O bêbado azedo e o banqueiro interessado
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O fim de tarde habitual no verão. Quente e húmido, os elementos sobrecarregando o cansaço do entardecer. Separados por umas centenas de metros, o bêbado azedo e o banqueiro interessado sentem na carne a soalheira estival. O bêbado recolhe-se a uma sombra, que será sua cama quando a noite chegar. Já leva a sua conta de álcool. O banqueiro prepara-se para regressar a casa, onde o esperam para o jantar a consorte e os filhos. Ao descer no elevador para a garagem, o banqueiro desaperta o nó da gravata, despe o casaco e desabotoa três botões da camisa. Quando entra no carro, o motorista fica admirado: nunca, em tantos anos de função, vira o “senhor doutor” nestes preparos. À saída da garagem, o banqueiro ordena que vire para a esquerda (o caminho de casa era para o outro lado).
- Quer que o leve a algum sítio, senhor doutor?
- Vamos por aí. Logo se vê.
Um par de minutos depois, já o banqueiro tinha as mangas da camisa arregaçadas. O motorista estava perplexo, pois o banqueiro até ao fim de semana andava apessoado.
- Senhor Fonseca, pare junto ao semáforo. Vou sair aqui.
- Mas...senhor doutor...quer que vá comprar tabaco? Não saia do carro, eu vou lá...
- Não é isso. Apetece-me apanhar ar. Está dispensado, vá à sua vida!
- E quem o leva a casa? Não o vou deixar por aí sozinho...
- Essa agora! Acha que tenho medo de andar na rua ao pé das outras pessoas? Vá, homem, vá para casa que os seus estão à sua espera para jantar. Até amanhã!
O banqueiro meteu as mãos nos bolsos (outro ato que a educação de punhos de renda não admitia), respirou fundo e atravessou a rua. Estava muito calor. Como acontecia com as outras pessoas, a sombra apetecia. Do outro lado da rua estava o bêbado, aos caídos, andrajoso, agarrado a um pacote de vinho de fraca qualidade. Absorto. Vociferava algo, ininteligível. Dir-se-ia que conversava consigo para suprir a solidão. O banqueiro chegou-se ao pé do bêbado.
- O senhor precisa de ajuda?
O bêbado espreitou por cima das lentes embaciadas, baixou os olhos e repetiu o gesto. Limpou a boca com a manga da camisa, juntando mais sujidade.
- Sim. Quero um ar condicionado. E um banho...não: não preciso de um banho. Já aprendi a conviver com o mau cheiro que é meu. Assim como assim, mais ninguém o faz.
- Não quer que lhe compre uma refeição quente?
- Com este calor?! Pegue nesse dinheiro e ofereça-me um vinho branco bem fresco, que alimenta tanto e mata a sede.
- Não tem fome?
- Tenho. De vinho bem fresco!
- Queria-o ajudar de alguma maneira...
- Ó homem, nesse caso faça o que lhe pedi. Não quero dinheiro; traga antes géneros, desde que sejam daqueles que lhe roguei.
- Mas o senhor está magro, parece fraco, uma boa refeição podia...
- Mau! Quer-me ajudar ou esta noite quer ir para a cama sossegado com a consciência? Não tenho jeito para ser intermediário junto do altíssimo. Se julga que é por aqui que começa a comprar um lugar no céu, desengane-se.
- Onde posso comprar o vinho? Tem preferência pela marca?
- Ali à frente (e estendeu vagarosamente o dedo, com alguma indiferença, apontando para uma esquina onde estava uma loja de vinhos). Se quiser deixar uma boa maquia em notas, prometo que lhe dou destino adequado.
O banqueiro interessado já não estava interessado em ser filantropo. Foi um repente. E ele nunca foi acossado por uma consciência mal aquietada nem se sentia responsável pela pobreza dos outros. Como era homem de palavra, foi à loja e pediu para meter numa caixa doze garrafas de vinho branco, mas de vinho que fosse gourmet. E pediu ainda que que juntassem uma dessas garrafas se as tivessem guardadas no frigorífico. À última hora, pediu para embalar quatro copos de cristal para vinho branco. Pagou e deu indicações para a encomenda ser entregue ao bêbado recostado no beiral do prédio junto ao pequeno jardim a dois passos da loja. Já não quis executar a generosidade.
Quando se deitou, o sono demorou-se. Incomodado por uma verificação e por uma interrogação. Afinal, podia dar-se o caso de o pedinte mandar mais do que o banqueiro. E como podia o bêbado azedo ter adivinhado que aquela generosidade não era descomprometida?
ofelino.blogspot.pt
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