Público-privado: a falácia
Um leitor dos textos que sem regularidade estabelecida aqui vou editando nesta plataforma Medium.com, comentou o texto sobre os programas dos partidos e desafiou-me a opinar “acerca do que considera as questões centrais ou decisivas ligadas às seguintes dicotomias: nacionalismo-cooperação europeia (ou internacional); serviço nacional de saúde-medicina privada; educação pública-ensino privado; contratos colectivos de trabalho-contratos individuais; gestão pública ambiental-propriedade privada”
Excelentes questões. Li as perguntas depois de ter estado a ver na TV um programa sobre as novas capacidades da armada dos Estados Unidos, a organização de uma esquadra à volta do porta-aviões. Dois aspectos centrais, uma esquadra projecta a força dos Estados Unidos para qualquer parte do planeta e pode impô-lo. Segundo os oficiais entrevistados, uma esquadra tem um orçamento superior ao da maioria dos Estados do planeta, com excepção de potências concorrentes, a Rússia, a China, a Índia e a União Europeia, o Japão e Arábia Saudita. E poucos mais. São impostos dos contribuintes americanos e a esquadra — em alguns casos um único navio polivalente — pode derrotar um Estado de média dimensão.
Esta reportagem motivou-me a começar por ideias a propósito da questão público-privada.
Os impostos dos contribuintes americanos pagam a mais cara máquina de guerra do planeta, um sistema público de imposição da força, mas não pagam um sistema público de saúde, nem de solidariedade (previdência) social, nem um sistema público de educação gratuitos e generalizados, nem um programa de sustentabilidade ambiental, promovendo tecnologias mais limpas e sustentáveis pelo planeta, entre tantos. Aí, para esses serviços essenciais, reina o lucro privado. O mais caro e sugador sistema público dos EUA transfere dinheiro público para o lucro privado através dos contratos com as grandes empresas associadas no complexo militar-industrial, da Ford à General Electric, da Microsoft à Boeing para impor um determinado modo de produção baseado no lucro privado de uma oligarquia.
A conclusão que podemos tirar é a de que só existe um serviço público quando o grupo no poder pretende garantir o lucro privado. A dicotomia público-privado é falsa e o resultado é sempre uma imposição do poder do lucro privado sobre o serviço público. A questão público-privado resume-se sempre e no essencial à estratégia de um grupo para se apropriar pela força da riqueza gerada pela prestação de serviços públicos. A Arte de Furtar, de um anónimo português, é um clássico na explicação desta transferência.
O Estado — a organização política criada nas sociedades mais desenvolvidas para assegurar a vida de uma comunidade — é, de facto, um instrumento que, no essencial, define/impõe os bens e serviços que organizam a acumulação da riqueza a um dado grupo, os ditos privados, e os bens e serviços que devem ser suportados por todos, os ditos públicos.
Em princípio o cidadão que não pertença ao grupo dos “reinantes” de um dado Estado é duplamente espoliado: através do lucro que fornece aos privados com a aquisição de bens e serviços e através do que paga como taxas e impostos ao Estado para dispor de alguns serviços públicos.
A propalada eficácia da gestão privada assenta nesta dupla fonte de lucro: o que lhe advém das famílias compradoras e do Estado, através de recursos públicos. Ainda beneficia de serviços públicos gratuitos como infraestruturas, segurança, sistemas judiciais, produção legislativa favorável, entre outros.
Voltando aos Estados Unidos (no século XIX e até antes da II GM no século XX foi o Reino Unido a desempenhar o papel de império definidor das regras de troca entre o público e o privado), os Estados Unidos criaram a mais cara máquina pública para garantir que os seus bancos, todos privados, incluindo a Reserva Federal, podem emitir dinheiro virtual e impô-lo como moeda de troca no comércio mundial. O dólar, tal como a libra, são fruto do poder militar. Atrás de um banco privado está uma esquadra pública.
O serviço público da máquina militar americana, como antes a inglesa, garante o acesso das companhias privadas americanas aos mercados e às fontes de matérias-primas em todo o mundo em condições de privilégio e jamais de concorrência. Mas não garante a sobrevivência em condições de dignidade a 40 milhões dos seus habitantes (10% da população) que vivem abaixo dos limiares da pobreza. Não lhes garante habitação, nem saúde, nem educação, nem uma previdência digna quando em situações de dificuldade extrema. Esses 40% são o lixo gerado pela iniciativa privada. O serviço público, de tão dependente do lucro privado, nem sequer gasta recursos para os limpar das ruas.
Esta introdução quer dizer o quê? Quer dizer que no modelo de sociedade dominante o serviço público é, no essencial, apenas o que garante o lucro privado imposto pela força. Todos e quando escrevo todos é todos os habitantes do planeta pagam a armada dos Estados Unidos para os Estados Unidos imporem os lucros privados que a sua oligarquia reinante acumula. Vivemos em ciclo vicioso imperial: todos pagamos o serviço público do poder, as esquadras americanas neste caso, para sermos dominados e explorados.
A Europa Ocidental e os Estados Unidos, imediatamente após a II Guerra Mundial criaram o chamado welfare state, o estado de bem-estar, essencialmente para reconstruir as economias destroçadas, caso da Europa, e para barrar o caminho às massas de trabalhadores em ebulição, que podiam ceder à tentação das teorias socialistas, lideradas pela URSS. Em claro, para apresentar um antídoto contra o comunismo. Esse foi o papel das sociais-democracias e das democracias cristãs europeias até à queda do Muro de Berlim e à implosão da URSS. O perigo do comunismo esvaiu-se e o sistema de lucros privados ressurgiu com toda a crueza e agressividade. Uma ponta de lança armada e paga com o sacrifício público da maioria para assegurar o lucro privado de uma minoria organizada no topo de poder, como uma oligarquia, de novo.
Todos os serviços públicos, com excepção dos que asseguram o poder e a sua projecção, podem ser privatizados e foram-no: das telecomunicações não estratégicas à indústria farmacêutica, do ensino fundamental à saúde, dos transportes às redes de energia e de saneamento, até as prisões foram privatizadas, o que cria situações chocantes de juízes privados a condenar cidadãos para garantir as cotas de ocupação das prisões, para estas empresas receberem os subsídios estatais.
Perante este cenário a pergunta seria: mas todos os serviços devem ser públicos? Todas as actividades devem ser socializadas? A socialização total dos meios de produção já mostrou as suas fraquezas e as taras a que conduz. Mas num sistema em que produzir medicamentos é, com o entretenimento e o armamento, a mais rentável forma de obter lucro privado há que pensar no papel do Estado na definição dos setores de atividade que podem e devem ser abertos à competição e ao mercado e aqueles que são tarefas do Estado e devem ser reserva deste, como serviços essenciais públicos. Bens de uso devem ser públicos.
Acresce que a definição de políticas estruturantes devem ser definidas pelos Estados. Mas não são. A liberdade de escolha — tão apregoada pelos liberais, é uma falácia. Um exemplo recente e explosivo em Portugal, o turismo! O Estado deve aceitar que essa actividade se torne, circunstancialmente, a âncora do desenvolvimento e da produção de riqueza, liberalizando a abertura de hotéis, restaurantes, permitindo a utilização de terrenos e de património sem controlo, a degradação ambiental, investindo recursos para apoiar esta actividade que poderiam e deveriam ser canalizados para outras áreas mais sustentáveis a médio e longo prazo?
Se pensarmos um pouco, a definição do turismo como a actividade chave na actual fase da produção da riqueza em Portugal nem sequer foi uma decisão dos empresários privados portugueses, nem, ainda menos, do Estado Português. Não foi nem é por acaso que, de repente, as revistas e os meios pesados de comunicação de massas mundiais, anglo-saxónicas na maioria, começaram a difundir notícias do tipo: O segredo do paraíso é Portugal. A melhor praia do mundo é portuguesa. Lisboa está na moda. O Porto está na moda. A sardinha está na moda, assim como o pastel de nata. Vá a Portugal, instale-se em Portugal, invista em Portugal.
A opção pelo turismo como actividade central na economia portuguesa não tem a ver com a liberdade do mercado, nem com a predominância da actividade privada. Foi fruto de uma decisão tomada por um grupo que tem como fim obter lucro (privado) à custa de investimentos públicos. Quem tomou esta decisão foram os grandes fundos de investimento internacionais, os bancos e os grandes operadores de transporte de massas e de hotelaria que reorientaram para Portugal os investimentos que haviam feito em zonas do globo que se tornaram menos atrativas por razões diversas, terrorismo, intolerância religiosa, por exemplo. Os investimentos em restaurantes, tuk-tuk, alojamentos locais, novos hotéis, hubs de companhias aéreas low cost, reconstrução de áreas degradas das cidades, novos aeroportos são fruto de decisões sobre o lucro a curto prazo. O Estado Português está a subsidiar esta transferência. Ficamos todos contentes porque se reabilita património, anima a construção civil, baixa o desemprego, mas no final restará uma mão cheia de nada… Aconteceu o mesmo com as PPP, quer as da saúde quer as das auto-estradas, aconteceu com a concessão da ANA-Aeroportos, o Estado passou do público para o privado direitos e lucros sobre a saúde dos seus cidadãos, sobre a construção de vias de comunicação automóvel e as ditas SCUT, incentivou a compra de automóveis a baixos juros, e abdicou de uma política sustentada de transportes colectivos, de ferrovia por exemplo, abdicou de controlar os seus portos e aeroportos, isto é as portas de entrada em Portugal. Já agora, com a concessão das pontes do Tejo, transferiu para o lucro privado as entradas na capital. Os cidadãos não tiveram nenhuma liberdade de escolher, nem obtiveram qualquer vantagem sustentada nestas opções. O lucro privado sobrepôs-se à liberdade individual e cidadã e ao interesse público. Os pensionistas que iam levantar as suas pequenas pensões às estações dos CTT batem com o nariz na porta. Foram passados ao lucro privado.
A questão público-privada é deliberadamente associada à liberdade de cada um montar o seu negócio. Na realidade essa liberdade está pervertida desde a nascença. Quem decide se se constroem auto-estradas ou ferrovias, ou aeroportos, ou barragens, ou até hospitais, quem fecha serviços de proximidade pouco lucrativos são os grandes e sombrios poderes facticos, de facto: a banca mundial, os fundos de investimento abutres, as grandes famílias de financeiros, os especuladores, os clubes de reflexão tipo Bildeberg, as fundações, como a Ford, universidade, que a jusante vão incentivar a orientação de investimentos, desencadear guerra em pontos chave, promover independências, ditaduras e democracias, terrorismo em nome de religiões ou histerias nacionalistas ao sabor das conveniências e do lucro.
Quem decide que o turismo é a actividade central aqui em Portugal, ou em Marrocos, ou na Tunísia, ou na Indonésia, são aqueles que vão promover os pequenos empresários com um café, um restaurante, um AL, um tuk-tuk, um quiosque e até um pequeno hotel até, no final desta febre, restarem as ruínas e pobres e pequenos falidos a reclamar como os lesados do BES que o Estado, o dinheiro público, lhes acuda.
A questão do público-privado é uma questão de poder e não de liberdade. É uma questão de lucro para uma minoria e não uma oportunidade de melhorar o bem-estar e a justiça da maioria dos elementos de uma dada sociedade.
Para terminar esta viagem por fora das rotas normais. A questão público-privado em Portugal é ainda determinada pela exiguidade e pobreza do território, pela sua geografia que nos faz dependentes das potencias marítimas e pela história que, só para referir a Idade Contemporânea, colocou os portugueses na dependência do Estado para satisfazer as suas necessidades básicas, já que a sociedade civil, as forças do mercado, os empresários privados, as burguesias nacionais, não tiveram energia, ou qualidade para investirem os seus capitais em infraestruturas e serviços, passaram ao lado da revolução industrial, preferiram após as ditas lutas liberais assenhorearem-se sem custo nem risco das propriedades das ordens religiosas e dos absolutistas, aristocratizarem-se no mau sentido e viverem das rendas fundiárias. Coube ao Estado, nas mãos desta casta parasitária, fazer concessões a empresas estrangeiras, quase sempre inglesas para construírem estradas e caminhos de ferro, instarem transportes públicos e redes de comunicações, até concessionaram as colónias e só elas investirem quando já não eram sustentáveis porque os ventos da História haviam inviabilizado o colonialismo de administração direta. Um caso revelador da estupidez e da ignorância da burguesia gestora dos negócios privados. Um caso único de falência de um regime de lucro privado com uma guerra paga com dinheiros públicos e vidas de portugueses…
Sofremos do pecado original de, no essencial, a receita para obter o lucro privado ser a de um grupo reinante ocupar o Estado e fazer pagar aos cidadãos os serviços públicos, incluindo com as suas vidas.
Desculpem o tamanho do texto.
CARLOS MATOS GOMES in facebook
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