O "assassino n.º 1" do apartheid vai ser libertado. Capítulo encerrado?
Eugene de Kock passou 20 anos com remorsos e a pedir perdão pelo que fez.
Na África do Sul do apartheid havia um homem conhecido por "Prime Evil" (mal supremo). Era racista, assassinava, torturava, manipulava, destruía — e obedecia a ordens. Ele, que no tribunal admitiu ser culpado de tudo o que era acusado e ainda de mais, foi condenado a prisão perpétua. Os chefes ficaram à solta.Agora que passaram 20 anos do fim do regime de segregação racial, numa África do Sul que já não questiona a justiça diferenciada — na época nem todos entenderam que tão poucos fossem para a cadeia —, há quem defenda que chegou o momento de completar a reconciliação. Por isso, Eugene de Kock, o “assassino n.º 1” do regime racista, vai ter liberdade condicional. O anúncio foi feito nesta sexta-feira pelo ministro da Justiça, Michael Masutha; a decisão foi tomada “de acordo com a Constituição” para casos semelhantes e em nome “do desenvolvimento da nação”.
“Penso que isto encerra um capítulo da nossa História e que a libertação dele vai ajudar na reconciliação, porque ainda há muita cosia que temos de fazer, enquanto país”, disse Masutha, citado pela BBC. Sandra Mama, viúva de Glenack Mama, uma das centenas de vítimas de De Kock (foi morto em 1992), concorda: já passou tanto tempo, disse, já é possível olhar para trás e perceber que a condenação do assassino foi justa, que os mandantes ficaram impunes mas que o que importa ainda é a reconciliação.
Sendo uma ferida, Eugene de Kock já não dói tanto. O comportamento do antigo coronel da temida unidade da polícia política Vlakplaas, que tem hoje 66 anos, ajudou. Dizem os artigos publicados na imprensa desde que a liberdade condicional começou a ser considerada, há dois anos, que é um homem carregado de culpa, cheio de remorso, que passou anos a pedir perdão — contactou muitas vítimas e familiares de vítimas, para se explicar.
O que surpreendeu muitos no percurso de Eugene de Kock, que passou 20 anos na cadeia, foi não ter tentado mostrar-se como um novo homem. Tão-pouco quis aparecer à opinião pública como um bode expiatório, e isto foi claro desde o início do processo contra si — foi preso, julgado e condenado por 89 crimes, e testemunhou na Comissão de Verdade e Reconciliação. Numa peça de teatro recente, A Human Being Died that Night (um ser humano morreu nessa noite), de Paul Taylor, De Kock é mostrado como alguém “com um profundo sentimento de culpa, à procura de diálogo e de perdão”.
O “assassino n.º 1” foi preso em 1994, quando Nelson Mandela foi eleito primeiro Presidente negro da África do Sul — o ano que marcou, oficialmente, o fim do apartheid — e, em nome da reconciliação e da transição política pacífica, não quis vinganças. Confessou mais crimes do que os que constavam na acusação — assassínios (na África do Sul, no Lesoto, na Suazilândia, no Zimbabwe e em Angola), tortura, fraude, atentados bombista, crimes de fogo posto, de conspiração, de posse de armas... Não negou nem um, acrescentando mesmo alguns que a acusação desconhecia ou pensava não poder provar, e ajudou a polícia a encontrar corpos de vítimas que tinham sido escondidos. Para alguns dos crimes, foi-lhe dada amnistia, mas saiu do tribunal com mais de 200 anos de prisão e mais duas sentenças de prisão perpétua.
“Que não haja enganos, isto era o que vocês ordenavam”, disse na Comissão de Verdade e Reconciliação; numa entrevista a partir da prisão que deu em 2007, acusou o último Presidente branco, Frederik de Klerk, de ter as mãos “ensopadas de sangue”, por ter ordenado assassínios específicos e que a violência prosseguisse quando já se sentava a negociar com Mandela. De Klerk negou e a investigação às acusações de De Kock nunca foi feita.
Os crimes de De Kock aumentaram quando o regime começou a ficar encurralado perante a pressão interna, as sanções internacionais, os boicotes desportivos e a condenação do mundo. Alguém decidiu que era o momento de accionar as forças mais leais ao regime para tentar impedir a derrocada. A rede de terror de De Kock foi mandatada para criar a instabilidade entre os grupos e as comunidades negras, incitando a rivalidade entre o Congresso Nacional Africano (de Mandela) e o Inkatha (zulu). Entre Agosto de 1990 e Abril de 1994, 12 mil pessoas morreram na espiral de “violência negra” nas províncias de Natal e Transvaal. A ideia, explicou, era provar a ingovernabilidade da África do Sul negra e a inevitabilidade do poder branco.
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