Aproveitemos este momento em que Luísa está absorta para observarmos detalhadamente as suas feições. Estamos numa situação propícia pois a luz solar incide lateralmente no seu rosto não a obrigando a cerrar totalmente os olhos, concedendo-lhe mais brilho e beleza, disfarçando um ou outro traço mais evidente do seu envelhecimento. A sua face pálida e clara vai perdendo definitivamente os últimos traços juvenis, passando para uma nova etapa a que convencionamos chamar de idade madura.
O rosto magro e esguio é completado por uma testa alta, marcada por dois grupos de rugas paralelas e horizontais, um por cada banda do rosto. De cada lado da parte superior do seu pouco simétrico nariz, um pouco azul-avermelhado junto às narinas, devido às ténues e minúsculas veias que se vão timidamente mostrando. Partindo das sobrancelhas espessas e escuras, cresce-lhe um sulco vertical que interseta as rugas horizontais, formando dois retângulos abertos nas partes laterais da testa que correm para a parte superior das orelhas, que se encontram encobertas pelos seus longos e escorridos cabelos negros, aqui e além salpicados de fios cinzentos. Desçamos um pouco para perscrutar o rosto e reparemos nas bochechas lisas e sem cor, no queixo arredondado e firme encimado por uma boca não muito grande, fechada por dois lábios vermelhos e carnudos.
No entanto, o que se destaca e impressiona na sua fisionomia são as profundas órbitas  que rodeiam os olhos castanhos de cor da canela, coroados por umas longas pestanas. Estas cavidades que encerram os olhos penetram tão dentro na sua face que mais parecem que vêm do íntimo do seu ser.
É fácil de explicar o motivo de tão cavadas olheiras: Luísa quase não dorme.
Luísa durante 30 anos passeou pela vida. Filha mais nova, cresceu mimada pela família.  Sempre soubre retribuir o carinho e o mimo. Afável, carinhosa, amiga, solícita e solidária, foi sempre a menina querida de todos. Em troca, nunca falhou os seus deveres na escola, na família e na sociedade.
Começou a trabalhar assim que terminou os estudos, naquilo que sempre sonhara fazer. Fã do voluntariado, não dispensava as suas visitas semanais ao  lar de idosos da freguesia onde crescera e morava. Como ela dizia com voz rouca e comovida: «Conheço-os a todos e todos eram bons para mim quando eu era gaiata. Nada faço que não mereçam». Conseguia  - segundo as palavras dos idosos visitados – com a sua presença e carinho abstrai-los  durante uns momentos da sua monótona rotina diária e encher-lhes o coração com algum calor.
À medida que se ia tornando adulta, foi tendo uns namoricos, nada de muito sério nem arrebatador, mas que conjuntamente com a sua condição de tia serviam para ir adiando os seus instintos maternais. Com uma situação financeira estável, conseguia ter uma vida social e cultural satisfatória, viajar e, para seu grande contentamento, encher os sobrinhos de presentes.
Um dia, numa daquelas típicas tardes de outono em que a natureza nos enche a vista de vários tons de castanhos e azuis acinzentados, em que o cheiro a terra molhada nos sobe pelas narinas, uma seta disparada pelo arco de Cupido acertou em pleno no coração de Luísa.
Tão carregado de magia vinha o dardo, que ainda não tinham passado quatro meses e já ela estava de matrimónio marcado e barriga saliente. Dois anos depois e já passada uma segunda gravidez, Luísa viu-se com quatro homens em casa;  para além do marido e do primeiro filho, teve de seguida dois gémeos. Quando completou 33 primaveras, a sua vida tinha mudado 180 graus.
Aos quarenta anos, toda a família se reuniu para comemorar o seu aniversário. A festa foi a possível. Os filhos cresciam com os prazeres e as maleitas próprias da idade; os sobrinhos atravessavam a idade em que tudo sabem e os outros – excepto os amigos – são ignorantes; o irmão e a cunhada estavam cada vez mais redondos; os pais mais velhotes e rezingões; o marido com excesso de trabalho e Luísa cada vez mais magra.
Um dia, pela hora do almoço, perguntei à Luísa se queria ir ao bar beber um café. Que não, que não podia, pois tinha que ir a casa e acrescentou: «Vou aproveitar a hora de almoço para ir aspirar e lavar o chão da casa». De seguida, subitamente, ficou-se abandonada numa cadeira e pediu-me para lhe ir buscar o café. Agradeceu, sorriu com os lábios húmidos  e os olhos nublados e perante os meus olhos interrogativos disse: «Tenho que aproveitar todos os momentos disponíveis». Bebeu o café, despediu-se e desapareceu.
Resolvi explorar a minha curiosidade e  fiquei a saber que Luísa não tinha tempo. Levantava-se durante a semana às seis e meia da manhã, porque precisava de tratar dos miúdos, levá-los à escola e depois ir trabalhar. Ao fim de semana, para seu desespero, as crianças acordavam precisamente à mesma hora.
Ao fim do dia, era a azáfama de os ir buscar, dar banho, tratar do jantar, jantar, ajudar nos trabalhos da escola, mimá-los e deitá-los. Entre gritos, brigas, ciúmes, carinhos, reconciliações e abraços, assim eram passados os tempos que ela partilhava com os filhos. Dias atrás de dias, semanas seguidas de semanas, meses sem fim.
O marido que trabalhava de noite, com fins de semana rotativos, muitas vezes ausente no estrangeiro, não servia de apoio na educação dos filhos. É verdade que ganhava dinheiro extra, precioso e bem vindo, mas este não substituia a sua presença. Aproveitava os poucos momentos disponíveis com os filhos para ser um ótimo amigo e companheiro, esquecendo frequentemente a sua condição de pai, com as vantagens e inconvenientes de tal situação.
Cerca das 11 da noite, ela dava por terminada sua faina doméstica, terminadas as refeições para o dia seguinte, despachados os tachos e as panelas, passada a roupa e com os miúdos a adormecerem depois de, pelo menos, durante uma boa hora a bombardearem com os pedidos de mãe, quero água; mãe, quero um beijinho; mãe, tenho medo; mãe, está escuro; mãe, o mano está-me a fazer mal, mãe, mãe, mãeee …
Luísa, por fim, podia descontrair, preparar o seu trabalho para o dia seguinte, ver os emails e invejar aqueles que parecia que tinham todo o tempo  do mundo para os receber e enviar , saber alguma coisa do planeta e do país através da TV ou da Internet.
Por volta das duas da manhã deitava-se; era a hora de o marido chegar. Era o momento do engano. Fingia que dormia quando ele se deitava e se encostava, dobrando o seu corpo de forma a encher as reentrâncias que o corpo dela formava. Todas as noites se repetia este ritual, enquanto ela tornava a sua respiração pausada, movendo-se mecanicamente como se estivesse em transe e balbuciando qualquer coisa incompreensível.
Não me compreendam  mal. Luísa continua a amar o marido, mas sente-se cansada, abandonada, triste, vazia, oca  …  Evita-o não para o aborrecer  ou importunar, apenas e só porque não tem vontade de nada, deseja apenas o vazio. Por fim,  por volta das três ou quatro da manhã, consegue adormecer.
Uma sexta-feira, vi-a animada: cabelo luzidio, lábios cheios e olhos brilhantes. Enquanto mordiscava uma das suas inúmeras e inseparáveis maçãs  que sempre a acompanham, foi contando: «Este domingo vou dormir toda a tarde e noite. O meu marido está de folga e vai ser ele a aturar as crianças.».
Na segunda-feira seguinte, apareceu ainda mais encovada do que o costume, se tal era possível. Nesse dia, a Luísa, reservada e discreta, desabafou para quem a quis ouvir.
Como testemunha vou apenas resumir o que ouvi, lamentando não poder ser capaz, através da escrita, de sonorizar a entoação da sua voz, traçar a percepção do seu olhar, descrever os tiques nervosos do seu corpo, com as suas longas e finas mãos a comprimirem o vazio, desenhar os efeitos que o suor delineava na pele do seu rosto, bem como o cheiro ácido que dela emanava.
Nesse domingo soalheiro, Luísa preparou um farnel e despachou os “seus homens” para um piquenique, fazendo ouvidos moucos aos queixumes derivados da sua falta de comparência ao evento. Ao meio-dia, depois de despachadas “as encomendas”, desligou o telemóvel e terminando de  mastigar  tranquilamente a enésima maça da sua vida, deitou-se, adormecendo de imediato.
Longe, parecendo-lhe muito distante, ouviu uma campainha a tocar. Acordou, era o telefone de sua casa. Dividida entre a preguiça de deixar passar e a dúvida de atender, lembrou-se que só os seus entes mais queridos tinham o seu número de telefone fixo. Ergeu-se, olhou para o relógio que marcava as 12.27h. Levantou o ascultador e reconheceu, de imediato, a voz da mãe.
Que o pai estava mal, com falta de ar e precisava de ir ao hospital. Retorquiu que estava cansada, que a mãe podia chamar uma ambulância ou um táxi e que existia outro filho. Arrependeu-se de imediato do que disse, mas pela resposta percebeu que nem sequer tinha sido ouvida.
Que não respondeu a mãe, que ela sabia como o pai era teimoso, que se recusava a ir ao hospital se não fosse acompanhado pela  sua querida  filha. Seria ilusão ou esta última frase vinha marcada por uma réstea de ciúmes?
Quando chegou a casa ao fim do dia, depois de ter resolvido satisfatoriamente a situação, deparou com a saudade ruidosa dos filhos e a rispidez fria do marido. De nada lhe valeu explicar a situação, que o telemóvel tinha ficado esquecido em casa e que tinha passado a tarde no hospital a acompanhar o pai.
De súbito, deu consigo a bramar: «Deixem-me, vou dormir, calem-se, desapareçam». Nunca aqueles “homens”  tinham visto Luísa a vociferar. Para falar verdade, não conheço ninguém que possa sequer imaginar que ela grita.
Pela segunda vez nesse dia, deitou-se e adormeceu de imediato. Sem demora acordou ao ouvir os seus próprios gritos. Com o marido abraçado a si e os filhos expetantes de medo e curiosidade a observarem-na, Luísa sorriu e disse: «Está tudo bem, estava apenas a ter um sonho mau.».
Depois contou-nos o seu pesadelo:
Tinha recebido uma carta que a  informava que tinha sido escolhida para receber uma condecoração no dia de Portugal. Descrevia de seguida os motivos. Mulher heroína pelos feitos realizados no seu dia a dia; cidadã exemplar; praticante e divulgadora do voluntariado; amiga dos seus amigos e da sua família; contribuinte cumpridora;  boa profissional; mãe ímpar. Como última razão, o facto de ter três filhos contribuia acima do normal para o aumento da população, beneficiando a economia do país.
Luísa vestiu a sua melhor roupa para estar presente. Pela primeira vez desde o dia do seu casamento, pôs um pouco de “rimel”, “batôn” e “cor” na cara. Gostou de sentir a família orgulhosa de si. Compôs interiormente um breve discurso de agradecimento, cuja principal preocupação era poder esquecer alguém.
Quando chegou a sua vez de ser condecorada, o presidente da república e o primeiro-ministro começaram a rir-se desalmadamente na sua cara e vociferando exclamaram: «Medalhas, queres medalhas? Andaste a viver acima das tuas posses e ainda por cima queres medalhas? A tua medalha vai ser  ficares sem mais uma parte do teu ordenado. E ainda vais pagar uma taxa por estarmos a perder tempo contigo!».
Depois começaram a cantar desabridamente, ferindo-lhe os tímpanos: « A menina quer medalhas, medalhas, medalhas … Porquê? Porque viveu sempre acima das suas posses, posses, posses …».
A “estória” acabara. Luísa sorriu fugazmente, tirou uma maçã do seu saco, trincou um pequeno pedaço e perguntou: «E o vosso fim de semana, correu bem?».
Praça do BOcage