As canções do desassossego
O Zeca sempre recusou o lugar de ícone, vedeta ou ídolo. Sempre lutou contra o seu próprio mito. Antes de mais quis ser, e foi, um cidadão empenhado no aqui e agora da sociedade em que viveu. E as canções que escreveu e cantou não se destinavam a um qualquer panteão, mas a responder ao desassossego que lhe provocavam todas as formas de exploração. Artigo de Manuel Deniz Silva.
Foto de José D'Almeida retirada do site da Associação José Afonso.
“O cantor é uma voz entre milhares de vozes”
Em 1972, ainda antes da Revolução, o Zeca falava já com desassombro do mito que se estava a criar em torno dele, das expectativas porventura exageradas que se colocavam num só homem. Canções como “A morte saiu à rua”, “Cantar Alentejano” ou a “Grândola”, que circulavam através do disco em plena ditadura, tinham feito dele o porta-voz do vento de mudança. Mas o Zeca não queria ser um “símbolo”. Numa entrevista à Vida Mundial, dizia: “Por um lado, aceito que, eu, para as pessoas, represento determinadas coisas. Por outro, em termos de apreciação, creio que nem aquilo que eu, nem aquilo que as cantigas são, se podem enquadrar numa bitola tão exigente como aquela que as pessoas me atribuem”. Parecia falsa modéstia e o jornalista insistiu: “Mas parece que negas, que foges da importância que, de qualquer maneira, tu tens...”. Não, diz Zeca, “só quero ter o meu tamanho real”. Uma voz entre milhares de outras, as de um público que se torna interveniente, as de um povo que se torna sujeito da sua própria história, e não “um objecto passivo daquilo que está a ser imposto no palco”.
Nada disto era retórica. A humildade de Zeca não eram uma pose, era um compromisso ético e existencial. Senão vejam. Pouco mais de um mês após a Revolução, a 7 de Junho de 1974, numa entrevista à revista Flama, Zeca foi ainda mais longe na desmontagem da sua própria consagração. Ele que fora perseguido, preso e censurado pela ditadura, recusava qualquer oportunismo, afirmando que “dado o nível de repressão que o antigo regime manteve, pareceria pouco mais do que ridículo estar a considerar-me vítima do regime”. Dizia não saber se ia ser capaz de compor novas canções para os tempos que se abriam com o 25 de Abril e, sobretudo, tinha dúvidas se seria o momento de as fazer, em vez de se consagrar a “outras coisas mais importantes”. Colocava mesmo a possibilidade de cantar apenas mais um ano ou dois, ou de voltar para o ensino. A própria Grândola, a senha da Revolução que acabara de libertar o país, lhe parecia algo provisório. Quando o jornalista lhe lembra que a canção era agora “uma espécie de hino popular”, respondeu que “tudo isto é um momento que espero venha a ser totalmente ultrapassado”. As verdadeiras “canções de luta ainda terão de ser feitas pelas pessoas que estão mesmo metidas na luta até ao pescoço”.
Sabemos que não foi assim, que o Zeca continuou a cantar enquanto teve forças. Que ao contrário do que dizia, a música e o canto faziam mesmo parte das “coisas mais importantes” a fazer naquele momento, e que a Grândola ficou na memória coletiva não apenas como hino, mas como agente ativo das lutas que vieram depois. Mas esta tomada de posição radical e sem dúvida exagerada – ele próprio o reconheceu mais tarde –, cumpria uma outra função. Tratava-se de evitar a formatação e institucionalização do que só fazia sentido na partilha fraterna com os outros. Por isso dizia que os concertos dos “cantos livres”, no São Luís ou no Pavilhão dos Desportos, se estavam a tornar “inúteis, inócuos e repetitivos.” Era ainda a mesma recusa do vedetismo, de ser considerado como “superior aos outros”. Dizia: “Pelo menos nas camadas da população que me interessam, a maneira como se olha para mim é diferente do modo como se olha para um ídolo. E espero que o continue a ser.”
Para que serve uma canção?
Esta modéstia não era só a força moral do Zeca, é também o seu legado musical e político. Se ele criticava a agitação do mundo da canção no momento pós-revolucionário, é porque achava que a política não se faz de discursos grandiloquentes mas de coisas simples e sensíveis. Como cantar em conjunto, ir ao encontro das pessoas, ouvir o que elas têm para dizer, falar dos seus problemas concretos, das casas, do saneamento básico, criando para lá da música e dos poemas essa “irmandade progressista” que queria estabelecer nas terras que ia percorrendo. Como era simples e sensível a forma de distribuir responsabilidades sem hierarquias que tinha encontrado, em meados dos anos 60, na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, que lhe “deu a ideia que uma sociedade socialista seria assim” e lhe inspirou Grândola Vila Morena.
Contra visões heroicas e simplistas, o Zeca costumava dizer que fazia “apenas canções”. Disse que “o resultado daquilo que eu, o Adriano, o Macedo e outros fazemos não se pode medir pela qualidade daquilo que se faz, mas pelo acréscimo e pelo dinamismo que isso provoca ou ajuda a provocar nas pessoas, independentemente da qualidade daquilo que se canta”. Tratava-se de “levar as pessoas a funcionar e a refletir, a partir daquilo que lhes é proporcionado pela música”.
O que não quer dizer que os seus textos e a sua música fossem apenas meros pretextos. Aqui precisamos, como ele diz no Papuça, de “aguçar o ouvido”.
E ficar às escuta das palavras, da sua poesia em que trabalhou como poucos a língua portuguesa, explorando as suas margens, entre o vernáculo popular e o surrealismo. Mas também à escuta da sua música, mesmo se ele que nunca quis ser “compositor” ou “artista”. Até porque Zeca partia da música para o texto, como diz numa entrevista ao Mundo da Canção, em 1981: “semeio palavras na música”.
E o Zeca foi um músico em permanente renovação, da balada de Coimbra aos ritmos e timbres africanos em Coro dos Tribunais (1975) ou Galinhas do Mato (1985), passando pela exploração da música tradicional a partir de Contos Velhos, Novos Rumos (1969). Com os músicos que soube reunir à sua volta (Bóris, José Mário Branco, Fausto, Júlio Pereira, e tantos outros), foi desassossegando a música popular portuguesa, atento ao que se fazia na canção francesa, brasileira ou norte-americana. E os seus textos ganharam outra cor com a sua extraordinária invenção melódica, com as suas linhas vocais sinuosas, aéreas, flutuantes, elásticas. Uma música que tantas vezes foge ao texto, que se escapa para a pura fruição sonora, nos seus melismas, arabescos e nas onomatopeias de que tanto gostava.
Essa fruição musical era, para o Zeca, o necessário ponto de partida: “Tem de haver um clima de participação. De festa. Eu gostaria de proporcionar prazer às pessoas, mas queria que este prazer fosse de determinado quilate. Que motivasse algo (...) Gostaria até que as pessoas dançassem. No sentido primário da palavra, gostaria que as pessoas se mexessem”. Ou seja, que pensassem “com o corpo todo”, que pela música ficassem alerta, inconformadas, em desassossego. Para construir depois em conjunto a fraternidade, a resistência e a utopia.
Esquerda.net
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