O sol algarvio é gracioso. Segundo Gaudi, um famoso arquitecto catalão, a luz mediterrânea encontra facilmente um eixo médio e harmonioso, capaz de enaltecer os detalhes mais peculiares. A beleza da luz natural faz parte do encanto da região, assim como o seu clima, que cede frequentemente céus azuis. Contudo, no interior de um Palacete abandonado, a vegetação que se ergue sobre as paredes ameaça ocultar o interior do esplendor da luz.
Sobre uma ampla mesa de madeira, iluminada por uma pequena janela, restam fragmentos encobertos pela escuridão. Um vulto move-se entre as sombras e acende as velas espalhadas pela mesa, percorrendo com a mão gestos delicados. Uma vez acesas, as velas põem à descoberta documentos, jornais, negativos, cartas e desenhos, despejados pela sala. Os traços inscritos em papel tornam-se visíveis, demonstrando desenhos de cariz arquitectónico, bem como uma carta escrita em inglês em que se lê “I love you and I will let you know how”. O vulto volta a aproximar-se das chamas para acender um cigarro que segura firmemente entre dedos vaidosos.
Uma segunda figura desloca-se pelo caos, dirigindo-se ao centro da mesa. O contorno do seu corpo é humano mas a forma da sua cabeça indecifrável, assemelhando-se a um capacete em forma de cápsula. No lugar dos olhos, surge um visor que emite uma luz azul incandescente. As mãos da figura seguram recipientes de vidro e um sistema improvisado de tubos que servem possivelmente para preparar estupefacientes. Contudo, o objecto mais bizarro de toda a sala é o crânio de um animal que fora convenientemente colocado numa posição central de adorno.
O ARDINAS apresenta Negativo, uma homenagem ao Palacete Fonte da Pipa, uma edificação do século XIX que faz parte do património cultural de Loulé, contada através de uma fusão intemporal de fotografias.
O imaginário colectivo do povo louletano, os mistérios e superstições, as contribuições pessoais dos diversos proprietários e restauradores, as marcas corrosivas dos visitantes indesejados e a ostentação e fantasia dos admiradores clandestinos ganham vida em visões surreais, incandescentes, adulteradas, perversas, belas e desgastadas, em tons de azul e laranja contrastantes, características das imagens gravadas em filme fotográfico encontradas no interior do Palacete.
O cenário de culto obscuro descrito anteriormente integra a história do Palacete, na medida em que constitui um presságio intemporal, alimentado pelo imaginário colectivo do povo Louletano, que tanto temeu pelo futuro do seu património, como também teve receio dos mistérios que foram nascendo, desde da edificação do Palacete, iniciada por volta de 1874.
No final do século XIX, a febre tifóide deflagrava na região. A Quinta da Fonte da Pipa apresentou-se como um local ideal para a improvisar uma enfermaria de apoio a Loulé e, para muitos doentes, foi uma última morada. A falta de conhecimentos médicos sobre a doença levou a que várias pessoas, em estado catatónico, fossem enterradas vivas. Quando os caixões foram inspeccionados, o povo veio a constar que os corpos tinham mescido, dando origem a superstições e relatos paranormais. Curiosamente, essas histórias desempenham, ainda hoje, o papel de afastar os curiosos das imediações, o que protege indirectamente a integridade da estrutura.
As contribuições pessoais dos proprietários foram imensas ao longo do tempo: a pessoa que sonhou pela primeira vez nos terrenos da Quinta Fonte da Pipa, Marçal Pacheco, um viajante inspirado, que mandou construir o seu Palacete à semelhança dos Castelos do Loire;
Pereira Cão, um homem muito distinguido nos círculos artísticos de Lisboa, responsável pelas pinturas tropicais exuberantes em trompe l’oil;
Dias Sancho, que mandou construir os muros e bancos do jardim envolvente, num estilo Kitch burguês, na mesma linha de Gaudi, fazendo uso de fragmentos de porcelana, cerâmica, conchas, cascas de caracol e pedaços de coral, para a decoração;
Francisco Pereira que trouxe sementes exóticas de Brasil e África para os jardins do Palacete, que ainda hoje florescem nas propriedades da quinta;
E, por fim, Leonor de Sousa, quer pela sua atenção ao presente projecto fotográfico, quer pelo papel instrumental que teve durante a restauração dos espaços do Palacete. O seu trabalho permitiu a dinamização do Palacete como um centro cultural de exposições e acontecimentos sociais, durante a década de 90. Os rostos opacos que surgem em Negativo são, coincidentemente, amigos e familiares de Leonor de Sousa, com especial destaque para o casamento da sua irmã, que foi celebrado no Palacete Fonte da Pipa.
A natureza é um elemento com uma forte presença na estrutura do Palacete: das pinturas tropicais no interior do edifício ao jardim exótico do exterior. A fonte de água que dá o nome à propriedade corre ainda hoje, imune ao tempo, saciando a sede de uma terra há muito esquecida.
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