Nota prévia: perante a proposta do PCP na Assembleia Municipal de Lisboa para «manter Santa Apolónia com todas as valências de transportes que actualmente oferece», o PS votou contra, inviabilizando a proposta.
Segue-se a intervenção sobre o fenómeno de gentrificação em Lisboa, proferida hoje, na sessão da Assembleia Municipal.
Assistimos a um fenómeno global de elitização de determinados locais e cidades, resultantes de desenvolvimentos e planeamentos orientados para gerar lucro, enquanto tudo o que é característico, tudo o que é memória e história, a par de todas aquelas que são as condições a que qualquer pessoa deve ter direito para viver no local onde nasceu ou decidiu viver vão desaparecendo, na exacta medida que locais exclusivos e inacessíveis à maioria de nós vão tomando lugar central.
Lisboa não é excepção: aqui não decide um poder local democrático, transparente e para todos. Manda o lucro, o interesse económico, a ditadura do dinheiro, cuja face mais visível se materializa no executivo PS e nos muitos anos de políticas de destruição da cidade para os cidadãos, numa linha demasiado ténue entre o interesse público e interesses privados. Cargo público não é prémio, é compromisso, antes de mais, compromisso com as populações e com o interesse público.
Contudo, a arquitectura deste Executivo é a da descaracterização, da expulsão e da substituição por tudo aquilo que faça bling bling, particularmente quando grandes grupos monopolistas acenam com patrocínios ou proto-investimentos que só se servem a si mesmos, como se tem visto pelo capital sem rosto ou nacionalidade que tem tomado conta dos edifícios e do comércio em Lisboa.
Esta cidade-parque, desenhada à medida de uma ideologia tardo-liberal vai ainda mais longe, chegando não apenas aos locais históricos mas a locais fundamentais para o bem-estar, dia a dia e mobilidade de quem vive e/ou trabalha em Lisboa.
Se há oito meses o PS se apressou a abafar as declarações que afirmavam a vontade de demolir a estação de Santa Apolónia para construção de espaços verdes, espaço para o qual um afamado gabinete de arquitectura – esse mesmo, o Risco – que com o plano da Matinha, aprovado em 2011 por PS e CPL, contemplando a urbanização de cerca de 20 hectares do Grupo Espírito Santo, curiosamente, prevê a construção de um espaço verde na zona da Estação, hoje a intenção de alterar o espaço é óbvia e deixa antever a concretização das declarações iniciais.
Desta estação secular, a 3ª estação do país, edifício público que passou da monarquia para a República e assim se manteve, como edifício público com transportes de qualidade que servem trabalhadores, estudantes, turistas, chegam e partem 150 circulações por dia entre Alfa, Inter-Cidades, Inter-regional, Regionais e Urbanos, sendo que é o local de onde partem os comboios Sud Express e Lusitânia para Paris e Madrid.
O fluxo médio mensal de passageiros ronda os 250 mil e 3 milhões de passageiros ao ano na única estação que está não só na zona nobre de Lisboa como perto de todos os centros de transbordo de barcos, metro e autocarros.
Nesta estação foram investidos 300 milhões de euros para 2158 metros de extensão de linha do Metro, estimando-se a utilização desta linha por 20 milhões de passageiros, com a poupança, resultante desta extensão para o Terreiro do Paço e Santa Apolónia de 2,7 milhões de horas em deslocações e redução em mais de 3 mil toneladas de CO2, de acordo com dados da própria Câmara Municipal.
Mas como o dinheiro fala mais alto, e com o pressuposto, e cito que tal como “a estação de S. Bento, no Porto, onde vão perto de 4000 visitantes anuais que não vão lá para viajar de comboio”, os planos passam pela sua transformação num hotel. Sempre se perguntará quem dormirá melhor, os turistas que venham a ficar no hotel da estação, ou a família Espírito Santo que encontrou mais um veículo de investimento para o frágil património que lhes tira o sono?
Mas a saga continua. Em 2008, Manuel Salgado afirmou à imprensa que «a baixa nunca será uma zona residencial». E para isso tem trabalhado afincadamente: para o Saldanha, Cais do Sodré, Santos e Campo das Cebolas estão previstos parques de estacionamento (implicando mesmo a destruição do simbólico mural José e Pilar); em apenas 16 hectares no Terreiro do Paço, Rua do Ouro, Praças do Rossio e da Figueira e Rua da Madalena, surgiram, em 2015, 60 unidades hoteleiras, ao mesmo tempo que deram entrada mais 113 processos de licenciamento para reabilitação do edificado urbano na baixa com fins hoteleiros.
Em 2010, existiam 741 alojamentos locais, em Novembro de 2015, 2380, num crescimento sem qualquer planificação ou avaliação. Prova disso mesmo é o crescimento exponencial do aluguer através do portal airb’n’b” com 34 mil casas em Portugal e 15 milhões de hóspedes. 60% do crescimento da rede em Portugal deve-se exclusivamente a Lisboa que ocupa hoje o 14º lugar em termos de n.º de hóspedes, na utilização de um instrumento de arrendamento que não está regulamentado, não implica o pagamento de impostos e é maioritariamente utilizado, de acordo com Arnaldo Muñoz, director ibérico da rede, por pessoas que não têm capacidade para pagar as suas rendas, tendo que recorrer a estes mecanismos.
Em Lisboa, o mercado imobiliário atravessa a sua fase especulativa mais feliz, com rendas que não páram de subir, obrigando a que as pessoas, particularmente as classes trabalhadoras, se afastem cada vez mais do centro ou mesmo da cidade, por constrangimentos financeiros.
Para além do grave problema de habitação, todos os dias encerram lojas, cafés e locais históricos, como o caso do Café Palmeira, o café Estádio, lojas na Fábrica Sant’Anna, a Casa Alves, a construção de um novo hotel na secular Braz & Braz, locais que fazem parte da memória colectiva cidadã e que movem já milhares de cidadãos em torno da petição pela salvaguarda das lojas históricas solicitando a intervenção urgente da Câmara Municipal.
Uma baixa cada vez mais deserta dos habitantes de Lisboa, comércio tradicional praticamente inexistente, restaurantes e locais inacessíveis às classes trabalhadores, o direito constitucional à habitação perigado pela especulação ilegítima e injusta, encerramento das ruas e do espaço público à mercê de grupos económicos, destruição do património arquitectónico público, privatização de espaços históricos que passam a ser apenas para alguns, concursos públicos que já se conhecem vencedores antes mesmo do seu lançamento: esta é, de facto, a herança que este executivo quer deixar? A expulsão de pessoas da cidade para a construção de um enorme parque temático, sustentado à custa do aumento exponencial dos preços e a homogeneização de uma cidade, para que se torne, exclusivamente, num local que apenas alguns podem visitar?
*Declaração Política do PCP na Assembleia Municipal de Lisboa, 16 de Fevereiro de 2016
Via: Manifesto 74 http://ift.tt/1TmS9bI
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