Hoje pouco apetece levantar as passas ou brindar, bem sei. Há um muro à tua frente e um buraco dentro de ti – tens uma culpa estúpida lá dentro, como se fosse tua a responsabilidade de teres vindo parar a isto. Tens a vergonha imensa de te pensares inútil e temes o tempo. Não sabes explicar isto a quem nunca passou por coisa igual. Justificas-te e justificas tudo à tua volta, para que não te apontem o dedo e gritem, só com os olhos e o canto dos lábios, “és um inútil”.
As tardes são o pior. De manhã disfarças com o duche ou a ida ao café para “sair de casa”. Mas à tarde, à tarde tudo se abate sobre ti. O mundo não te perdoa serem 14:22 e não estares de volta ao trabalho. Dás por ti, por vezes, a fugir de ver o Goucha e a Fátima Lopes apenas porque isso é um sinal angustiante que falhaste.
Sabes que nada funciona, nem os empregos na net nem os do IEFP. Vais, cadastrado, apresentar-te quinzenalmente à humilhação de dizer ao Estado que ainda és vivo, ou já nem sequer isso, porque acabou tudo. À noite tens a cabeça em cima ou por baixo das almofadas. Ou não adormeces ou acordas duas ou três horas depois de te conquistar o sono, muitas vezes em pesadelo, outras tantas sem conseguir pregar olho.
E depois os comprimidos, as “esmolas” que sentes receber de familiares ou amigos para sobreviver. Perdeste a dignidade, pensas.
É mentira. Tudo o que sentes é uma mentira gigantesca, porque a culpa não é tua. A culpa é do pulha de gravata que te mandou a carta e da grande soberba das empresas; a culpa é de uma mentalidade que te ofende, quando vês que afinal a tua empresa tinha dinheiro aos milhões para comprar os direitos de futebol mas te despediu para poupar trocos. A culpa é dos que te enganaram quando te disseram que a colaboração tinha tanto valor como o contrato, a culpa é dos milhares de idiotas que lambem botas e pensam apenas nos BMW e na quota pessoal de dinheiro sem recibo que lhes vai parar à conta.
Tu tens dignidade. Deita a culpa fora, de vez. Não merecem a tua resignação. O desespero da falta de dinheiro e a perseguição que o Estado te faz, quer nos impostos quer na obrigação de fazeres prova de vida quinzenal, ou na esmola que ainda te dá, não te torna culpado de nada. Tu mereces essa dignidade porque estás cheio de força nos braços e de sonhos e de vontade de fazer. Quem te ama continua a amar-te.
Não há vergonha nenhuma no sofá que te acolhe o desespero. Somos mais de um milhão assim, a olhar para as coisas que nos entusiasmavam e que agora nos parecem sem valor, sem sentido ou sem graça.
Ouve, há uma chamada dentro de ti: és tu, o teu projecto, a tua luta. Tu és bonito porque estás a passar pelo pior pesadelo da tua vida. Eu respeito-te e só te vejo como brilhante e resistente. Não os ouças. Não tenhas pena nem deles nem de ti.
Junta-te a gente boa, ouve música, permite-te descansar, permite-te toda a tristeza do mundo para, depois, erguer a cabeça e encarar o planeta com o sorriso dos cansados: tu vai conseguir porque os idiotas terão de cair. Tu sabes mais do que eles, tu consegues, se mantiveres o teu “eu” estimado e livre. Não te faças o que eles te fizeram. Respeita-te e ergue-te. Não te abandones nunca.
Ouve, mesmo: o medo e a culpa têm de mudar de lado. Eles sim são os culpados e devem ter medo de ti, porque tu vai mostrar que sabes e consegues, apesar deles ou contra eles – a tua força e a tua sabedoria, as tuas memórias e os teus afectos nunca ninguém pode despedir ou menorizar.
E pensa assim, mesmo que com algum cinismo: este ano é que vai ser, porque não te derrotaram e tu não estás só.
Somos muitos. Sabemos sorrir.
Bom ano.
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