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domingo, 31 de janeiro de 2016

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA - O Arquitecto afectos e causas




Nem nós, seres humanos, perdemos Nuno Teotónio Pereira, nem a Arquitectura perdeu o Arquitecto afectos e Causas que ele é. Na vida, também e sobretudo na vida humana, nada se perde, tudo se transforma e expande, ao tornar-se definitivamente invisível aos olhos dos que ainda não protagonizamos a nossa derradeira páscoa dentro da história. A Morte é a maior invenção da Vida que sucessivamente acontece, no instante da nossa concepção, como outros tantos big-bang e, desde então, nunca mais deixa de expandir-se, até para lá da história. A morte é condição sine qua non, para nos expandirmos ilimitamente Somos filhas, filhos de mulher. Daquela mulher concreta, única e irrepetível, que nos acolhe no seu seio-útero e nos alimenta, até ao momento do parto e para lá dele. A quem chamamos Mãe, exactamente, o mesmo nome de Deus que nunca ninguém viu, no lúcido testemunhar de Jesus, o filho de Maria, o ser humano pleno e integral (cf. todo o meu Livro Jesus Segundo João, o 4º Evangelho traduzido e anotado como nunca o conhecemos, Seda Publicações 2014).


Nenhum humano é, sem mãe. Sem mulher. Embora o BI de cada nascido de mulher continue a colocar em primeiro lugar o nome do pai, só depois o da mãe. A realidade histórica, da qual faz parte a vida humana, no seu começo, não é assim. Mas o Poder é assim. Rouba-nos tudo, até a Mãe. Até Deus Abba-Mãe. Em seu lugar, impinge-nos um Ídolo-Poder aque justifica e dá cobertura a todos os seus crimes. Somos humanos, porque somos filhos de mulher. Infinitamente mais do que simples animais racionais, macho e fêmea, filhos do Poder. Nuno Teotónio Pereira é filho de mulher. Não do Poder. As suas obras de ser humano e de arquitecto afectos e Causas é o que gritam aí para quem for capaz de ouvir e entender. Por mais que tentem silenciá-lo, reduzi-lo a coisa, memória, cadáver, jazigo, ícone.


Estive presente, ao modo de invisibilidade, que é também a máxima clandestinidade-fecundidade, na sua derradeira páscoa. Provavelmente, ninguém terá dado por mim. A não ser o seu filho Miguel. Porventura, também as filhas Luísa e Helena que, em momentos como este, demasiado teatralizados e manipulados para o meu gosto de presbítero-jornalista menino, sabem de mim invisível, clandestino. Estive, de resto, como o próprio Nuno também esteve, no funeral do cadáver que deixou como “restos mortais” (ou vitais?!) a serem semeados na Terra, ou lançados às águas de um rio, do mar, ou ao vento.


Conhecemo-nos desde os meus tempos de pároco de Macieira da Lixa, que eram também os tempos da Pide do regime de Salazar-Caetano e da igreja católica do Código de Direito Canónico e da Concordata. Que, para nossa vergonha, ainda hoje continua a ser. Apesar do Concílio Vaticano II. Apesar do 25 de Abril de 1974. Uma só Pide, dois Estados, o de Portugal e o do Vaticano. Que o Poder político, democrático que se diga, não sobrevive, muito menos, se desenvolve e fortalece sem polícia política e eclesiástica-religiosa. Sabe-se assassino do Humano Consciência e Liberdade e não se descuida um instante sequer. Conta com (quase) todos os melhores cérebros ao seu serviço, em cada um dos Estados. Podem mudar e mudam as formas históricas de assassinar o Humano Consciência e Liberdade, não muda o seu propósito de roubar, matar, destruir as populações, os povos e o planeta. Aliás, é o que o Poder nos três poderes em que historicamente subsiste, tem de mais específico, matar, roubar, destruir. Que para isso existem as elites privilegiadas. Todas, ou quase, ao seu serviço, umas mais do que outras. Com as mãos sujas de sangue humano, mesmo e sobretudo, quando são mãos de alguém que veste de branco e se faz aclamar por milhares, milhões de pés descalços, sem-terra, sem-casa, crucificados na cruz, o velho instrumento de tortura do império romano e do cristianismo, sua religião oficial e única. Naquele então, e ainda hoje, sempre, enquanto existir o cristianimo com suas múltiplas igrejas-empresas multinacionais religiosas e financeiras.


Um dia – já são muitos os anos, mas o momento dura para sempre – batem à porta da casa paroquial de Macieira da Lixa, já a Pide não se afastava da aldeia e o meu telefone estava sob permanente escuta. Encontrava-me em casa, como quem espera a chegada de alguém amigo e irmão anunciado pelo Vento que escuto, desde menino. Abro a porta e deparo com uma mulher e um homem, dois uma só carne, o mesmo Projecto de vida. A máxima discrição. Nunca nos havíamos visto presencialmente. Só no Vento, nos Afectos, nas grandes Causas da Humanidade, que não conhecem distâncias, nem fronteiras, nem línguas. Olhamo-nos nos olhos, ela e ele, um pouco mais velhos do que eu, ao mesmo tempo que ele me exibe junto aos olhos, como um beijo sororal, um simples Cartão de visita, onde pude ler, Nuno Teotónio Pereira, Arquitecto.
A porta da residência paroquial, construída para ser a casa-fonte de Opressão na aldeia, e comigo se tornou, enquanto nela residi, casa-fonte do Humano Consciência e Liberdade, franqueia-se, junto com os meus braços abertos, e vejo aquele Ser Humano, mulher e homem em indissolúvel unidade, entrar como em sua própria casa. 

Os três, clandestinamente sentados, reunidos no cartório, experimentamo-nos de imediato aqueles dois ou três de que fala Jesus, o do Evangelho de Mateus (18, 20) reunidos em seu Nome, com ele fecundamente actuante entre nós e connosco. Fico então a saber que o meu ser-viver presbiteral na trincheira e à intempérie é clandestinamente acompanhado e apoiado, na capital do país e noutros locais.


Percebo então que o Regime que, há anos me seguia-espiava-perseguia estava condenado a desaparecer, naquela sua atesanal forma corporativista do Ditador católico. Prosseguiria, contudo, anos depois, numa outra forma mais sofisticada, denominada democracia, onde as populações são cientificamente privadas de voz e de vez, ainda que tenham toda a liberdade para fazerem o barulho e as manifestações de rua que quiserem, contanto que sejam previamente requeridas ao Tirano de turno e aceitem ser devidamente enquadradas-”protegidas” pela Polícia, de choque, se necessário. Um regime – este nosso actual – onde as eleições livres são o cúmulo do obsceno político e o que há de mais maquiavélico, no que respeita a manipulação partidária, mediática, clerical-paroquial. E, sobretudo, financeira.


Vieram, não muito depois, as minhas já esperadas duas prisões políticas sem direito a caução (Julho 1970 e Março 1973) em Caxias e os respectivos julgamentos no Tribunal Plenário do Porto, mas o Nuno e a Natália nunca mais deixaram de integrar comigo aqueles dois ou três (re)unidos em nome de Jesus, o mesmo é dizer, em nome das vítimas dos poderes, os povos crucificados da Terra. Nunca mais esta nossa comunhão foi cortada, antes, aprofundada. E, agora, que ambos são já definitivamente viventes, por isso, definitivamente invisíveis aos olhos, a Natália, primeiro, o Nuno, por estes dias primeiros de Janeiro 2016, a comunhão entre nós é contínua e para sempre.


Quando, mais tarde, já eu presbítero-jornalista, acontece o Jornal Fraternizar, no qual, como profissional, tive de assumir a responsabilidade de Director, o Nuno faz-se assinante e sabemos um do outro na comunhão que o Vento ininterruptamente alimenta. Radicaliza-se progressivamente o meu caminho presbiteral, com muito de fecundamente insurreccional desarmado, mas nem isso, quebra a nossa comunhão. Muito pelo contrário. Quando venho depois a saber que o Nuno também radicaliza o seu ser-viver humano Consciência e Liberdade e arquitecto afectos e Causas, ao ponto de fazer retirar o h do seu nome original Theotónio, e de deixar de ser e de se dizer cristão, experimento-me ainda mais seu companheiro e irmão. Na convicção de que, para esse seu salto qualitativo em frente, de cristão a ser humano simplesmente, muito terá contribuído a sua atenta e crítica leitura do Jornal Fraternizar e de alguns dos meus Livros. Tudo nele é Humano Consciência e Liberdade, por isso, a negação do cristão que quiseram que ele fosse e que não pôde deixar de ser, neste país, então, tiranizado e infantilizado pela perversa dupla Cardeal Cerejeira-Oliveira Salazar, quando, até, já se nascia cristão.


Não entendo, por isso, porque ainda há quem, após a derradeira páscoa do Nuno, não abdique de presidir a missas de sétimo dia e outras coisas do género, como a querer dizer que o Nuno retrocedeu nas suas opções mais ontológicas. O que é manifestamente impossível. Porque, depois que provamos o Humano Consciência e Liberdade, nunca mais podemos regredir ao cristão, a total negação do Humano Consciência e Liberdade, filho de mulher e da Ruah, a de Jesus.


A concluir, quero sublinhar, uma vez mais, que com a sua derradeira páscoa, nem nós perdemos o Nuno, nem a Arquitectura perdeu o Arquitecto afectos e Causas que nunca antes o país e o mundo haviam conhecido. Porque o Sopro que suscitou os seus projectos e fez levantar as suas obras arquitectónicas traz a indelével marca do Vento, da Ruah, a mesma que está na génese de Jesus, o filho de Maria e que está também na do Nuno Teotónio Pereira, desde o primeiro instante da sua conceição. Rejubilemos, pois, com o ser-viver para sempre do Nuno, nosso companheiro e irmão universal. E comunguemo-lo a todo o momento no Vento que nos faz Humanos Consciência e Liberdade. Por agora, ainda nesta nossa limitada condição de visibilidade histórica, depois, na definitiva condição de invisibilidade. A mesma de Deus Abba-Mãe que nunca ninguém viu e nos habita, mais íntimo a nós do que nós próprias, nos próprios, total fusão, nenhuma confusão.


Mario de Oliveira

http://www.jornalfraternizar.pt/

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