By carlosloures
Lisboa, noite de quarta-feira, 23 de Agosto de 1485.
o mapa - I
Estamos no final de um dia muito quente e no princípio de uma típica noite de Verão – Lua cheia que começa a subir num céu pálido a poente, onde ainda se vislumbram tons de avermelhado e de ouro, o sangue dourado dos últimos despojos do crepúsculo. Os astros vão acendendo-se aos poucos, tremeluzindo, como que temerosos. Dentro das modestas casas de morar, faz demasiado calor para se poder ficar no seu interior. Os palácios, com as suas espessas paredes de pedra, esses sim, conservam a frescura, mas, apesar disso, bebe-se hidromel em jardins de murmurantes fontes, lêem-se poemas, canta-se a capella, prendadas donzelas executam trechos em rabecas, flautas duplas, saltérios, moços oferecem flores ou furtivos beijos a moças… em suma, poeta-se, canta-se e namora-se… Por isso, a esmagadora parte da população da cidade, aquela que não vive em palácios, está na rua, à porta de suas casas, conversando com os vizinhos, bebendo água, vinho tinto, branco ou bastardo, aguardente… Os homens jogam aos dados e bebem sentados nos degraus das soleiras, as mulheres trocam informações domésticas, tecem pequenas intrigas, jovens trocam furtivos beijos, fala-se, canta-se e namora-se. Há ainda crianças acordadas, brincando, correndo pelas ruas e travessas iluminadas pelo luar nascente e por archotes de resina. São mais de sessenta mil almas distribuídas por cerca de quatrocentas ruas, dentro da muralha nova, com as suas trinta e cinco portas e postigos, por onde se entra e sai de Lisboa. A cidade recusa-se a adormecer, pois o calor é muito. Como se um impiedoso dragão de fogo a bafejasse.
Na Travessa da Porta de Santo Antão, na passagem para a Rua da Mancebia, há duas tavernas. Numa delas, a de pior reputação e que é conhecida pelo poético nome de Paraíso, alfurja frequentada por um ou outro mesteiral, por homens dos que andam nas naus, mas sobretudo por indivíduos desocupados ou ocupados em inconfessáveis tarefas e, claro, pelas mancebas que sempre fazem destes antros o seu habitat de negócio, entram dois homens que logo se vê não ser animais daquela floresta. São ambos relativamente jovens, entre os vinte e os vinte e cinco anos. Um deles, franzino, estatura meã, cabelo cortado curto quase à moda antiga, à camorro, como aqui costumamos dizer. Está vestido com asseio, mas com simplicidade: um saio branco de tecido leve descendo sobre um calção de chamalote pardo e uns borzeguins de cabedal atacados até ao joelho. Na cabeça um capeirão pontiagudo. É o vestuário próprio de um aprendiz ou oficial de um mester modesto. O outro, de rosto trigueiro, um pouco mais robusto, mas também de estatura meã, usa os cabelos escuros, compridos, limpos e bem penteados. Está trajado de forma mais elaborada, embora sóbria: um mantel de cambraia negra rematado por um cabeção, com qual oculta parte do rosto, vestido sobre uma camisa de cetim branco, calções cinzentos de balão sobre meias de seda negra e botinas. Um chapéu de duas abas em feltro preto completa um vestuário caro que, em suma, denuncia alguém pertencente a uma classe profissional elevada – talvez um advogado, um tabelião, um secretário, um escrivão, um contador.
As conversas param no tugúrio que tresanda ao sebo das velas, a corpos mal lavados, a comida requentada, a vinho – o característico odor da miséria e do desprezo pelas convenções impostas por quem domina. Jogadores de dados, mancebas, simples bebedores, mesteirais e homens dos que andam nas naus, param para ver aqueles dois seres, ali completamente deslocados. Que quererão? O de roupa mais modesta, vai à frente abrindo caminho. O outro segue-o, ocultando o rosto unindo com uma das mãos os bicos do cabeção – para esconder as feições ou para se proteger do mau cheiro? O da frente pára junto de uma mesa onde três homens, falam em voz baixa, bebendo vinho por canecas de barro e comendo favas cozidas que tiram, à vez, com colheres de uma escudela de estanho colocada no centro da mesa. Um pão grande que vão cortando com facas bem afiadas completa a frugal refeição. O rapaz do cabelo à camorro pára e diz com um sorriso:
– Boas noites!
Os outros olham os recém-chegados. Um mais velho, encorpado, de olhos cinzentos, cabelo crespo e castanho claro e com uma cicatriz que, como um rio de leito avermelhado, lhe percorre o rosto da testa ao queixo, crava a sua faca no tampo da mesa, marcando, com este gesto desnecessariamente agressivo, uma pausa na ceia e faz-lhes sinal para se sentarem enquanto limpa os dentes com uma unha. É Estevão Nunes, antigo sapateiro que se dedica actualmente a pequenos delitos (às vezes não tão pequenos quanto isso…), mais conhecido pela alcunha de Gato Pardo. Os dois comparsas, um magro e de cabelo alourado e sujo que se chama Gaspar e o outro quase calvo e mais gordo cujo nome é Fernão (e que não atingiram importância criminal para ter alcunhas), com a deferência que se deve a bons clientes, vão a uma mesa vizinha buscar escanos desocupados para os dois jovens visitantes. A curiosidade em redor parece ter cessado. Os olhos desviam-se prudentemente, as conversas reatam-se, pois as pessoas que ali estão sabem que a curiosidade não é hábito salutar – além de ser uma falta de educação, constitui um perigo. Por outro lado, deve respeitar-se a confidencialidade de um negócio alheio. Afinal, ali também existem algumas convenções. Quando todos os cinco estão sentados, o Gato Pardo vai directo ao assunto e pergunta:
– Para quando é o trabalho? – O jovem do cabelo curto é quem responde, depois de um olhar para o companheiro:
– Sexta-feira, depois das Trindades – e completa – pagamos agora metade e o restante logo que esteja terminado, como combinámos. Estevão Nunes abana a cabeça numa negativa:
– Não. O valor que disseste terá de ser um pouco aumentado – acrescenta após uma pausa – Estivemos a ver o local, soubemos melhor de quem se trata e há dificuldades de que não falaste e que, portanto, não estavam previstas….
– Quanto? – É sempre o do cabelo curto quem fala, o outro apenas escuta.
– Por menos de cinco mil cruzados, não fazemos o trabalho – o tom é de desafio, preparado para o regateio.
– Tanto? – O do cabelo curto olha para o companheiro. Este baixa a cabeça num assentimento – Está bem. Mas só trago os dois mil que combinámos – tínhamos falado em quatro mil.
– Dás-me os três mil no fim – dá uma casquinada – Somos todos pessoas sérias – Fernão e Gaspar, que têm ambos uma expressão de idiotia, talvez defeito de geração, ou provocada pelo excesso de bebida, riem-se – Tu não me ias enganar. Sabes que isso era muito mau para a tua saúde – Mais risos alvares de bocas desdentadas.
O do cabelo comprido, com o rosto encoberto a partir do nariz, olha-os com fria dureza, continuando sem proferir uma palavra. Os olhos escuros captam a luz das velas e devolvem-na em virotões de uma impiedosa crueldade. Aos poucos as risadas esfriam. Como se a quente noite de Estio tivesse sido atravessada por um sopro de frio gélido. Com a mão livre, sempre segurando as pontas do cabeção e sem deixar de fitar os três homens, o jovem moreno chama o outro que quase encosta o ouvido à sua boca. Quando se debruça, sobressai no pescoço, por debaixo do mantel, uma espécie de colar ou corrente de ouro de onde pendem numerosas medalhas com efígies de santos, crucifixos… Segreda algo que não conseguem captar, até porque lhes parece que as palavras são proferidas numa língua estrangeira, talvez em toscano, dirá mais tarde, em audição de juízo, o Gato:
– Este senhor diz que qualquer erro ou inconfidência da vossa parte será punido com muita, muitíssima severidade – faz uma pausa e conclui – Porém, se o trabalho for executado com perfeição e a seu contento, podem contar com mais quatro mil cruzados, seis mil no total.
Os três comparsas entreolham-se satisfeitos. «Ainda se fazem bons negócios, nestes tempos de crise», pensam. Os dois jovens saem do Paraíso. Só o do capeirão se despede com um aceno. Nas ruas, a noite caiu, finalmente e com ela vem alguma frescura. Sob um céu estrelado, a cidade pode agora adormecer.
A abóbada celeste é órbita sem fim,
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