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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Transporte de matérias perigosas: lobos e ovelhinhas?




“Nós também fizemos as nossas contas e podemos dizer que estes aumentos salariais são possíveis de cumprir, desde que o Governo e o Estado cumpram as suas obrigações e fiscalizem a aplicação da lei no terreno. O problema é que o sector está uma balbúrdia porque toda a gente ganha com isto, menos quem trabalha”.
“Das mais de 8000 empresas apenas 26 são consideradas grandes, que depois subcontratam serviços “em condições draconianas às pequenas e médias empresas”.
“Não sei a quem interessa que se continue a olhar para o lado”.
Cito Domingos Pereira, um empresário da indústria de transportes de mercadorias e dirigente de uma das associações patronais do sector (União de Tansportadoras Portuguesas – UTP), a partir de um artigo recentemente publicado no Público (jornalista Luísa Pinto), com o título: “Raio X dos transportes de mercadorias: um sector fragmentado e dominado por PME”[1].
Não se vai aqui emitir opinião sobre o conflito, em si. Muito há por aí escrito sobre isso. Mas porque tal se considera (também) importante numa perspectiva da resolução mais estrutural e permanente desse conflito, tenta-se aqui suscitar alguma reflexão inerente e pertinente (premente, mesmo) a propósito deste artigo e, sobretudo, das declarações deste dirigente patronal sobre a situação das pequenas empresas na indústria de transportes de mercadorias (e não só).
Pequenas e médias empresas. PME. Muito tem sido e continua a ser invocada esta sigla. E justifica-se. Dado o peso das PME no tecido empresarial português, são estas que são determinantes na criação e manutenção de emprego.
Muito por isso, têm beneficiado de medidas de derrogação de obrigações (inclusive no que respeita às relações e condições de trabalho) e de outros apoios (financeiros, de mercado, fiscais ou contributivos), visando que criem ou mantenham emprego.
Mas, apesar disso, muitas PME vão à falência, cessam a actividade ou reduzem o quadro de pessoal. E, sobretudo, é nas PME que o emprego é de menor qualidade, com salários mais baixos, maior precariedade, condições de trabalho mais degradadas e maior desregulação de direitos. Por que será?
Será porque essas ajudas e incentivos eram, de facto, inexequíveis? Serão as sempre repetidas dificuldades do contexto, a burocracia, a ineficiência e morosidade da Justiça, as dificuldades de financiamento bancário, o atraso no pagamento por parte dos seus clientes? Será, enfim, por incapacidade de empreendimento, de (re)investimento, de inovação e ou de gestão das próprias PME?
É certo que também temos que considerar tudo isso e, até, a situação do mercado interno, no qual mais assenta a economia das PME. Mas, justamente tendo tudo isso em conta, factos há que, face à situação difícil das PME, carecem de alguma reflexão.
Por exemplo, as maiores (“grandes”) empresas (nomeadamente, as mais cotadas na Bolsa) e os grandes grupos económicos, não aumentando os investimentos (nalguns casos, até pelo contrário, diminuindo-os), continuam a acumular lucros desproporcionados e, apesar disso (e das bonificações, “engenharias”, “exportações” e perdões fiscais), em geral, como empregadores directos, não têm contribuído, bem pelo contrário, com proporcional (“grande”) criação de emprego.
Muito da explicação está em que, na maior parte dessas “grandes” empresas, os seus quadros de pessoal são tão racionalizados que, na prática, ficam reduzidos à tecnoestrutura e à gestão (por exemplo, empresas de construção civil há em que, para o sector de “obra” propriamente dita, o quadro de pessoal se limita, praticamente, a directores de obra e encarregados), apoiando-se quase toda a sua actividade produtiva (de bens ou serviços) na subcontratação de PME. Que tanto podem ser pequenos ou médios subempreiteiros da construção civil, metalurgia ou electricidade, como prestadores de serviços de “reposição” em cadeias de distribuição ou “call centers” ou até, como se sabe, empresas com a actividade de “fornecerem” médicos e enfermeiros ao Serviço Nacional de Saúde.
Aliás, também nesta lógica externalizadora, muitas dessas PME subcontratadas, para cumprirem os respectivos contratos de prestação de serviço firmados com a organização (empresa ou administração pública) utilizadora final, recorrem, por sua vez, à sub(sub)contratação de outras pequenas (ou micro) empresas de prestação de serviços ou de empresas de trabalho temporário.
Portanto, a maioria das PME desenvolve a sua actividade na condição de subcontratadas de grandes empresas (ou até a administração pública, como utilizador final do trabalho), sendo que, nalgumas especialidades da produção (bens ou serviços), a cadeia de sub(sub,sub,sub…)contratação chega a ter quatro e mais elos. O que, inclusive, muito complexifica e dificulta a precisão de responsabilidades em matéria laboral e, daí, a acção de controlo público da Inspecção do Trabalho, (em Portugal, Autoridade para as Condições de Trabalho – ACT).
Num contexto de feroz concorrência como o actual, a relação entre as PME e as empresas contratantes é uma relação tendencialmente “leonina” (ou “draconiana”, voltando a citar o referido dirigente da UTP), sendo que estas últimas, as “grandes” empresas (ou até, eventualmente, a administração pública, como utilizador final) podem aproveitar(-se) bem do facto de muitas PME, entrando entre si em feroz competição, tudo fazerem para “ganharem o contrato”.
Se é que não é a subversão da qualidade do produto ou serviço (inclusive o que possa ter carácter público ou “essencial” a prestar, como é o caso, por exemplo, da saúde, educação, energia, comunicações ou transportes), pode ser o estrangulamento de preços para além dos limites dos custos reais e legais, a exiguidade dos prazos (sub)contratados face às exigências de quantidade, qualidade e segurança, a redução do quadro de pessoal à custa da (sobre)intensificação (ritmo e ou duração) do trabalho, a manutenção de baixos salários.
Pode até ser, como frequentemente também é, a desregulação, o incumprimento da Lei pela via da subversão da contratação de trabalho por conta de outrem:
– não declaração (sem qualquer formalização);
– dissimulação (por exemplo, como “prestação de serviço”, vulgo “recibo verde” ou admissão de trabalhadores com contrato de trabalho “a termo” ou “temporário” para postos de trabalho permanente);
– subdeclaração (remunerações registadas inferiores às efectivamente pagas ou, outro exemplo entre vários, formalização de trabalho suplementar como “ajudas de custo”) oficialmente perante a Autoridade para as Condições de Trabalho (dificultando o controle público), Segurança Social (com consequente fuga ao pagamento da respectiva Taxa Social Única) e, consequentemente, à Autoridade Tributária.
Mas, neste contexto e práticas para onde não raro degeneram as relações de subcontratação, há um domínio das condições de trabalho que, para além dos salários, é especialmente necessário focar (sobretudo em actividades mais perigosas): o das condições de segurança e saúde do trabalho (SST).
E, neste domínio, importa desde já frisar que as exemplares estatísticas de “baixa” ou “nula” sinistralidade ou morbilidade profissional (acidentes de trabalho ou doenças profissionais) que, em congressos e seminários, “grandes” empresas exibem em deslumbrantes power points, explicam-se muitas vezes pelo facto de as vítimas de acidentes não serem trabalhadores do seu quadro de pessoal mas do quadro de pessoal de PME subcontratadas[2] ou do de empresas de trabalho temporário que aceitam (com o inerente ónus de penosidade para os trabalhadores que contratam) realizar actividades de risco profissional acrescido que as empresas (ou a administração pública) utilizadoras finais externalizam.
Porque este modelo de gestão empresarial não tem nenhumas condições de sustentação estrutural e duradoura, tarde ou cedo, as PME que o seguem acabam mesmo por, ou prejudicar os trabalhadores nas suas condições de trabalho (baixos salários, sobre-intensificação do trabalho ou degradação das condições de SST) ou, mesmo, por soçobrar definitivamente como empresas. E, portanto, o que é mais grave, como empregadores. As vítimas são, naturalmente, os pequenos ou micro empresários e, sobretudo, os seus (ex)trabalhadores.
Mas também vítimas são (somos), “no fim da linha”, no que respeita à qualidade, segurança, oportunidade ou até objectiva imprescindibilidade social dos produtos ou serviços (nomeadamente, os que têm a ver com o funcionamento dos serviços públicos ou “essenciais”) a prestar pelas “grandes” empresas ou administração pública, os cidadãos em geral, pelo menos como utentes ou clientes.
Não se questiona, bem pelo contrário, a necessidade de apoio público às PME, dado o seu papel fulcral na criação e manutenção do emprego. Contudo, tais apoios não podem acabar por, perversamente, ainda que de forma indirecta mas objectivamente, constituir um factor de escamoteamento (e de dificultação do controlo público) da diminuição da qualidade do emprego, concretamente, da degradação das condições de trabalho. E, objectivamente, de perverso favorecimento das organizações contratantes pela não assunção da sua corresponsabilidade na garantia de salários legais, justos e dignos e demais condições de trabalho (também) dos trabalhadores do quadro de pessoal das empresas suas subcontratadas.
Por isso, além da retórica e das medidas de apoio às PME, é também necessária mais e melhor licenciamento e regulação das actividades em causa e acrescida eficácia do controlo / regulação da concorrência desleal e do dumping social em matéria de condições de trabalho e na prestação do serviço público ou de “serviços essenciais” que se podem verificar nas relações entre as PME e entre estas e as organizações suas (sub)contratantes utilizadoras intermédias e (sobretudo) finais do trabalho, sejam estas “grandes” empresas ou grupos económicos, seja, mesmo, a administração pública.
Com consequente maior (co)responsabilização efectiva das organizações utilizadoras finais do trabalho nos diversos domínios em causa (condições de trabalho, qualidade, segurança e oportunidade de fornecimento dos produtos ou serviços, concorrência leal, cumprimento das obrigações legais e regulamentares em geral).
Não está em causa o pressuposto da bondade das medidas de apoio estatal às PME nem o da idoneidade empresarial e a responsabilidade social da generalidade das empresas, das PME, e mesmo das grandes empresas,como entidades empregadoras.
Mas, considerando a já referida condição de regra das PME na economia portuguesa, a de subcontratadas, também neste domínio devemos ter presente um conhecido aforismo do grande Millôr Fernandes[3]: “De que vale às ovelhinhas se tornarem  vegetarianas se o lobo se conserva carnívoro?”
Não será que, face às declarações deste dirigente patronal, numa perspectiva de resolução mais efectiva, estrutural e permanente deste conflito (que, pelos vistos não é “só” laboral…), convirá reflectir (também) as relações entre “lobos” e ovelhinhas”[4]empresariais (eventualmente) envolvidos nesse conflito?
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[1] Público, 6/6/2019 – https://www.publico.pt/2019/08/06/economia/noticia/empresas-transporte-polarizadas-micro-empresas-1882465
[2] Não obstante a corresponsabilização das organizações empregadoras contratantes (utilizadoras finais do trabalho) esteja prevista na Lei (Nº 4 do Artigo 551º do Código do Trabalho e Artº 16º do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saude do Trabalho, aprovado pela Lei Nº 102/2009, de 10 de Setembro), as estatísticas oficiais de acidentes de trabalho, legalmente previstas para vários efeitos, são reportadas apenas ao empregador dos sinistrados.
[3] Rio de Janeiro, 16/8/1923 – 27/3/2012
[4] Em revista Pif-Paf (criada em 1963).

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