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Na porta de uma barraca na Queima das Fitas do Porto, escreveu-se: “Se aqui queres entrar/ Um calipo tens de chupar/ Se daqui queres sair/ Tens de me fazer vir.”
À quarta noite da festa académica, esta porta não se abriu.
A “quadra” estava visível para quem pedia uma bebida ao grupo de estudantes que, na noite de 8 para 9 Maio, já não esteve atrás do balcão. A “Jabardar” foi um dos pontos de venda de bebidas alcoólicas que a Federação Académica do Porto (FAP) encerrou, por agora de forma temporária, depois de reincidirem “os comportamentos sem civismo observados (...) e a divulgação dos mesmos levando, de alguma forma, à sua promoção e incentivo”.
A organização do evento condenou “os atentados à dignidade da pessoa humana” e obrigou os responsáveis de todos os espaços a apagar todos esses conteúdos até então divulgados.
Falam dos vídeos publicados nas contas de Instagram das próprias barraquinhas e em órgãos de comunicação onde se vêem várias jovens mulheres a beijarem-se, alegadamente, para em troca receberem shots grátis, ou que mostram raparigas (e também alguns rapazes) deitadas nos balcões, em alguns casos seminuas ou seminus, enquanto outras pessoas bebem shots a partir de várias zonas do corpo delas e outras filmam.
No balcão onde Catarina Ferreira se inclina para nos ouvir melhor, só se espraiam copos. E, assegura, “vendem-se bem”, mesmo que o tema seja uma série de televisão que se desenrola no início do século XX. As boinas, as camisas e os coletes que usam dentro das paredes forradas com papel de parede a simular tijolo imitam o pub em Peaky Blinders, série que todos os estudantes que trabalham na “Garrison’s" acompanharam.
Durante o dia, a FAP passou por eles, tal como passou por todas as outras barracas, para pedir que não gravassem nada, que não deixassem pessoas subir para o balcão e que como pagamento para as bebidas só aceitassem dinheiro, enumeram. Estes já eram os princípios seguidos pela estudante de Ciências de 23 anos. “Não aceito que façam nada disso na barraca”, garante, agora séria. “Já há tantas assim!”, observa uma amiga.
A investigadora, que testemunhou estes comportamentos tanto durante as intervenções da equipa de profissionais experientes em violência sexual e no namoro, no Queimódromo, em Matosinhos, como online, na manhã a seguir, sublinha que o consentimento “é sóbrio” — “activo e dinâmico” também, ou seja, pode ser revogado. E que, mesmo que a pessoa tenha tomado uma opção de forma autodeterminada, reproduzir e “dar continuidade a este comportamento que acontece num espaço de tempo e numa decisão muito contextualizada é uma forma de humilhar”.
“Por vezes, um acto que pode nem ser humilhante, descontextualizado e sujeito aos escrutínio do público mais alargado passa a ser degradante”, alerta. Ainda mais numa “cultura de culpabilização da vítima, em que as pessoas são mais rápidas a escrutinar, observar e imaginar qual terá sido o comportamento da pessoa abusada que possa justificar o que lhe aconteceu”, como demonstram alguns comentários às notícias de uma possível violação (entretanto, a PJ não encontrou indícios de crime). “Neste processo de culpabilização muito pouco empático, reparamos que o sexismo não tem género, e que as mulheres também podem ser extremamente duras com as suas pares”, partilharam os responsáveis pelo Ponto Lilás, nas redes sociais.
E sim, Cristiana sabe que a “hiper-sexualização”, na maior partes das vezes do corpo feminino, “não é novidade” nos nomes e na imagética escolhidos para fazer sobressair as diferentes barraquinhas em contexto académico — mas a “normalização” é “precisamente um dos problemas da violência sexual”, lembra.
Os vídeos partem, normalmente, de “desafios”. Como os que estão escritos numa das barracas que, depois da tomada de posição da FAP, admite deixar de realizar alguns dos “challenges” que ainda publicitam nas paredes. Como o flash — expor as mamas — ou os body shots. “No seguimento da discussão que tem havido eu percebo que a imagem que passa é má”, diz o responsável pelo espaço. “Mas há barracas que têm a fama disso há muitos anos e é isso que as pessoas esperam”, explica, referindo-se a casos em que o preçário não discrimina só preços, mas sim actos de teor sexual.
A André Guerra, 25 anos, perguntaram-lhe: “O que é que eu preciso de fazer para ter um shot?”. “Precisas de pagar um euro”, terá respondido. Passa as noites na Queima e, quando acorda, tem em grupos do WhatsApp vídeos em que as pessoas, suas conhecidas, “estavam conscientes do que faziam”, mas onde conseguia perceber que “estavam obviamente a serem incentivadas”. Já há cinco anos que trabalha na barraca “Cabra Cega”, com colegas de Economia, e observa que “de ano para ano as coisas vão tomando proporções diferentes”.
No entanto, assegura que “10% das barracas estão a passar uma imagem errada da Queima” e que a “FAP começou a ter um controlo apertado” que “surtiu efeitos”, mas que também “deveria ter sido feito desde o início”. “Esta tem de ser uma semana para os estudantes recordarem — pelos bons motivos, não pelos piores.”
tp.ocilbup@orietnom.ataner
À quarta noite da festa académica, esta porta não se abriu.
A “quadra” estava visível para quem pedia uma bebida ao grupo de estudantes que, na noite de 8 para 9 Maio, já não esteve atrás do balcão. A “Jabardar” foi um dos pontos de venda de bebidas alcoólicas que a Federação Académica do Porto (FAP) encerrou, por agora de forma temporária, depois de reincidirem “os comportamentos sem civismo observados (...) e a divulgação dos mesmos levando, de alguma forma, à sua promoção e incentivo”.
A organização do evento condenou “os atentados à dignidade da pessoa humana” e obrigou os responsáveis de todos os espaços a apagar todos esses conteúdos até então divulgados.
Falam dos vídeos publicados nas contas de Instagram das próprias barraquinhas e em órgãos de comunicação onde se vêem várias jovens mulheres a beijarem-se, alegadamente, para em troca receberem shots grátis, ou que mostram raparigas (e também alguns rapazes) deitadas nos balcões, em alguns casos seminuas ou seminus, enquanto outras pessoas bebem shots a partir de várias zonas do corpo delas e outras filmam.
No balcão onde Catarina Ferreira se inclina para nos ouvir melhor, só se espraiam copos. E, assegura, “vendem-se bem”, mesmo que o tema seja uma série de televisão que se desenrola no início do século XX. As boinas, as camisas e os coletes que usam dentro das paredes forradas com papel de parede a simular tijolo imitam o pub em Peaky Blinders, série que todos os estudantes que trabalham na “Garrison’s" acompanharam.
Durante o dia, a FAP passou por eles, tal como passou por todas as outras barracas, para pedir que não gravassem nada, que não deixassem pessoas subir para o balcão e que como pagamento para as bebidas só aceitassem dinheiro, enumeram. Estes já eram os princípios seguidos pela estudante de Ciências de 23 anos. “Não aceito que façam nada disso na barraca”, garante, agora séria. “Já há tantas assim!”, observa uma amiga.
Isto não é consentimento
Foram uma das barracas geridas por grupos de amigos de diferentes faculdades que cumpriram a recomendação no regulamento escrito pela FAP e não recorreram a qualquer tipo de “uso de imagens/escrita sexista, e/ou que promova o discurso de ódio ou incentivo a qualquer tipo de violência”. Para Cristiana Vale Pires, a partilha dos vídeos, que lhe chegam através de denúncias no Ponto Lilás (estrutura dentro do Queimódromo onde estão especialistas prontos a prevenir situações de violência sexual), “é uma forma de violência, porque se expõe completamente um comportamento que uma pessoa teve num estado alterado de consciência”.A investigadora, que testemunhou estes comportamentos tanto durante as intervenções da equipa de profissionais experientes em violência sexual e no namoro, no Queimódromo, em Matosinhos, como online, na manhã a seguir, sublinha que o consentimento “é sóbrio” — “activo e dinâmico” também, ou seja, pode ser revogado. E que, mesmo que a pessoa tenha tomado uma opção de forma autodeterminada, reproduzir e “dar continuidade a este comportamento que acontece num espaço de tempo e numa decisão muito contextualizada é uma forma de humilhar”.
“Por vezes, um acto que pode nem ser humilhante, descontextualizado e sujeito aos escrutínio do público mais alargado passa a ser degradante”, alerta. Ainda mais numa “cultura de culpabilização da vítima, em que as pessoas são mais rápidas a escrutinar, observar e imaginar qual terá sido o comportamento da pessoa abusada que possa justificar o que lhe aconteceu”, como demonstram alguns comentários às notícias de uma possível violação (entretanto, a PJ não encontrou indícios de crime). “Neste processo de culpabilização muito pouco empático, reparamos que o sexismo não tem género, e que as mulheres também podem ser extremamente duras com as suas pares”, partilharam os responsáveis pelo Ponto Lilás, nas redes sociais.
E sim, Cristiana sabe que a “hiper-sexualização”, na maior partes das vezes do corpo feminino, “não é novidade” nos nomes e na imagética escolhidos para fazer sobressair as diferentes barraquinhas em contexto académico — mas a “normalização” é “precisamente um dos problemas da violência sexual”, lembra.
Os vídeos partem, normalmente, de “desafios”. Como os que estão escritos numa das barracas que, depois da tomada de posição da FAP, admite deixar de realizar alguns dos “challenges” que ainda publicitam nas paredes. Como o flash — expor as mamas — ou os body shots. “No seguimento da discussão que tem havido eu percebo que a imagem que passa é má”, diz o responsável pelo espaço. “Mas há barracas que têm a fama disso há muitos anos e é isso que as pessoas esperam”, explica, referindo-se a casos em que o preçário não discrimina só preços, mas sim actos de teor sexual.
A André Guerra, 25 anos, perguntaram-lhe: “O que é que eu preciso de fazer para ter um shot?”. “Precisas de pagar um euro”, terá respondido. Passa as noites na Queima e, quando acorda, tem em grupos do WhatsApp vídeos em que as pessoas, suas conhecidas, “estavam conscientes do que faziam”, mas onde conseguia perceber que “estavam obviamente a serem incentivadas”. Já há cinco anos que trabalha na barraca “Cabra Cega”, com colegas de Economia, e observa que “de ano para ano as coisas vão tomando proporções diferentes”.
No entanto, assegura que “10% das barracas estão a passar uma imagem errada da Queima” e que a “FAP começou a ter um controlo apertado” que “surtiu efeitos”, mas que também “deveria ter sido feito desde o início”. “Esta tem de ser uma semana para os estudantes recordarem — pelos bons motivos, não pelos piores.”
tp.ocilbup@orietnom.ataner
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