Durante o Desembarque a engenharia militar britânica superou a norte-americana, fazendo chegar aos areais um conjunto de veículos blindados modificados, capazes de destruir bunkers, transpor fossos, lançar pontes ou atravessar águas fundas. Isso ajuda a explicar a rapidez da progressão e o menor número de baixas nas praias anglo-canadianas
Contudo, uma vez em terra, a tecnologia americana foi decisiva e provou, uma vez mais, que não é só aos tiros que se ganham guerras. Se fosse preciso cingirmo-nos a um único exemplo, a escolha iria para o Jeep Wyllis. Não era o primeiro veículo militar de tracção integral da História mas era leve, ágil, rápido, fiável e com uma capacidade de transposição de obstáculos nunca vista.
O capô, horizontal, até as macas dos feridos permitia acomodar. A bordo tanto podiam ir quatro homens, como uma ou duas metralhadoras pesadas ou um sem número de carregos. Era suficientemente leve para poder ser levado nos planadores ou nos aviões de carga e foi produzido às dezenas de milhares.

O CAMIÃO QUE GANHOU A GUERRA

Mas o saber dos projectistas americanos não acabou aqui, como se mostra no Normandy Victory Museum, perto de Carentan, bem visível da via rápida N13. Como eram precisos veículos de carga capazes de chegar a todo o lado, a GMC fabricou o CCKW. Era um camião 6x6 a gasolina, com uma mecânica tão simples como robusta e que, por esse mundo fora, chegou aos nossos dias.
Era preciso ter mão firme para dar conta da direcção, muito pesada e imprecisa, mas, quando era preciso, até raparigas das tropas auxiliares femininas os conseguiam conduzir, como se vê em fotografias da época. O consumo chegava aos 70 litros aos cem, ou seja tanto como sete jipes ao mesmo tempo…
Com a intendência saturada por um sem número de missões, estes camiões chegavam de Inglaterra em peças separadas e alguém tinha de os montar. Na aldeia normanda de La Cambe, 150 habitantes foram arregimentados para integrar uma linha de montagem improvisada. Graças ao esforço destes operários de circunstância, 60 camiões GMC eram montados por dia no meio do campo. “Detroit mudou-se para aqui”, escreveu na altura um correspondente de guerra norte-americano.

MILHÃO E MEIO DE LITROS/DIA

Era preciso um veículo anfíbio? Era só aproveitar o chassis e a mecânica do camião GMC, assentar-lhe uma carroçaria estanque e ligar a tomada de força da caixa de transferência a dois hélices traseiros. Nascia o DUKW, verdadeiro cavalo-marinho, capaz de infindáveis vaivéns entre os navios e as praias, carregado de homens e material.
Convém lembrar que em finais de Julho só o 1º Exército dos EUA precisava de milhão e meio de litros de combustível por dia, fora 7500 toneladas de munições. A cadeia logística não podia falhar, pois era impensável uma divisão blindada progredir a meio gás para gastar menos gasolina ou uma bateria de artilharia espaçar o fogo para poupar munições.
O Normandy Victory Museum fica num antigo aeródromo norte-americano, um dos muitos que os infatigáveis (e nunca antes vistos na Europa) bulldozers terraplenaram num abrir e fechar de olhos. E para isso não ser esquecido, lá está na antiga pista um caça-bombardeiro Thunderbolt P-47, um avião tão versátil e resistente aos danos que, tanto conseguia escoltar os bombardeiros que atacavam a Alemanha, como fazer ataque ao solo, infernizando a vida às colunas blindadas alemãs na Normandia.
Ao lado, outra obra-prima, neste caso fruto do engenho do soldado comum: um rhinotank. De que se tratava? Uma vez obtida a rendição de Cherburgo os americanos começam a tentar progredir para sul na direcção de Saint Lô e das planícies da Bretanha e do Loire. Mas para o fazer tinham que atravessar a zona agrícola do Bocage, cortada por incontáveis valas, linhas de água, sebes e muros de pedra.
Era um terreno favorável à defesa, onde um só homem escondido com uma metralhadora atrás dum muro conseguia estorvar o avanço de uma companhia inteira. De 3 a 15 de Julho os americanos atolam-se numa batalha desgastante e sem fim à vista, tanto mais que os tanques não conseguiam transpor as sebes.

A INVENÇÃO DO SARGENTO CULLEN

É verdade que havia os Shermandozers, blindados M4 com uma pá de escavadora à frente, mas eram poucos e não resolviam. Até que um sargento nova-iorquino chamado Bill Cullen resolveu prestar atenção aos desabafos dos soldados vindos do interior dos EUA para quem naquele terreno “faziam falta era bisontes”.
Apresenta-se ao general Gerow, comandante do 5º corpo e pede-lhe um tanque Sherman e soldados que tivessem trabalhado na indústria automóvel. Ao fim de uma noite de trabalho tinha sido soldada à frente do blindado uma armação donde saíam quatro pontas metálicas horizontais biseladas. Perante os aplausos da tropa, o tanque experimental, lançado a 20 km/h, passou as sebes que nem uma faca na manteiga.
De Inglaterra é mandado vir mais equipamento de soldadura e 28 soldados americanos voltam temporariamente às suas profissões da vida civil. Criam uma linha de montagem que transforma 28 tanques por dia. O material para as hastes vem directamente dos obstáculos anti-carro e anti-navio deixados pelos alemães nas praias. Quando a 25 de Julho for lançada a Operação Cobra que resultará na transposição definitiva do Bocage, 3/5 dos tanques terão estes improvisados mas eficazes talha-sebes.
Cullen, 29 anos, perderá mais tarde uma perna em combate, o que não o impedirá de se casar e regressar a Nova Iorque ao seu antigo emprego de vendedor. Faleceu em 1963. Ao lado do P-47 e de algumas GMC 6x6, um rhinotank Sherman presta-lhe a devida homenagem no exterior do Normandy Victory Museum.
Um Sherman M4 equipado com o talha-sebes do “sistema Cullen”
Um Sherman M4 equipado com o talha-sebes do “sistema Cullen”

BALUARTES DA MURALHA DO ATLÂNTICO

Escusado será dizer que não havia boa engenharia só de um lado. Algumas das posições defensivas erguidas pelos alemães na Muralha do Atlântico eram obras-primas, nomeadamente as baterias costeiras. Instaladas à retaguarda das praias em locais difíceis de localizar, mesmo do ar, dispunham de peças de 150 mm ou mais, capazes de bater, tanto os locais de desembarque como as águas onde evoluíam os navios da frota de apoio.
Cada peça tinha o seu abrigo e a sua zona de tiro, existindo casernas, paióis e bunkers, construídos em betão e muitas vezes semi-enterrados. À volta, um labirinto de trincheiras e fossos, protegendo o conjunto de ataques de infantaria.
Exterior do Museu de Utah com uma lancha de desembarque Higgins em primeiro plano
Exterior do Museu de Utah com uma lancha de desembarque Higgins em primeiro plano
Foi assim que no Dia D as baterias gémeas de Azeville e Crisbeq continuaram a alvejar a praia de Utah mesmo depois de esta ter sido tomada pelos americanos. Quando a infantaria americana penetrou em Azeville e um enxame de soldados cobriu as instalações, o comandante pediu à bateria gémea que alvejasse a sua própria posição para dispersar os atacantes. Às seis da manhã do Dia D a bateria de Crisbeq travara um duelo de artilharia com a frota, afundando o contratorpedeiro dos EUA Corry ao largo da praia de Utah.
Embocadura da praia de desembarque norte-americana de Utah
Embocadura da praia de desembarque norte-americana de Utah

DE VOLTA À LUZ DO DIA

Foram precisos vários dias para estas baterias serem finalmente silenciadas. Azeville rendeu-se a 9 de Junho mas Crisbeq resistiu mais 48 horas, tendo parte da guarnição conseguido fugir de noite através das linhas americanas. Uma e outra foram musealizadas e fazem hoje parte dos circuitos de visita.
Mais para leste foram precisos três dias para tomar a bateria de Maisy, a 3 km da praia norte-americana de Omaha. Ao contrário das suas duas congéneres, esta bateria, que esteve 63 anos coberta por campos de cultura, só agora começou a ser musealizada, o que lhe dá um atractivo especial.
São 2,5 km de visita a pé a um labirinto de trincheiras, bunkers e casamatas que só a 9 de Junho foi tomado pelo 5ª Exército americano e pelo 2º Batalhão de Rangers, após um ataque final que durou cinco horas e meia. No pequeno museu adjacente à recepção há dezenas de peças de colecção da época aqui exumadas, desde capacetes, a munições, bandeiras, insígnias, veículos, bocas-de-fogo, etc.
A autenticidade deste local, onde as peças de 155 mm ainda se apresentam roídas pela ferrugem, pode ser aferida pelo aviso aos visitantes no sentido de trazerem calçado impermeável e resistente pois, quando chove, a água e a lama fazem das suas, como no tempo da guerra.
Com esta crónica encerro o ciclo dedicado à Normandia e ao 75º aniversário do Dia D. Muito ficou por contar, tanto mais que de Sainte-Marie du Mont a Caen e de Cherburgo a Saint Lô há, pelo menos, 30 museus dos mais diversos tipos. Se tiver oportunidade, não deixe de os visitar.
Antigos paióis ainda protegidos por sacos de areia na bateria costeira de Maisy
Antigos paióis ainda protegidos por sacos de areia na bateria costeira de Maisy



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