Estado obriga avençados a declarar afinidades políticas
Por Isabel Tavares, publicado em 30 Mar 2012 -
Comissão de Protecção de Dados assegura que é ilegal qualquer tipo de declaração sobre ideias políticas
Um organismo do Estado está a pedir aos seus trabalhadores com recibos verdes que assinem um documento em como não têm “afinidades políticas” com outros colaboradores e ex-funcionários desses mesmos serviços. O jurista João Amaral e Almeida, especialista em direito administrativo, diz que “é uma invenção claramente abusiva”.
A declaração – que está a ser pedida aos colaboradores para efeitos de renovação do contrato de trabalho –, menciona, além da questão partidária, “interesses económicos” e “relações familiares”.
O jornal i confirmou a existência desta declaração junto de trabalhadores que preferem manter o anonimato com receio de represálias que ponham em risco o seu emprego. Já lhes basta estar a recibos verdes há quatro, seis, oito ou mais anos, sujeitos a horários e a hierarquia mas sem os benefícios de quem está nos quadros.
A advogada Inês Barros, especialista em protecção de dados do escritório Vieira de Almeida, concorda que a informação pedida “extravasa o que a lei prevê”, bem como o que “estabelece a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD)”.
A lei apenas prevê a solicitação de “informação sobre a contraparte [aquele que é contratado], designadamente no que respeita à relação ou à participação de ex-colaboradores do órgão ou serviço, bem como do respectivo cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao segundo grau da linha colateral, ou de qualquer pessoa com quem viva em economia comum”.
Questões como a filiação partidária ou interesses económicos são consideradas da vida privada e, por isso mesmo, teriam de ser sujeitas ao parecer da CNPD – organismo que costuma impedir a divulgação deste tipo de informações. Outra das questões reside em saber como será utilizada posteriormente a informação pedida aos trabalhadores.
A CNPD ficou surpreendida com o teor da declaração, que “não respeita em nada a portaria em causa, além de que não seria aceitável, e está fora de questão, que uma pessoa tenha de declarar as suas afinidades políticas”, disse ao i a assessora da instituição Clara Guerra.
Para se defender, “o trabalhador pode recusar-se a assinar a declaração” ou “propor assinar um texto diferente”, esclarece João Amaral e Almeida.
Segundo este causídico, o erro, contudo, vem de trás. A questão surge agora porque as renovações que estão a ser feitas são as primeiras desde a entrada em vigor da Portaria n.o 9/2012, de 10 de Janeiro, que exige o parecer prévio vinculativo dos membros do governo responsáveis pela área das finanças e administração pública para celebrar ou renovar contratos de aquisição de serviços.
De facto, a norma em vigor vem substituir, “por questões técnico-jurídicas”, uma outra portaria “que tinha o mesmo texto”, explica Amaral e Almeida. Isto é, o ministro das Finanças já tinha de emitir um parecer sobre o contratado.
Para este especialista em direito público é aqui que reside o primeiro erro: “O que a lei diz é que o parecer do ministro tem de ser dado em função de uma série de documentos, dos quais faz parte informação sobre quem é o contratado [a contraparte] e as relações que tem com o organismo em causa. Mas o objectivo era que fosse o responsável de cada serviço a dar essa informação e não que essa responsabilidade fosse passada para o contratado”, explica.
“O que é abusivo é impor ao contratado que diga tudo isto”, sublinha João Amaral e Almeida. Porquê? Logo à partida porque o contratado apenas pode consentir naquilo que é do seu conhecimento. “É aquilo a que em direito se chama ‘declaração de ciência’. Isto é, só posso dizer o que sei. E ninguém é obrigado a saber a relação dos parentes com terceiros.” No entanto, a lei abrange o próprio, o cônjuge e algum familiar ou afim em linha recta ou até ao segundo grau da linha colateral, ou de qualquer pessoa com quem viva em economia comum. “É uma data de gente de uma tacada só: pais, filhos, tios e primos... É um despautério e ainda por cima abrange a pessoa com quem se vive em economia comum.”
É este o outro problema. “Quando se fala em pessoa com quem se vive em economia comum há um atentado à intimidade, à vida privada das pessoas. No limite, a pessoa com quem se vive pode até não ser o cônjuge.”
Por outro lado, a lei de protecção de dados pessoais diz expressamente que os dados de terceiros só podem ser fornecidos com consentimento de forma inequívoca do próprio.
Quanto às afinidades políticas ou interesses económicos, “trata-se de uma invenção completamente abusiva. Não está na portaria nem se sabe o que é. Além de que ter afinidades ou relações familiares é normal e não é, em si mesmo, impeditivo de uma contratação... É surrealista”, remata João Amaral e Almeida.
O jornal i contactou o Ministério das Finanças e a Secretaria de Estado da Administração Pública para saber se existe uma minuta da declaração e quantos contratados a recibo verde existem no Estado. Sobre a declaração, fonte oficial garantiu que “não há uma minuta”, o que leva a que cada serviço possa optar pela sua versão.
“Isto é tudo mal feito”, diz João Amaral e Almeida, acrescentando que “muitos dos juristas destes organismos não sabem o que estão a escrever”.
No que toca a números, o ministério remeteu o i para o Boletim Oficial do Emprego Público (BOEP), mas a última informação disponível é de Julho de 2011.
O Sindicato da Administração Pública também não tem números. “Infelizmente, os dados não são fiáveis”, diz o secretário- -geral, Jorge Nobre dos Santos. “O sindicato tem feito diligências junto do governo, mas não podemos fazer mais do que isso, até porque normalmente só sabemos das situaçõesa posteriori, quando as pessoas são dispensadas de qualquer maneira”, acrescentou o sindicalista.
jornal i
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