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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Trovoada - O alentejano tem um afeto, uma gentileza, muito grande pelo tempo.



Editorial

Trovoada


 O alentejano tem um afeto, uma gentileza, muito grande 



pelo tempo. Talvez melhor: o alentejano tem um respeito 


inflexível pelo tempo. Pelo tempo que passa. Mas também 




pelo tempo que faz. Do tempo, daquele que passa, as 



horas, os dias, as estações, as gerações, faz o alentejano 


um uso tão avarento e apurado, como se estivesse a 


desmanchar um porco. Tudo se aproveita. Desde as 


vísceras às boias de toicinho. Todas as farripas de carne. E 


até os ossos do tempo dão sabor a uma qualquer cozedura. 


Costumam os estrangeiros de Portugal, talvez por isso 


mesmo, chacotear com o uso que o alentejano faz do tempo 


que passa. 


Chamam preguiça ao que o alentejano entende por vagar. 



Apelidam de lentidão aquilo que o alentejano acredita ser a 



própria razão de existir. Nomeiam de pachorrento um ser 



que, afinal, apenas tem uma questão muito profunda e 



antiga com o tempo. Com o tempo que passa. E, já agora, 



com o tempo que faz. Com as soalheiras. Com as 



ventanias. 




Com as cargas de água. Aludir ao tempo que faz é a melhor 



maneira que o alentejano encontrou para matar o tempo 



que passa. Dizem que foram os antigos egípcios que 



inventaram as ciências meteorológicas. Através da 



observação obstinada, repetida, metódica dos fenómenos 



atmosféricos. 




Mas isso é porque nunca foi feita uma investigação histórica 



e antropológica profunda sobre o alentejano. Assim, resta-



nos a memória. E as lembranças, transmitidas de geração 



em geração, dizem-nos que o alentejano sempre teve 




tarde se põe assim, amanhã está um calor que não se pode. 



Se o vento sopra assado, vem aí uma borrasca das antigas. 



Se as nuvens se juntam daquela maneira é porque a coisa 



não está lá muito famosa. Nisto da predição do tempo que 



faz, ninguém bate o alentejano. Mais do que um adivinho, é 



um verdadeiro sábio. Sensível como o mais afinado dos 



anemómetros. Mesmo o alentejano menos fadado para 



as decifrações da geofísica acaba por ser um verdadeiro 



especialista. Já se disse que o alentejano gosta de matar o 



tempo que passa falando do tempo de faz. Há povos e 



culturas que matam o tempo falando de comida, do 



trabalho, da política. O alentejano fala do tempo. Seja no 



pino da canícula ou nas rijezas do inverno. Seja na 



mercearia, no gabinete ou na mesa da sueca. O alentejano 



fala do tempo que faz porque o percebe, porque o tenta 



prever, porque sabe que nunca o poderá controlar. E por 



isso o respeita com uma religiosidade elevada ao grau 



santíssimo. Sem alertas coloridos. Nem alarmes. Para hoje 



dão trovoada. 



Temos conversa para uma semana. É assim…


fotografia: Nicola Di Nunzio/Arquivo Diário do Alentejo
Paulo Barriga

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