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terça-feira, 30 de outubro de 2018

E se o Estado português for melhor do que julgamos?






http://www.dn.




Todos nós já tivemos más experiências com o Estado português. Não faltam histórias sobre o funcionamento deficiente dos tribunais, dos serviços de finanças ou da segurança social, dos hospitais ou dos centros de saúde, dos serviços de registo e notariado, dos departamentos de licenciamento das câmaras, e tantos outros. São conhecidos casos de corrupção e de má utilização de dinheiros públicos aos vários níveis da hierarquia do Estado. Consideremos, porém, uma possibilidade: e se o Estado português for melhor do que julgamos?

Todos sabemos que as percepções que construímos com base em experiências pessoais podem ser enganadoras. Por exemplo, se formos assaltados numa dada zona da cidade, passaremos a considerar essa zona mais perigosa, mesmo que nada aí se tenha alterado de facto. Ou, se tivermos o azar de apanhar um taxista menos civilizado num dia que nos correu particularmente mal, vamos reforçar o preconceito sobre a má-formação dos taxistas, mesmo que essa avaliação seja injusta para a maioria dos profissionais de táxi. Generalizar a partir de experiências pontuais é sempre arriscado.

Parte das nossas percepções sobre o funcionamento do Estado decorre também do que é difundido pelos meios de comunicação social e nas redes sociais. Se alguma coisa correr muito mal, isso é mais facilmente motivo de notícia ou de conversa do que tudo o que corre bem no dia-a-dia. Por cada pessoa que morre num hospital por negligência, há centenas de milhares de pacientes que receberam o tratamento adequado e milhares de vidas que foram salvas – mas só a primeira será notícia.

A nossa percepção sobre o funcionamento do Estado português é seguramente influenciada por algumas más experiências pessoais e pelas notícias que circulam sobre o que corre menos bem. Por isso ficamos surpreendidos com o retrato que resulta de alguns estudos sobre o tema.

Generalizar a partir de experiências pontuais é sempre arriscado.

Por exemplo, todos os anos o Fórum Económico Mundial publica um relatório sobre várias dimensões relevantes para a competitividade dos países. O relatório cruza informação de várias fontes, tentando reduzir a subjectividade resultante de impressões casuísticas. Há vários anos que esta publicação diz o mesmo sobre Portugal: o nosso país tem um desempenho sistematicamente superior a todos os outros países comparáveis no que respeita ao funcionamento das instituições públicas.

Comparado com os restantes países do sul da UE (Espanha, Itália, Grécia) ou dos países da Europa de Leste, o retrato que emerge de Portugal é muito mais benigno em indicadores relacionados com ética, corrupção, subornos e desvio de fundos, confiança nos políticos, independência do sistema de justiça, favorecimento de interesses particulares pelos decisores políticos, eficiência da despesa pública, entre outros. Nestes indicadores o desempenho português está mais próximo de França, Alemanha ou EUA – nações com economias muito mais avançadas – do que de países com níveis de desenvolvimento comparáveis ao nosso.

O mesmo se passa quanto à qualidade das políticas públicas. Num estudo recentemente apresentado, que coordenei, conclui-se que os apoios às empresas financiados pelos fundos europeus em Portugal têm cumprido todos os principais objectivos a que se propõem – aumentar o investimento, a competitividade, a inovação, a internacionalização e a qualificação dos trabalhadores. Estas conclusões, apesar de robustas, contrastam com a percepção generalizada sobre a má utilização dos fundos europeus em Portugal.

Um terceiro exemplo é-nos dado pelo recente relatório da OIT sobre Portugal. Aí se apontam os enormes progressos que têm sido obtidos em vários domínios (em particular na educação) e o contributo que várias medidas políticas de combate aos grandes défices estruturais do país, tomadas ao longo das últimas décadas, têm dado para o actual bom desempenho da economia portuguesa.

Os três exemplos acima sugerem o mesmo: a intervenção do Estado português é mais eficiente, mais eficaz e menos desvirtuada por lógicas condenáveis do que a maioria dos portugueses parece acreditar.

O Estado português não é perfeito, obviamente. Em muitos dos domínios referidos, Portugal encontra-se ainda distante do que se passa, por exemplo, nos países nórdicos. Apesar da evolução positiva registada ao longo dos anos, há domínios em que o desempenho português está comprovadamente abaixo de outros países comparáveis – como é o caso da eficiência do sistema de justiça.

Não é por estarmos melhor do que pensamos que devemos exigir menos dos serviços do Estado

As percepções que todos temos sobre o funcionamento do Estado e da democracia portuguesa não são erradas – os problemas existem mesmo. Mas tudo indica que têm sido injustificadamente empolados, seja por ignorância ou por interesse de quem o faz.

Nada disto é motivo para complacência. Não é por estarmos melhor do que pensamos que devemos exigir menos dos serviços do Estado ou do funcionamento da democracia portuguesa. Porém, se queremos encontrar uma explicação razoável para as crises que temos vivido temos de parar de apontar o dedo ao suspeito do costume. Há argumentos muito mais convincentes.

Economista e professor do ISCTE-IUL

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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