Tal como no romance de Gabriel García Márquez em que Santiago Nasar é assassinado, pese embora fosse do conhecimento geral a iminência do homicídio premeditado e ninguém ter feito algo para o contrariar, também a Casa Neves Pires, na Rua Reitor Teixeira Guedes, em Faro, sofreu um incêndio dramático na segunda-feira, 6 de maio, sem que ninguém, com responsabilidades na cidade, tivesse perdido um minuto sequer para tentar evitar o que era previsível que acontecesse.

A Casa Neves Pires, um belíssimo casarão do início do séc. XX, de estilo eclético, sendo evidentes os elementos de Art Nouveau na profusão de adornos das platibandas e no trabalho do ferro forjado da porta principal e dos gradeamentos das janelas, tal como os exuberantes azulejos biselados cor de tijolo na fachada e outros policromáticos na platibanda, constituiu durante um século um ponto alto na arquitetura farense. 

Esta casa tem sido ponto de paragem obrigatória para qualquer estrangeiro que passe naquela rua, duplamente perplexos, por um lado pela beleza e aura extraordinária que a casa emana, e por outro, seguramente, por tal preciosidade estar ao abandono.

A circunstância deste edifício releva-me para um déjà vue com mais de 40 anos de idade: a destruição do Palácio do Lã e do edifício apalaçado do Banco Nacional Ultramarino. E este flashconduz-me a uma conclusão cristalina – em 40 anos a mentalidade dos responsáveis camarários relativamente à arquitetura e ao património em Faro não se moveu um milímetro! 

Aliás, a situação hoje em dia ainda é mais grave, pois nestas últimas décadas foram demolidas mais de 3000 casas de traça algarvia para darem lugar a inconcebíveis mamarrachos, monos e caixotes. 

Ora, em face deste cenário demolidor o valor patrimonial e simbólico daqueles edifícios que sobraram aumentou exponencialmente. Assim, um edifício como a Casa Neves Pires, em função da sua presente raridade, deveria ser considerada como se de um autêntico monumento se tratasse, passível de classificação e de obrigatória reabilitação primorosa.

Contudo, o que se assiste é ao total desprezo por aquilo que resta de genuíno e representativo da nossa identidade farense, com a continuação da demolição de edifícios antigos uns atrás dos outros como, aliás, aconteceu há pouco mais de dois anos com as quatro casas que se situam na mesma rua junto ao Tribunal e que gerou um movimento de cidadãos indignados que se mobilizou em torno de uma petição, distribuição de comunicados à população e conferências. O edifício entretanto construído, tipo aquário, é uma violenta afronta à essência e ao espírito da cidade de Faro.

A nossa cidade, aprisionada que está à batuta da ignorância, da especulação imobiliária e do desprezo pelas mais elementares regras de um urbanismo saudável, continua apostada em se transformar a todo o custo numa nova Portimão, o paradigma regional do apocalipse arquitetónico!





Enquanto se mobilizam esforços entusiastas para uma nova maré de construção desenfreada na Avenida da República, na Avenida 5 de Outubro, no Largo do Mercado, na Rua de Circunvalação e em todos os recantos onde ainda subsista um resquício da nossa identidade, a Casa Neves Pires, o Celeiro de São Francisco, o edifício da Moagem de Faro, a antiga sede da RTP e todos os últimos sobreviventes de uma cidade que já auferiu de uma riqueza patrimonial assinalável, jazem ao abandono, à incúria e ao ostracismo, como coisas sem valor, nem préstimo.

O atual executivo da Câmara Municipal de Faro tem revelado, sou obrigado a dizer e a sublinhar, uma total inépcia em defender o que resta da integridade e da harmonia da cidade, ao permitir, por um lado, o recrudescimento da construção em altura em zonas urbanas consolidadas, subtraindo mais espaço, mais sol, mais vistas, mais ar e mais qualidade de vida a áreas já no limite da saturação e, por outro, optando por uma posição de laxismo e permissividade total nas zonas históricas onde os processos de reabilitação em curso estão a ser feitos à revelia das mais elementares regras construtivas. 

A reação maciça de indignação e de consternação da população farense relativamente a este incêndio, veiculada pelas novas vias de expressão digital (vulgo redes sociais) e não só, deve ser tida em conta pelas autoridades municipais. 
A Casa Neves Pires, felizmente, foi somente destruída em parte tendo resistido o essencial da sua estrutura. Esta casa também congrega um jardim romântico com numerosas árvores exóticas constituindo um verdadeiro oásis no meio de uma cidade cada vez mais betonizada, impermeabilizada e sufocante. 

Um projeto que colocasse esta casa de excecional valor patrimonial e o seu jardim ao serviço da população farense seria a melhor forma da presente Câmara, que gasta demasiado em fogos-fátuos, redimir-se do facto de nada ter feito para proteger tal preciosidade arquitetónica.

É que a lei faculta várias hipóteses de intervenção quando há abandono. A transferência da Junta de Freguesia, que está mesmo ali ao lado, para dentro deste edifício histórico (e jardim) seria uma das muitas possibilidades para colocá-lo ao serviço e usufruto dos cidadãos de Faro.

Uma coisa é certa. Destruir o edifício (ou manutenção só da fachada) e construir mais um mastodonte com ocupação do jardim, seria um erro imperdoável.



https://www.barlavento.pt