Karl Marx tinha razão
Karl Marx tinha razão
por [*] Chris Hedges – truthdig
“Karl Marx Was Right”
“Karl Marx Was Right”
Traduzido por Emerx
“O velho está morrendo, o novo luta para nascer, e neste ínterim há sintomas mórbidos,” escreveu Antonio Gramsci.
"Enquanto isso, a oligarquia capitalista entesoura escondido vastas somas de riqueza – US$ 18 trilhões estão armazenados em paraísos fiscais – uma extorsão em forma de tributo sobre aqueles que essa oligarquia domina, endivida e empobrece. Em sua fase final, disse Marx, o capitalismo se transformaria no chamado livre mercado, e com ele os valores e as tradições que ele diz defender. Nessa fase última, o capitalismo pilharia os sistemas e as estruturas que o tornaram possível. Em resposta ao sofrimento geral que isso causaria, haveria um recrudescimento da repressão. Numa última cartada desesperada para manter sua taxa de lucro, o capitalismo passaria ao saqueio e à pilhagem do Estado, contradizendo sua pretensa natureza."
Karl Marx expôs a dinâmica peculiar do capitalismo, ou aquilo que chamou “o modo de produção burguês”. Ele previu que o capitalismo havia plantado dentro de si as sementes de sua destruição. Ele sabia que as ideologias predominantes – pense no neoliberalismo- foram criadas para servir aos interesses das elites e particularmente das elites econômicas, visto que
(...) a classe que tem à disposição os meios de produção material tem ao mesmo tempo o controle dos meios de produção espiritual e (...) as ideias dominantes não são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes (...) relações que fazem de uma classe a classe dominante.
Ele viu que chegaria o dia em que o capitalismo esgotaria seu potencial e entraria em colapso, só não sabia quando.
Marx, como escreveu Meghnad Desai, era “um astrônomo da história, não um astrólogo”. Marx era agudamente consciente da capacidade de inovação e adaptação do capitalismo. Mas também era consciente de que a expansão capitalista não era eternamente sustentável. No momento em que testemunhamos o desenlace do capitalismo e do globalismo, Karl Marx é justamente reconhecido como o mais presciente e importante crítico deste modo de produção.
Num prefácio à “Contribuição para a Crítica da Economia Política” Marx escreveu:
Nenhuma ordem social jamais desapareceu antes de que todas as forças produtivas existentes em seu seio estivessem desenvolvidas; e novas e mais elevadas relações de produção nunca aparecem antes do amadurecimento das condições materiais de sua existência no seio da própria velha sociedade.
Portanto, a humanidade sempre se coloca apenas as tarefas que pode resolver; a examinar atentamente, encontramos sempre que a tarefa em si surge apenas quando já existem as condições materiais necessárias para a sua solução, ou estão pelo menos no processo de formação.
Em outras palavras, o socialismo não seria possível antes de o capitalismo exaurir seu potencial de continuidade, ainda que fosse temerário predizer quando. Somos convocados a estudar Marx para dar conta disso.
Os estágios finais do capitalismo, escreveu Marx, seriam marcados por desenvolvimentos que são intimamente familiares para muitos de nós. Incapaz de se expandir e gerar lucro nos mesmos níveis do passado, o sistema capitalista começaria a consumir suas próprias estruturas de sustentação. Ele começaria a predar, em nome da austeridade, a classe trabalhadora e os mais pobres, fazendo-os mergulhar ainda mais na dívida e na pobreza e diminuindo a capacidade do Estado em atender às necessidades dos cidadãos comuns.
Como diria Marx: O Sistema Burguês
O capitalismo deslocaria cada vez mais empregos – é o que ele está fazendo- inclusive manufaturas e quadros profissionais, em países com reserva de mão de obra barata. As indústrias mecanizariam suas unidades de produção. Isso desencadearia golpes econômicos não apenas sobre a classe trabalhadora, mas também sobre a classe média – um baluarte do sistema capitalista – sob a imposição maciça de dívidas concomitante à estagnação ou redução de renda.
Nos últimos estágios do capitalismo, a política seria subordinada à economia, o que levaria a partidos completamente esvaziados de qualquer conteúdo realmente político e desprezivelmente subservientes às imposições da finança e do capitalismo global.
Mas como advertiu Marx, há um limite a uma economia construída sobre a expansão da dívida. Chega o momento, sabia Marx, em que não há mercados disponíveis e o endividamento das pessoas atinge seu limite. Isso foi o que aconteceu com a chamada crise das hipotecas subprime. Uma vez que os bancos não podem mais conseguir novos tomadores de empréstimos subprime, o esquema desmorona e o sistema vem abaixo.
Enquanto isso, a oligarquia capitalista entesoura escondido vastas somas de riqueza – US$ 18 trilhões estão armazenados em paraísos fiscais – uma extorsão em forma de tributo sobre aqueles que essa oligarquia domina, endivida e empobrece. Em sua fase final, disse Marx, o capitalismo se transformaria no chamado livre mercado, e com ele os valores e as tradições que ele diz defender. Nessa fase última, o capitalismo pilharia os sistemas e as estruturas que o tornaram possível. Em resposta ao sofrimento geral que isso causaria, haveria um recrudescimento da repressão. Numa última cartada desesperada para manter sua taxa de lucro, o capitalismo passaria ao saqueio e à pilhagem do Estado, contradizendo sua pretensa natureza.
Marx advertiu que nos últimos estágios do capitalismo imensas corporações exerceriam o monopólio dos mercados globais.
A constante necessidade de expansão dos mercados para seus produtos lança a burguesia sobre toda a superfície do globo. Ela se aninha em toda parte, se instala em toda parte e estabelece conexões em todo lugar, escreveu Marx.
Essas corporações, seja no setor bancário, agrícola ou da indústria alimentícia, no armamento ou nas comunicações, usaria seu poder assumindo o controle dos mecanismos do Estado para impedir quem quer que seja de desafiar o seu monopólio.
Elas fixariam preços para alcançar o lucro máximo. Através de tratados comerciais como o TPP e o CAFTA, as corporações fariam pressões – como de fato é o que estão fazendo- para debilitar a capacidade do Estado em impedir a exploração ao impor regulamentações ambientais ou trabalhistas. E finalmente essas corporações suprimiriam a livre competição de mercado.
Num editorial de 22/5/2015, The New York Times nos dá uma vista sobre aquilo que, segundo Marx, caracterizaria os últimos estágios do capitalismo:
A partir deste fim de semana, Citicorp, JPMorgan Chase, Barclays e Royal Bank of Scotland podem ser considerados criminosos, pois declararam-se culpados na quarta-feira de crimes de conspiração para fraudar o valor das moedas do mundo. Segundo o Departamento de Justiça, a longa e lucrativa conspiração permitiu aos bancos elevar seus lucros sem considerações para com a equidade, a lei e o bem comum.
E The Times continua:
Os bancos vão pagar multas que totalizam cerca de US$ 9 bilhões, valores estimados pelo Departamento de Justiça e por reguladores federais, estrangeiros e dos Estados. Parece um bom negócio para uma fraude que durou pelo menos 5 anos, do final de 2007 ao começo de 2013, período durante o qual a renda dos bancos com o câmbio internacional foi de algo como US$ 85 bilhões.
Nos últimos estágios daquilo que chamamos capitalismo, como Marx bem entendeu, já não há mais capitalismo algum. As corporações devoram os recursos do governo, basicamente oriundas do contribuinte, como porcos ávidos num cocho.
A indústria armamentista, com seus US$ 612 bilhões de dólares legalmente outorgados para a defesa, sem contar várias outras despesas militares embutidas em outros orçamentos, aumenta nossa despesa com segurança nacional em mais de US$ 1 trilhão por ano. Essa indústria conseguiu este ano que o governo se comprometesse a gastar US$ 348 bilhões ao longo da próxima década para modernizar nossas armas nucleares e construir 12 novos submarinos padrão Ohio, estimados em US$ 8 bilhões cada um.
Como esses dois novos programas armamentistas vão resolver o que nos dizem ser a maior ameaça de nossos tempos – a guerra ao terrorismo- é algo que permanece um mistério. Afinal, que o saibamos, ISIS não possui sequer um bote a remo. Gastamos cerca de US$ 100 bilhões por ano com inteligência – leia-se vigilância- e 70% desse dinheiro vai para empresas privadas como Booz Allen Hamilton, cujos 99% de renda vêm do governo. E ainda por cima, somos os maiores exportadores de armas do mundo.
A indústria de combustíveis fósseis engole US$ 5.3 trilhões por ano em todo o mundo em custos encobertos para continuar queimando esses combustíveis, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse dinheiro, nota o FMI, acrescenta-se aos US$ 492 bilhões de subsídios diretos oferecidos pelos governos em todo o mundo através de isenções fiscais, reduções de taxas e brechas na legislação fundiária. Num mundo sadio, esses subsídios seriam investidos em esforços para nos livrar dos efeitos letais das emissões de carbono causadas pelos combustíveis fósseis, mas nós não vivemos num mundo sadio.
O capitalista e o trabalhador
No artigo “Why Should Taxpayers Give Big Banks US$ 83 Billion a Year?” (Por que os contribuintes dão US$ 83 bilhões por ano aos grandes bancos?), relatório publicado em 2013 por Bloomberg News, ficamos sabendo que economistas calcularam que os subsídios do governo reduzem os custos de empréstimo dos grandes bancos em 0.8%.
Multiplicado pelo passivo total dos 10 maiores bancos estadunidenses por ativos, isso chega a US$ 83 bilhões por ano de subsídios financiados pelo contribuinte, diz o relatório.
Os cinco maiores bancos - JPMorgan, Bank of America Corp., Citigroup Inc., Wells Fargo & Co. e Goldman Sachs Group Inc. representam um total de US$ 64 bilhões em subsídios, uma soma insolentemente igual a um lucro anual típico dessas empresas. Em outras palavras, os bancos que ocupam postos de decisão na indústria financeira dos Estados Unidos – com quase US$ 9 trilhões em ativos, mais da metade da economia estadunidense –simplesmente quebrariam na ausência do Estado de bem-estar corporativo. Seus lucros são, mormente, transferências de recursos dos contribuintes para os acionistas dessas empresas - continua o relatório.
As despesas do governo contam por 41% do PIB. O objetivo dos capitalistas corporativos é açambarcar esse dinheiro. Daí a privatização de setores completos das Forças Armadas, a pressão pela privatização da Seguridade Social, a contratação de corporações para cuidar de 70% de nossas 16 agências de inteligência, bem como da privatização das prisões, escolas e do desastroso e comercial serviço de saúde. Nenhum desses açambarcamentos de serviços básicos os torna mais eficientes nem reduz seus custos. Essa não é a questão. O que estão fazendo é roer as carcaças do Estado. E isso é a garantia da desintegração das estruturas que sustentam o próprio capitalismo. Marx anteviu tudo isso.
Marx realçou essas contradições inerentes ao capitalismo. Ele entendeu que a ideia de capitalismo – livre comércio, mercados livres, individualismo, inovação, autodesenvolvimento – só funciona no espírito utopista de verdadeiro crente como Alan Greenspan, mas nunca no mundo real. A acumulação de riqueza por uma minúscula elite capitalista, Marx anteviu, significaria que as massas já não mais poderiam comprar os produtos que fizeram avançar o capitalismo. A riqueza torna-se concentrada nas mãos de uma minúscula elite – o 1% dos mais ricos possuirá mais da metade da riqueza mundial no ano que vem.
As investidas contra a classe trabalhadora vêm acontecendo já há várias décadas. Os salários têm-se mantido estagnados ou têm sido reduzidos desde os anos 70. As manufaturas foram terceirizadas em países como a China ou Bangladesh, em que os trabalhadores ganham salários baixíssimos como 22 centavos de dólar por hora.
Trabalhadoras miserabilizadas em Bangladesh
Trabalhadores pauperizados, forçados a competir com outros que mal superam a condição servil, têm proliferado em todo o território dos Estados Unidos; eles lutam para manter um nível mínimo de subsistência. Indústrias como a construção civil, antigo celeiro de empregos bem remunerados e sindicalizados, são agora o feudo de trabalhadores não sindicalizados e amiúde não documentados. As corporações importam engenheiros e programadores que recebem um terço dos salários normais graças aos vistos H-1B, L-1 e outros semelhantes. Todos esses trabalhadores não gozam dos direitos dos outros cidadãos.
Os capitalistas respondem ao colapso de suas economias domésticas, por eles mesmos urdido, tornando-se credores tubarões globais e especuladores. Eles emprestam dinheiro a taxas de juros exorbitantes aos trabalhadores e aos pobres, mesmo sabendo que esse dinheiro pode nunca ser devolvido, e depois vendem essas dívidas em bloco, contratos derivativos de risco, títulos e ações a fundos de pensão, municipalidades, firmas de investimento e instituições. Essa forma recente de capitalismo é construída sobre aquilo que Marx chamou “capital fictício”. E isso leva, como sabia Marx, à vaporização do dinheiro.
Uma vez que os devedores de hipotecas subprime deixaram de pagar, o que esses grandes bancos e firmas de investimento sabiam ser inevitável, a grande crise mundial de 2008 se instalou. O governo socorreu os bancos, sobretudo imprimindo dinheiro, mas deixou os pobres e a classe trabalhadora – sem falar nos estudantes recém-formados – com dívidas pessoais esmagadoras. A política de austeridade se impôs. As vítimas da fraude financeira teriam sido feitas para pagar por essa fraude. E o que nos salvou de uma depressão ainda mais devastadora foi a intervenção maciça do Estado na economia, inclusive com a nacionalização de imensas corporações como AIG e General Motors.
O que vimos em 2008 foi a oficialização do Estado de bem-estar social para os ricos, um tipo de socialismo estatista para as elites financeiras previsto por Marx. Mas com isso instaura-se um crescente e volátil ciclo de altos e baixos, levando o sistema à beira da desintegração e do colapso. Sofremos duas crises de grande monta no mercado de ações e a implosão dos valores imobiliários só na primeira década do século XXI.
As corporações que possuem a mídia têm trabalhado dobrado para vender a um público aturdido, a ficção de que estamos vivendo uma recuperação. Os números do desemprego, obtidos através de uma variedade de truques, inclusive da eliminação dos desempregados por mais de um ano das listas oficiais, são uma mentira, como de resto também o são quase todos os indicadores divulgados para o consumo público. O que estamos antes vivendo são os estágios crepusculares do capitalismo global, o qual pode ser surpreendentemente mais resiliente que o esperado, mas nem por isso deixa de ser moribundo.
Capitalismo de Livre Mercado
Povo sem casa Casa sem povo
Marx sabia que uma vez que o mecanismo de mercado se tornou o único fator determinante do destino do Estado-nação, bem como do mundo natural, ambos seriam demolidos. Ninguém sabe quando isso vai acontecer, mas que isso vai acontecer, talvez no horizonte de nossas vidas, isso vai.
“O velho está morrendo, o novo luta para nascer, e neste ínterim há sintomas mórbidos,” escreveu Antonio Gramsci.
O porvir depende de nós.
[*] Chris Hedges, repórter laureado com Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.
Fonte: Redecastorphoto
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