Esta é a história do homem que queria enriquecer pessoas a ver anúncios na internet. Ficou-lhes com o dinheiro e fugiu. A polícia de Portugal e Espanha procura-o.
Em agosto de 2015, uma investigação do El País colocou o nome de Rui Miguel Pires Salvador nas bocas do mundo. O português, um ex-camionista com “dotes de apresentador evangélico”, seria responsável por um esquema em pirâmide que teria prejudicado — pelo menos — dois milhões de pessoas. Chamava-se LibertaGia.
Durante dois anos, Rui Salvador, juntamente com os principais líderes da LibertaGia, uma marca de serviços multimédia, com sede em Lisboa, que escondia um esquema fraudulento, viajou por dezenas de locais, recrutando novos afiliados e enchendo os bolsos (literalmente) com dinheiro.
Com muito esforço, vídeos de propaganda e uma lábia de fazer inveja aos apresentadores de televendas, Salvador conseguiu estender a rede LibertaGia a 26 países. Em Portugal, não se sabe ao certo quantas pessoas terão investido na empresa de capital brasileiro, mas os comentários dos lesados multiplicam-se na sua página do Facebook. “Somos milhões de afetados que foram roubados, mas um dia vocês pagarão”, escreve um antigo afiliado. “Sou vítima deste embuste”, admite outro.
Uma coisa, porém, parece ser certa: de Rui Salvador não há nem sinal. Não atende o telefone e a casa do Montijo, onde vivia com a família e os três filhos, aparenta estar vazia. Como um truque de magia, o dinheiro investido por milhões de pessoas também parece ter desaparecido. Os antigos diretores apontam o dedo uns aos outros. Cristina Vieira, antiga diretora de operações, diz ser apenas mais uma das vítimas.
Um projeto que ia “mudar o mundo”
A história da LibertaGia começa em 2012, altura em que foi criada por um grupo de investidores brasileiros conhecido por G12. De acordo com a investigação do El País, estes brasileiros seriam especialistas em esquemas piramidais e teriam fugido do Brasil na sequência do endurecimento das leis depois do caso Telexfree, que afetou vários milhões de pessoas.
Depois de um ano de amadurecimento, o projeto foi apresentado no Parque das Nações, em Lisboa, em outubro de 2013, perante um grupo de possíveis interessados. Com um investimento inicial de um milhão de euros, a LibertaGia prometia criar mais de 50 novos postos de trabalho. No espaço de dois anos, o montante investido ascenderia aos quatro milhões de euros.
Na apresentação, realizada no Ocenário de Lisboa, foi anunciado o primeiro produto da empresa — o Live in Box, uma espécie de Dropbox que, sem nunca ter sido lançado, rendeu vários milhões de euros. Na verdade, a versão experimental só ficou pronta muito tempo depois — em setembro de 2014.
O evento chegou a ser notícia em alguns órgãos de comunicação portugueses. A Agência Lusa chegou mesmo a falar com um dos mentores do projeto, Gilberto Lima, primeiro chefe de operações da LibertaGia em Portugal. Em declarações à Lusa, Lima disse que o projeto estava a ser desenvolvido “há mais de um ano” e que “assistir finalmente ao seu lançamento” era “um sonho realizado”.
"Viajei por todo o mundo e escolhi Lisboa para ser o coração deste projeto que acredito que irá mudar o mundo."
Lima terá conhecido Rui Salvador através da Bbom, uma empresa brasileira que está a ser investigada pelo Ministério Público de São Paulo por suspeitas de se tratar (também) de um esquema em pirâmide. O Observador contactou as autoridades brasileiras no sentido de tentar confirmar a informação avançada pelo jornal espanhol. Porém, até ao momento, ainda não obteve resposta.
Foi nesta altura que José (nome fictício) ouviu pela primeira vez o nome “LibertaGia”. A empresa era então notícia nos jornais nacionais, ao mesmo tempo que anunciava a criação de “imensos postos de emprego em Portugal”. As notícias chamaram a atenção de José, que começou a seguir de perto a “empresa de tecnologia com capital brasileiro”.
E então começaram as campanhas de publicidade. “Os auto-intitulados líderes da empresa começaram a fazer uma campanha a larga escala, com reuniões por todo o país, vídeos na internet, no Youtube e no Facebook”, contou o antigo afiliado madeirense. “Foi isso que me chamou a atenção. Fiz um investimento inicial de cerca de 1.599 dólares norte-americanos (1.421,3 euros). O dinheiro era todo em dólares.”
Para José, foi o início de tudo. Estávamos em novembro de 2013.
O negócio da LibertaGia era simples: em troca de um investimento inicial, depositado numa conta do Montepio em nome da Joiadmirada, uma empresa criada para o efeito, os afiliados tinham acesso a um escritório virtual (backoffice), onde podiam seguir o rasto do dinheiro que iam ganhando. E como é que o ganhavam? A sua única tarefa era, simplesmente, o visionamento diário (e obrigatório) de anúncios na internet.Quanto maior fosse o investimento inicial, maior seria a comissão obtida pelos anúncios visionados.
“Cada pessoa investia o que queria e existiam cinco níveis, ou seja, cinco maneiras e quantias que se podiam investir”, explica José. O primeiro pacote era grátis e os restantes tinham valores específicos. O mais barato, o “Booster”, correspondia a 339 dólares (304 euros), e os seguintes a 899, 1.599, 2.999 ou 5.999 dólares — ou seja, 797, 1.434, 2.690 ou 5.380 euros, respetivamente.
De acordo com os diferentes tipos de pacote, José teria direito, teoricamente, a um retorno semanal de 100 dólares (90 euros). Os níveis também determinavam o número de visionamentos, ou “tarefas”, por dia. No nível máximo, por exemplo, os afiliados tinham de assistir a cinco anúncios diários, de 30 segundos cada um.
“Funcionava a partir de um sistema de multinível, ou seja, através da venda de produtos online em troca de uma gratificação ou bónus sobre todas as pessoas inseridas no esquema. Não era a venda tradicional de um produto”, explicou o antigo afiliado.
Ao fim de quase dois anos de trabalho diário, José conseguiu “amealhar” cerca de 85 mil dólares (76 mil euros). Na conta do Clickmaster, tinha outros 23 mil (20 mil euros). Porém, nunca chegou a ver um único tostão. Nem ele, nem “cerca de 98% das pessoas”, garantiu.
Com o passar do tempo, a LibertaGia foi anunciando novos produtos, como o EasyBay, uma espécie de OLX, ou o LibertaGia News, um agregador de conteúdos que funcionava como um feed de notícias. Com os novos produtos vieram também novos investidores.
Aliciados pela promessa de dinheiro fácil, foram muitos aqueles que, como José, se deixaram seduzir pela conversa de Rui Salvador e restante companhia. “Nunca ninguém entrava sozinho. Levavam sempre consigo amigos e familiares”, admitiu o madeirense. Isto porque, por cada novo membro associado à mesma rede, recebia-se um bónus direto entre 30 e 300 dólares (27 e 269 euros). “A rede foi crescendo de uma maneira impressionante. Chegaram a falar em três milhões de membros em todo o mundo.”
“Convencemos os nossos amigos e familiares que era um ótimo negócio e, no final, ficámos muito mal vistos e a sentir-nos culpados e tristes porque também perderam o seu dinheiro.”
Numa altura de crise, a LibertaGia tornou-se, para muitos, a solução perfeita. Os lucros de mais de 300% eram como um oásis num deserto. De tal forma, que muitos chegaram mesmo a pedir dinheiro emprestado para entrar no esquema. “A LibertaGia era a solução para tudo”, desabafou José.
Uma joia em Carcavelos e uma conta nas Bahamas
Apesar de ter sede em Lisboa, a morada fiscal da LibertaGia estava em Nassau, capital das Bahamas, uma zona offshore. Para pagar aos trabalhadores e para receber o dinheiro dos investidores, Gilberto Lima criou em setembro de 2013 a Joiadmirada Unipessoal Lda., uma sociedade por quotas com sede no número 39 da Rua Catembe, em Carcavelos, com um capital de cinco mil euros.
Durante o primeiro mês, a LibertaGia começou por funcionar na casa de Cristina Vieira que, na altura, ainda não tinha assumido o cargo de diretora de operações. “Os trabalhadores mais antigos costumavam dizer que começaram por trabalhar em casa da Cristina”, contou fonte próxima da empresa ao Observador.
Passado um mês, a empresa instalou-se num edifício de escritórios na Alameda dos Oceanos, no Parque das Nações. Foi aí, no piso um do “Edifício Smart” que, durante cerca de um ano, funcionou a sede da LibertaGia, sob a direção de Gilberto Lima. Até que, em março de 2014, tudo mudou.
De algum modo, Rui Salvador e Cristina Vieira conseguiram afastar (quase) todos os brasileiros que, desde o início, trabalhavam na LibertaGia. A pouco e pouco, funcionários e gestores começaram a abandonar a empresa, ao mesmo tempo que os dois portugueses começavam a operar o seu próprio esquema fraudulento. Ficou apenas Edson Silva, namorado de Cristina Vieira.
Como é que isto aconteceu, ninguém parece saber ao certo. “Houve vários conflitos na empresa e falava-se, sem existir nada por escrito que o confirmasse, que o Rui Salvador e o Edson Silva se tinham tornado nos proprietários da empresa”, contou José. “A Cristina aparece sempre em segundo plano nesta nova fase, intitulando-se como diretora de operações.” Fonte da empresa disse ao Observador que os brasileiros estariam ilegalmente em Portugal, o que poderá ter contribuído para a sua saída abrupta.
A saída de Lima é confirmada pelos registos do Portal da Justiça. A 12 de março de 2014, o brasileiro cessou funções enquanto sócio-gerente da Joiadmirada. A substitui-lo ficou Rui Pires Salvador. “Tinham mudado as regras do jogo”, lembrou a mesma fonte.
O camionista, a cartomante e o falso advogado
A partir daí, a empresa passou a ser dirigida exclusivamente pelo presidente Rui Salvador, um antigo camionista e empregado de mesa. Apesar disso, fontes próximas da empresa e antigos filiados garantem que Salvador nunca foi presidente de coisa nenhuma. À frente da LibertaGia estaria a número dois, Cristina Vieira, uma estudante de Direito que se dizia ex-militar, cartomante e que se apresentava como advogada.
O Observador contactou Cristina Vieira, mas a antiga diretora de operações recusou-se a falar sem consultar primeiro o advogado, que se encontrava fora do país. Numa entrevista exclusiva à SIC, em agosto, Cristina Vieira, que se apresentou como “procuradora da LibertaGia”, disse fazer parte do grupo de vítimas da empresa. Ao canal de televisão, admitiu ainda não ter ganho nada, porque a empresa onde foi procuradora, à comissão, “ganhou nada”.
Questionada sobre a existência de um esquema piramidar, a ex-diretora de operações disse desconhecer a existência de qualquer tipo de burla e afirmou que, para si, a empresa nada tinha de fraudulenta.
Com a saída dos brasileiros, a empresa passou a ser constituída maioritariamente por familiares e amigos de Cristina Vieira que, depois da saída dos G12, transformou a LibertaGia numa espécie de empresa familiar. Só no departamento de recursos humanos, trabalhavam três familiares da estudante de Direito. Um dos principais líderes da empresa seria, inclusive, o seu próprio namorado, Edson Silva. Filiado de topo, o brasileiro trabalharia ainda como assessor e conselheiro.
Edson Silva costumava acompanhar Rui Salvador nas suas viagens, apresentando-se como líder europeu da LibertaGia. O que é que isso queria dizer em termos práticos? “Nem eu sei”, admitiu José. “O Rui e o Edson são os únicos que deram a cara desde o início. Fizeram vídeos atrás de vídeos, cheios de mentiras. O Edson Silva era impressionante. Falava, falava, filosofia atrás de filosofia. E as pessoas calavam-se e acreditavam.”
Apesar de nunca ter ocupado efetivamente um cargo de topo, o brasileiro era visto todos os dias nos escritórios da empresa e participava em todas as reuniões. Era, juntamente com Rui Salvador, uma espécie de visionário e génio criativo. Com o ex-camionista, costumava discutir a criação de novos produtos. “Uma vez tiveram a ideia de criar extintores personalizados”, contou fonte da empresa. Porém, a ideia nunca andou para a frente.
Durante os cerca de dois anos que esteve ativa, a LibertaGia chegou a empregar perto de 30 pessoas, um número muito inferior ao originalmente divulgado por Gilberto Lima em 2013. Porém, apesar da aparente simpatia dos diretores, o ambiente no interior da empresa não era melhor. As discussões eram constantes e a gritaria diária, contou ao Observador fonte ligada à empresa.
Cristina Vieira fazia questão de dizer aos seus empregados que eram dispensáveis. “Se não querem trabalhar, há quem queira”, costumava dizer a alto e bom som. Mas a situação de muitos deles fazia com que continuassem na empresa. “Ganhava-se bem”, admitiu a fonte da empresa. Uma das recepcionistas, com um filho pequeno, “precisava mesmo do dinheiro” e outra trabalhadora, do departamento de suporte, era licenciada em nutrição.
Na LibertaGia, trabalhavam ainda Belmiro Pereira Oliveira, advogado, e António José Ferreira Valido, contabilista, que ajudavam a credibilizar o projeto. Porém, de acordo com a Ordem dos Advogados, “na base de dados” não existe nenhum advogado de nome Belmiro Pereira Oliveira. Já António Valido, encontra-se suspenso da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC) até 2017.
Apesar de não ter explicado o motivo da sanção disciplinar, Roberto Ferreira, assessor de imprensa da OTOC disse ao Observador que a suspensão foi aplicada em 2014, com uma duração de três anos. De acordo com o Artigo 66.º do Estatuto da Ordem, esta pode ser imposta em “casos de negligência ou desinteresse” dos deveres profissionais. Uma vez aplicada a um técnico de contas, este “não pode exercer”.
Para os ajudar na difícil tarefa de gerir cerca de três milhões de afiliados em locais tão distintos como a China ou a Polónia, Rui Salvador e os restantes membros da direção nomearam “líderes” em diferentes países e regiões. Estes eram responsáveis pela gestão local do negócio e pela realização de reuniões, que tinham como objetivo angariar novos afiliados.
Um dos maiores investimentos terá sido feito por um cidadão chinês, que terá investido cinco milhões de euros na LibertaGia, disse fonte próxima da empresa ao Observador.
Em Espanha, um país que, desde o início, desempenhou um papel central na trama da LibertaGia, os representantes eram Javier Figueiras e Benjamin Ponce, da Corunha, que surgiam por diversas vezes na companhia de Rui Salvador e Edson Silva. “Os ‘grandes’ faziam uma visita de cortesia de vez em quando, para nos acalmar e dizer que estava tudo bem”, explicou José.
Essas “visitas de cortesia” aconteciam geralmente em hóteis de luxo, em salas alugadas pelos próprios afiliados. “Era frequente, eles nunca pagavam nada. Numa dessas reuniões chegaram ao cúmulo de pôr uma caixa à entrada da sala, do género das caixas das esmolas das igrejas, para recolherem dinheiro para ajudar a pagar o aluguer”, lembrou o antigo afiliado.
Nessas reuniões era costume os novos membros pagarem a subscrição anual diretamente aos diretores da empresa. Esse pagamento, ao contrário do que normalmente acontecia, não era feito por transferência bancária para a conta da Joiadmirada. A maioria das vezes era pago em dinheiro vivo. “Lembro-me de um episódio em que o Edson Silva veio à Madeira e o dinheiro era tanto que teve de pedir a um membro para ficar com uma parte e fazer-lhe uma transferência no dia seguinte.”
"O dinheiro era tanto que teve de pedir a um membro para ficar com uma parte e fazer-lhe uma transferência no dia seguinte."
Apesar de estar “tudo bem” e de o negócio ir de vento em popa, os primeiros problemas começaram a surgir logo em 2013, altura em que a impossibilidade de levantar o dinheiro que estava no backoffice levou a que muitos afiliados contactassem a empresa e se mostrassem indignados com a situação.
Até que, no início de 2014, Rui Salvador fez o anúncio há muito esperado — o dinheiro ia finalmente poder ser transferido para as contas bancárias de milhares de afiliados. E em euros, claro.
“No início foi-nos dito que a transferência iria demorar cerca de três meses. No entanto, apenas meia dúzia de pessoas no mundo tiveram a sorte de receber o dinheiro”, salientou José. Enquanto isso, o presidente da LibertaGia continuava com a sua campanha online, com vídeos promocionais nos quais dizia que a “empresa paga” e que tudo estava a funcionar como devia ser.
Mas não estava. Mais uma vez, as queixas dos afiliados levaram Salvador a fazer um novo anúncio — devido aos custos elevados das transferências e aos problemas que tinham sido criados por estas, teria de ser criada uma nova solução para fazer os pagamentos. Foi aí que surgiram os cartões.
A telenovela dos cartões que nunca chegaram ao destino
Em agosto de 2014, Rui Salvador anunciou que, para os afiliados poderem levantar o dinheiro virtual, seriam criados cartões pré-pagos, em parceria com uma empresa italiana chamada Senza Frontiere, pertencente a um outro brasileiro — Reinaldo Moreira dos Santos Júnior que, durante pouco mais de dois meses (julho e setembro), foi também sócio-gerente da Joiadmirada.
A Senza Frontiere teria uma parceria com uma empresa londrina de comercialização de cartões pré-pagos, osASAP Cards.
“Foi então anunciado que iriam deixar de fazer transferências e que passariam a usar o cartão ASAP. Resumindo: o cartão era a descoberta da pólvora e a solução para converter o dinheiro virtual em dinheiro vivo.” Ou pelo menos devia ser. Como tudo na LibertaGia, o cartão também tinha um preço. O mais barato custava 29,99 euros e o mais caro 59,99 euros. Cada um tinha um limite de levantamento específico por ano.
Devido às quantias altas que a maioria dos afiliados tinha amealhado, o cartão mais caro, o “super”, tornou-se inevitavelmente no mais popular. Apesar disso, a empresa anunciou que, durante uma fase experimental, só seria possível transferir 500 dólares (448 euros) para o cartão. “Foi um grande balde de água fria”, desabafou José. “E, claro, aconteceu aquilo de que estávamos à espera — apenas meia dúzia de pessoas recebeu os 500 dólares.”
Mas não só. A maioria nem sequer chegou a receber o cartão. “Eu pedi um cartão para mim, mas nunca o recebi. Aliás, isso aconteceu com milhares de pessoas. Inventaram mil e uma desculpas, disseram que o erro era nosso, que tínhamos dado o código postal errado ou que a morada estava incompleta. E ficaram com o nosso dinheirinho.”
“Tudo o que eles nos diziam para fazermos, nós fazíamos. Havia sempre a esperança de que ainda conseguiríamos recuperar o nosso dinheiro.”
Até dezembro de 2014, altura em que foram enviados os cartões, a LibertaGia investiu tudo o que tinha em (mais) publicidade e com a organização de eventos nacionais e no estrangeiro. Entre 20 e 21 de setembro, foi realizada a festa do primeiro aniversárioda empresa. O evento, realizado no Hotel Tivoli do Parque das Nações, reuniu várias dezenas de afiliados e “líderes” de todo o mundo, que se juntaram à festa por um preço “simbólico” de499 dólares (448 euros) por pessoa.
Entretanto, as subscrições anuais começaram a pouco e pouco a caducar. “A maioria das pessoas, a trabalhar há um ano, alcançou facilmente quantias de dinheiro suficientes para poder subir de nível. Assim, a renovação seria mais cara, porque correspondia a um plano mais alto”, explicou José.
Ou seja, quem tinha pago o plano mais baixo teria, muito provavelmente, de pagar a subscrição de um dos planos mais caros. Ao fim de um ano sem acesso ao dinheiro ganho, e com o investimento inicial perdido, muitas pessoas foram obrigadas a gastar altas quantias de dinheiro para continuarem afiliadas à LibertaGia.
O fim da linha
O ano de 2015 começou conturbado para a LibertaGia. À indignação dos afiliados, juntou-se a revolta dos próprios membros da empresa. As discussões, cada vez mais frequentes na sede lisboeta, levaram à saída abrupta de dois dos “líderes” mais importantes — os espanhóis Javier Figueiras e Benjamin Ponce.
A poucos meses do fecho da LibertaGia, Figueiras e Ponce aperceberam-se de que o fim estava próximo. Fingindo-se de vítimas, abandonaram a empresa e os cargos que, com tanta dedicação, tinham ocupado durante o último ano. Uma vez fora da LibertaGia, os dois espanhóis dedicaram-se a atacar o nome da empresa.
Recorrendo às redes sociais, Ponce iniciou uma campanha de propaganda contra a empresa portuguesa, acusando-a de ser fraudulenta e de ter enganado milhões de pessoas — incluindo ele próprio. Por sua vez, Rui Salvador acusou-o de querer “deitar a empresa abaixo” e de ter causado “um enorme prejuízo”. “Querem deitar a empresa abaixo e prejudicar o desenvolvimento de todo o nosso trabalho, virando as costas à suas redes, abandonando essas pessoas de forma irresponsável e por interesse pessoal”, disse num vídeo publicado no Youtube.
No seio da sede lisboeta, as coisas também não iam bem. O fecho constante do escritório, que coincidia sempre com a mudança do sócio-gerente da Joiadmirada, levou a que muitos trabalhadores apresentassem a demissão. “Para muitos, foi a gota de água”, referiu fonte próxima da empresa.
Em março, os ordenados começaram a ser faseados. Uma parte passou a ser paga no início de cada mês, a outra no fim. A 15 de abril, foi enviada uma carta a todos os empregados a informá-los de que o escritório na Avenida D. João II ia fechar para contabilidade e que teriam de passar a trabalhar em casa.
No mês seguinte, a LibertaGia mudou novamente de local, passando para um novo escritório no “Edifício Mar Vermelho”, junto à NOS, no Parque das Nações. A Joiadmirada, então em nome de Rui Salvador, foi também deixada para trás. Em maio de 2015, foi criada a Libertagia Mondial Portugal S.A. e foi anunciado um processo de restruturação, que estaria dependente de uma parceria com um novo investidor.
“Quando mudaram para o novo edifício, disseram que era uma experiência. Que havia um novo investidor e que iam ver como as coisas corriam”, contou a mesma fonte. Entretanto, do outro lado, os afiliados estavam completamente às escuras. “Apenas diziam de vez em quando que a empresa estava num processo de reestruturação. A LibertaGia estava num silêncio quase absoluto”, referiu José.
Pouco tempo depois, foi anunciada como cliente premium uma agência de viagens holandesa online, a Booking to You. “Nunca lhe chamaram parceiro, apenas cliente premium“, lembrou o madeirense. O Twitter da empresa, escrito em português, está parado desde 18 de junho.
Passado pouco tempo, o nome de Rui Salvador e da LibertaGia chegou aos jornais. A empresa, assim como o seu presidente, estaria a ser investigada pelas autoridades espanholas. Quando o escândalo rebentou, em agosto de 2015, há muito que os trabalhadores tinham abandonado o escritório no Parque das Nações. Vários ordenados ficaram por pagar.
A 28 de agosto deste ano, a empresa fez o comunicado oficial. “A campanha sensacionalista alimentada por alguns associados insatisfeitos, por concorrentes sem escrúpulos e advogados gananciosos, teve como consequência a perda do principal ativo de que éramos titulares perante o mercado”, anunciou na sua página do Facebook. “A atividade futura da LibertaGia ficou irreversivelmente prejudicada.”
Estima-se que entre 1,8 e 2,425 milhões de pessoas tenham investido no esquema em pirâmide montado por Rui Salvador e os restantes membros da LibertaGia. O total de dinheiro investido, de acordo com uma firma de advogados espanhola, rondará os 1.050 e os 1.268 milhões de dólares.
Em Espanha, um dos países mais afetados, existem cerca de 250 mil lesados. Pelo menos 500 já aderiram à Plataforma de Afectados de LibertaGia, um grupo criado na sequência da queixa apresentada à Guardia Civil a 10 de abril deste ano.Cinco deles são portugueses.
Para entrar na plataforma, é necessário fazer uma inscriçãoonline e pagar uma quota de 51 euros para ajudar nos custos do processo, estimado em 150 mil euros. A representar a plataforma está a Lemata Abogados, uma firma de advogados que diz só ter aceitado o caso porque é “possível que os lesados recuperem o seu dinheiro, ou parte dele”. “Esperamos que os responsáveis sejam justamente punidos”, disse ao Observador Rocío Calvente Martín.
Ao Observador, o representante da Lemata Abogados referiu que a inscrição na plataforma é a única forma de garantir a recuperação do dinheiro investido por milhões de pessoas. “Acreditamos que o que aconteceu não pode continuar sem ser punido, em particular porque a maioria dos afetados são pessoas normais, que depositaram o seu dinheiro, entusiasmo e trabalho no projeto que a LibertaGia lhes vendeu. O que aconteceu foi um verdadeiro golpe para todos eles.”
Apesar da boa vontade dos advogados espanhóis, a plataforma também está a ser investigada em Espanha. Por detrás do grupo de lesados estão, nem mais nem menos, Javier Figueiras e Benjamin Ponce, os antigos “líderes” espanhóis da LibertaGia.
Portugueses pagaram, mas não se queixaram
Nem o desaparecimento súbito de Rui Salvador, nem as notícias do esquema em pirâmide por ele criado, parecem ter sido suficientes para levar os lesados portugueses a apresentarem queixa junto das autoridades competentes. Na Deco, os contactos a propósito da empresa não deverão chegar a uma dezena e, de acordo com fonte oficial da Polícia Judiciária, apenas duas pessoas apresentaram queixa. Estas estão a ser investigadas pelas autoridades.
Devido à natureza dos contactos (a maioria feita por telefone), a Deco não tem um registo exato do número de queixas, uma vez que as chamadas telefónicasnão ficam gravadas. Nos casos de burla, a entidade não pode representar os lesados, mas podereencaminhar as queixas para as autoridades.
Na Deco, as primeiras queixas surgiram em finais de 2013, altura em que começaram a surgir problemas com os pagamentos. Desde então, a entidade tem recebido contactos esporádicos, mas que continuam a “não ser significativos”, garantiu ao Observador André Gouveia, analista financeiro da Deco Proteste.
André Gouveia admitiu ter ficado surpreendido com número relativamente pequeno de contactos feitos a propósito da LibertaGia. “Pela dimensão do caso pensei que haveria um maior número de pessoas a contactar-nos”, disse o analista financeiro. “E também com as notícias, pensei que as pessoas se iam sentir mais encorajadas em falar. Em casos semelhantes, como o da Telexfree, o número de queixas foi muito superior.”
Para o analista financeiro da Deco Proteste, poderá ter sido “por vergonha” que muitos portugueses escolheram não apresentar queixa. “As pessoas têm vergonha, não querem admitir o que lhes aconteceu. E também por haver um certo cepticismo, que é característico dos portugueses.” Para além disso, houve “um certo esvaziamento”, o que levou muitas pessoas a perderem a esperança de reaver o dinheiro perdido.
“As pessoas têm vergonha, não querem admitir o que lhes aconteceu. E também por haver um certo cepticismo, que é característico dos portugueses."
Nestes casos, André Gouveia garante que o mais importante é a prevenção “e não o tentar remediar”. Nesse sentido, “temos tentado informar o público em geral”. O analista acredita que o quadro legal também “não é muito encorajador”. “As pessoas põem uma cruz no assunto e fica por aí”. É por isso que “esperamos que haja alterações legais, de modo a travar estas atividades”.
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Texto: Rita Cipriano
Fotografia: Michael M. Matias
Design: Andreia Reisinho Costa
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