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Os papéis do homem e da mulher na sociedade continuam fortemente influenciados por estereótipos construídos ao longo de gerações promotoras do machismo. Tanto a família como a escola sofrem de um conservadorismo, com características reprodutoras do passado, sem a preocupação de promoverem a formação de cidadãos com autonomia para ajuizarem, compreenderem o mundo em que vivem e tomarem decisões que não sejam a mera repetição daquilo a que se habituaram. A sociedade civil precisa de ser enriquecida com cidadãos capazes de discutir políticas educativas que dêem à escola a capacidade de educarem gerações de pessoas que pensem por si, diferentemente das rotinas em que cresceram. Continua a ser comum aceitar-se a diferença natural entre homens e mulheres para continuar a aceitar-se que a mulher é um ser frágil, incapaz de assumir responsabilidades sociais, religiosas, políticas, familiares, etc., que se convencionou caberem ao homem. Nos primórdios da civilização, nasceram muitos mitos em volta da fragilidade da mulher. Não apareceu, por acaso, a narrativa de Adão e Eva, em que esta vem ao mundo a partir de uma costela do macho e rapidamente ganha reputação de ser maligno. Mas, nem a religião consegue explicar tudo o que acontece na vida, nem se exige hoje, no dia-a-dia, a força física necessária para confrontar os brutos. E, contudo, continua a ser difícil aceitar, na maior parte das sociedades existentes no nosso planeta (dos outros não temos notícia), que a mulher seja tão forte e tão capaz de assumir seja que tarefa for, ou responsabilidade, como o homem. Vai-se confirmando mesmo a ideia de que, quando lhe é dada a oportunidade, mostram-se mais competentes e responsáveis que os políticos machos.
O ponto de vista que queríamos desenvolver, com todo este arrazoado é que a democracia terá tudo a ganhar quando se tornar mais igualitária, o que está longe de acontecer. Não são as características naturais que diferenciam a mulher, mas sim as oportunidades de acesso à educação e à cultura que lhe são dadas. Os cidadãos terão de perceber que nenhumas sujeições são legítimas, quer sejam forçadas, quer sejam voluntárias. O estatuto de indivíduo, nascido durante a Revolução Francesa, alertava para o facto de se estender a todos os seres, independentemente “da raça, do sexo, ou da religião”. Também se defendia, por essa altura, que a educação deveria ser comum aos homens e às mulheres, pública, laica e gratuita, para se precaver contra as influências de grupos, laicos ou religiosos, que tiveram e continuam a ter, digo eu, o privilégio de se arrogarem o direito de manipular a educação dos jovens para não perderem os seus traços culturais ou, mesmo, maneiras de estar na vida. Um ministro da Instrução francês, do século XIX, teve a clarividência de proclamar que “quem cativa a mulher, domina tudo, eis por que a Igreja quer cativar a mulher. Esse deveria ser também o argumento para a democracia lha roubar”. Talvez porque se tem evitado esta discussão, ou por preguiça mental, ou por força das práticas rotineiras, ou porque a escola e a família, no seu tradicional conservadorismo, fogem da mudança como o diabo da cruz, continua a ser difícil arrancar da cabeça das pessoas a crença na inferioridade da mulher, vista, na maior parte das regiões do nosso planeta, como um ser nascido para trabalhar e procriar. Para o demonstrar, basta-nos, por hoje, invocar o que se passa com os casamentos precoces, um pouco por todo mundo, e não apenas, em África, ou na Ásia, ou na América do Sul. Em certas comunidades da Europa e dos Estados Unidos, para falar de zonas industrializadas e consideradas desenvolvidas, aceita-se o casamento de crianças de 12 anos, quase sempre com idosos com algum desafogo económico, que as usam como pau para toda a obra. No fundo, neste contexto, o casamento não passa de uma máscara da exploração comercial e sexual. No Yémen, a maioria das raparigas casa entre os 12 e os 15 anos; na Nigéria, 79% das raparigas são casadas entre os 9 e os 15 anos; no Norte da Etiópia, meninas de 7 anos casam com adolescentes e passam a fazer vida em comum; em certas regiões do Egipto, uma grande percentagem de raparigas casa antes dos 16 anos, como, aliás, acontece entre muitos povos asiáticos e sul-americanos. No Gana, no Benim, no Togo e na Nigéria, os feiticeiros escravizam as meninas a partir dos oito anos, a pretexto de expiarem os pecados que os pais algum dia terão cometido, assim acalmando os deuses e os espíritos tradicionais. Por vezes, como a menina é considerada menos valiosa que uma cabra, os feiticeiros aceitam estes animais como moeda de troca. Na Índia, há tribos que procedem à iniciação da prostituição na puberdade. Transforma-se a degradação da mulher numa tradição e num traço cultural. Quando surge alguém a denunciar estas situações, é habitual apelidá-las de imperialistas, ou, quando muito, culpá-los de imoralidade e de defenderem uma sociedade sem regras, nem respeito. Enfim, um pouco por todo o mundo, com a cumplicidade da ignorância das famílias e da troca de bens e de favores, continua a saga das mulheres, essas heroínas ostracizadas, com capacidades e potencialidades capazes de contribuírem para um mundo melhor. E não é verdade que, nas sociedades industrializadas, consideradas, bem ou mal, como as mais civilizadas, ainda os familiares levam os rapazes às prostituas para iniciação sexual? Embora, desgraçadamente, a tendência actual seja para a promiscuidade, o que me parece uma contradição, pois, assim, a mulher se banaliza e acrescenta argumentos a favor dos que a vêem como objectos sexuais, contribuindo para radicalizar a ideia do homem-senhor e da mulher prestadora de serviços, é desejável que uma educação para todos, independentemente do sexo, da raça ou da religião, genuinamente igualitária, portanto, situe na primeira linha das preocupações do poder a preparação de cidadãos atentos para o desenvolvimento de acções que aperfeiçoem a ciência, recuperem a espiritualidade e a fraternidade, pilares insubstituíveis para se encontrarem soluções para as crises que ciclicamente preocupam a humanidade, sejam elas sociais, económicas ou espirituais. O caminho faz-se caminhando.
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