no seu pescoço notou as mudanças nele; mais alto, mais bonito e com o cabelo mais curto embora com os caracóis de sempre. Não havia necessidade de muitas palavras, apenas sentimentos e emoções. Teriam todo o tempo do mundo para colocar a conversa em dia.Os anos passaram e quando Albertina engravidou decidiram casar. Iam a caminho das vinte e cinco primaveras; ela continuava com o seu trabalho e ele era operário especializado na fábrica do papel. Tinham o suficiente para levar uma vida digna e poderem alargar a família.Das ecografias realizadas sabiam que iam ter um rapaz. Albertina amante da história e com muitas horas de leitura devotadas à civilização romana decidiu que o seu rebento se chamaria César.Nem tudo correu bem durante o parto. O bebé nasceu saudável mas as implicações para a vida do casal foram determinantes: Albertina não poderia ter mais filhos. O sonho da família alargada esvaíra-se.Vagarosamente, ao ritmo do crescimento dos cabelos de César, Albertina votou ao desamparo os caracóis do marido. Quando este, como forma de protesto silencioso, chegou a casa com o cabelo cortado com pente zero, ela fingiu não reparar. Tomás, em resposta, foi-se deixando absorver pelo trabalho e pelo silêncio.César cresceu mimado por todos. Cada progresso, cada gesto e ato eram tidos como prova que estava ali um génio, o que o levou com o passar do tempo a interiorizar essa condição.Terminou a escola obrigatória sem dificuldades e sem trabalho árduo. Ao entrar no ensino secundário, as suas ambições eram ilimitadas, não sabendo muito bem se iria para astronauta ou para médico. Dois anos depois, ao perceber que não conseguia superar os obstáculos impostos pelas disciplinas ligadas às ciências exatas, decidiu trocar para outra área. Sem nunca baixar a crista da arrogância, propunha-se agora a ser um brilhante advogado. Ao longo dos cinco anos seguintes, foi-se arrastando pelos bancos do liceu. Quando entrou na universidade num curso que constituiu para si uma quarta escolha, ainda não tinha compreendido que lhe faltavam hábitos de trabalho e sacrifício.Se Tomás pudesse, há muito que o seu filho lhe estaria a fazer companhia na fábrica do papel. Mas Albertina, acérrima defensora das capacidades do seu menino, opunha-se frontalmente a tal coisa e afirmava convictamente: «o meu filho irá ser doutor».Numa tórrida tarde de verão, César defendeu a sua tese de licenciatura perante o olhar babado de sua mãe e o alheamento do pai. No dia seguinte, anunciou aos seus pais que iria tirar o mestrado para poder ter mais oportunidades de emprego.Albertina que não gostava do termo “mestre”, fazia-lhe lembrar sempre mestre de obras ou mestre carpinteiro, lá ia dizendo às suas colegas no supermercado, ao ser inquirida acerca do filho, que este estava a estudar para ser mais do que doutor.Entre namoradas ocasionais, farras bem regadas e inúmeros tempos de ócio, César terminou o mestrado. Ia então fazer 30 anos e prometeu aos pais que iria procurar emprego, mas que entretanto se tinha decidido inscrever num doutoramento.Perante a tímida oposição do pai e a falta de entusiasmo da mãe, César continuou os estudos, agora para ser «doutor, dos doutores» como dizia a mãe às amigas, quase todas já avós, para inveja de Albertina.Passaram três anos. César continuava a estudar e ia adiando as possibilidades de emprego. Uma noite, ao jantar, Tomás decidiu quebrar o seu habitual mutismo e anunciou ao filho que tinha chegado a acordo com a fábrica para se vir embora. Esta dar-lhe-ia uma indemnização, ele teria direito ao subsídio de desemprego e quando este acabasse iria para a reforma. Tinha quase 60 anos, a paciência esgotada para o trabalho e a força para os turnos. Depois acrescentou secamente: «César, está na altura de arranjares emprego e procurares vida».César argumentou que, se o pai trazia uma indeminização, podia esperar que ele terminasse os estudos. Este, com toda a paciência do mundo, respondeu-lhe que o dinheiro da indeminização seria para precaver o futuro: «não caminhamos para novos, sabes. Para mais vou passar a ganhar muito menos». Acabados os argumentos, seguiu-se o silêncio. César compreendeu que não iria ter o habitual apoio da mãe que evitava olhá-lo. Sentindo-se traído, levantou-se e saiu de casa.Nessa noite, com os amigos, César desabafou e acusou injustamente os pais de tudo e mais alguma coisa. Entre apoios e silêncios, alguém lhe disse que o melhor seria emigrar. A noite prolongou-se e a raiva alimentada pelo álcool ia-se alojando na parte mais funda do seu coração.Na tarde do dia seguinte. César acordou com uma dor de cabeça infindável e com uma frase a martelar-lhe o cérebro «na Suécia, ganha-se bem». Tomou a decisão de partir. Conseguiu um contato de um português que abrigava conterrâneos recém chegados a esse nórdico país, pediu algum dinheiro emprestado a um amigo e foi, de imediato, comprar um bilhete de avião. Ao chegar a casa comunicou a decisão aos pais. «Parto amanhã», concluiu com irritação, perante o choro incontrolado da mãe e o habitual silêncio do pai.
Partiu numa tarde soalheira de outono. Consigo levava uma mala com roupa, um computador, três centenas de euros, uma pena sem fim de si próprio e o coração cheio de rancor para com os pais que acusava de todas as suas desgraças.
Praça do Bocage
Sem comentários:
Enviar um comentário