24.sapo.pt
1. O futuro vai perguntar. Como podemos perguntar agora onde estava a gente na eleição de Hitler.
E Hitler, tão fã de propaganda, nem tinha whatsapp.
Nem anunciou na campanha as câmaras de gás. Nesse quesito, Bolsonaro está de facto décadas à frente.
Ele diz logo ao que vem, ao que vai: vai torturar, matar uns 30 mil para começar, extinguir todos os activistas, prender, expulsar todos os opositores. Ele vai eliminar esse negócio de mulher, lgbt, quilombola, ambientalista, índio se queixar. Vai tratar os gays com porrada.
Não vai tratar o hiv. Vai armar crianças.
Vai fechar a cultura, a educação pública. Vai vender a Amazônia. Tudo declarado, para ninguém poder dizer que não sabia, quando o futuro perguntar: mas onde você estava hoje, agora, nesse momento em que a besta se prepara para tomar o Brasil?
2. Não vai acontecer, acreditamos. Somos tantos a acreditar que o Brasil é tão maior do que isso. Acreditamos porque o Brasil falou, o Brasil cantou, o Brasil mudou a nossa vida desde que entrou nela.
O Brasil muda o mundo desde que a gente se lembra de existir. O mundo é tão melhor por existir o Brasil. Acredito nisso desde que me lembro e depois vi a que ponto morando lá. Porque o Brasil é triste, o Brasil é violento, o Brasil é um caveirão, um porão de navio, cada instante um milagre, bossa nova nascendo da latrina, o violão de João em Diamantina. Não tem alegria mais sem fundo que a do Brasil. E onde você está agora que o Brasil precisa de você?
3. Onde está Ciro Gomes? A voltar enfim das férias na Europa, teremos-sempre-a-Europa, onde se disse cansado, e disse que o Brasil estava doente? Se o Brasil está doente, como é que alguém que pediu, e recebeu, a confiança de tanta gente no Brasil passou estas semanas cruciais descansando na Europa? Vai aparecer para a virada, agora que Haddad, e tanta gente, trabalhou tanto para ela?
A concretizar-se, a vitória de Haddad será de Haddad e de quem esteve com ele nas semanas mais duras da vida dele, e desta geração de brasileiros. E, caso Haddad perca, talvez não haja 2022 para Ciro. Porque talvez não haja 2022. E porque nestas semanas deixou de haver Ciro.
4. Mais vale tardíssimo do que nunca é o melhor que se pode dizer de Marina Silva. Imagino que quem lhe quer bem a tenha convencido, enfim, a declarar voto em Haddad. Estas semanas podiam ter sido a virada da própria Marina, ela que passou de 20 milhões de votos em 2010 para um milhão de votos em 2018.
Podiam ter sido o momento em que Marina, evangélica, falasse ao povo evangélico, que hoje é uma parte tão grande dos pobres, dos favelados no Brasil, tantos capturados, manipulados por igrejas-projectos-de-poder como a Igreja Universal do Reino de Deus. Mas não. Marina não falou, não virou, não fez a diferença.
Quem fez a diferença, quem veio desse povo falar as palavras essenciais para esta hora, foi o pastor Henrique Vieira, comprovando-se como a mais impressionante, importante voz do campo evangélico aparecida nos últimos tempos. Onde está ele nesta véspera de 28 de Outubro de 2018? Ao lado da democracia, no comício do Rio de Janeiro em que Caetano, Chico, Criolo ou Mano Brown se juntaram a Haddad.
De pé no palco, aos pés dos Arcos da Lapa, Henrique Vieira apresentou-se como “discípulo do negro de Nazaré”, esse Jesus que “não autorizou a violência”, que “foi preso, torturado e assassinado por um estado violento, e ainda assim não usou o ódio”. Henrique Vieira disse àquele mar de gente que o Brasil estava em risco de eleger um homem inimigo de Jesus. “As práticas de Bolsonaro matariam Jesus hoje.” E em seguida disse o que significa, de facto, defender a família em 2018: é ajudá-la com auxílio-moradia, com política de mobilidade, com educação pública, com saúde, combatendo a violência contra mulheres e lgbt. Porque “não se defende a família ensinando crianças a atirar e desprezando as mulheres”.
Um quarto do Brasil hoje é evangélico.
A Igreja Católica perdeu esta gente. A esquerda perdeu esta gente, que está entre a mais pobre. Não haverá futuro do Brasil, e futuro da esquerda no Brasil, se não for possível chegar a estas pessoas, isso é claro para quem conhece as favelas e periferias do Brasil. Henrique Vieira combina ser de esquerda com ser evangélico, mostra como ser evangélico não significa estar refém de igrejas repressivas e exploradoras, como ser evangélico não é, não tem de ser o obscurantismo que parece dominar o campo evangélico.
Não está sozinho nisso, há muitas outras vozes evangélicas a afirmarem uma diferença, homens e mulheres, mas é a mais expressiva que ouvi nesta campanha: “A igreja não pode ser neutra diante da opressão e da violência. Cristo foi vítima de tortura, então não podemos apoiar torturadores.”
Claro como água. Evidente. E, no entanto, são as palavras que Marina hesitou em dizer. E as palavras contrárias às da IURD.
Sim, uma igreja com gente eleita nos municípios, nos estados, no Congresso; uma igreja com uma televisão, com muitos media; uma igreja com poder para influenciar; uma igreja que se diz cristã, e diz falar em nome de Cristo, fez campanha por um defensor da tortura, um defensor da execução, da ditadura.
Sim, uma igreja com gente eleita nos municípios, nos estados, no Congresso; uma igreja com uma televisão, com muitos media; uma igreja com poder para influenciar; uma igreja que se diz cristã, e diz falar em nome de Cristo, fez campanha por um defensor da tortura, um defensor da execução, da ditadura.
Esse é o lugar em que a IURD escolheu estar, é aí que a IURD claramente está na véspera de 28 de Outubro de 2018: com a tortura, a morte, a violência. E é bom que quem a apoia, julgando combater o mal, saiba disso. Que estar com ela é estar com o mal.
5. Democrata-cristã se diz Assunção Cristas, nome que aos leitores brasileiros nada dirá, felizmente, mas que infelizmente para os portugueses é a líder do CDS, partido democrata-cristão. Desde que está na liderança, a senhora Cristas tem dado bastas provas desta infelicidade. Mas agora pisou mais uma linha.
Disse que se fosse brasileira se abstinha, porque Haddad e Bolsonaro são dois extremos. Portanto ficámos a saber que na democracia portuguesa, conquistada a duras penas, depois de tantos mortos, de décadas de ditadura colonial, opressora de opositores portugueses e de várias partes de África, nesta democracia existe uma líder política que se abstém perante a tortura, a ditadura, o extermínio, perante um homem capaz de dizer a uma mulher que não a estupra porque ela não merece, perante o que aconteceu já nas ruas do Brasil, com as brigadas pró-Bolsonaro a espalharem violência. E ao abster-se, como ela sabe muito bem, está a endossar tudo isso. A pôr Bolsonaro no poder.
O descaramento, a mentira, a obscenidade que isto representa dá-nos toda uma outra dimensão sobre esta mulher. Ela não está a falar em 1938, nem em 1968.
O descaramento, a mentira, a obscenidade que isto representa dá-nos toda uma outra dimensão sobre esta mulher. Ela não está a falar em 1938, nem em 1968.
Dizer o que disse agora, sabendo tudo o que sabemos sobre o passado, sobre o século XX, em Portugal e no mundo, é pôr-se também ela fora do campo democrático. E fora da mais elementar decência, da coerência de quem se diz cristã.
Assunção Cristas não pode ser cristã e dizer o que disse. Não pode ser mulher, não pode ser mãe e dizer o que disse. Não pode ser democrata. O que está ela a fazer na democracia portuguesa defendendo a abstenção no Brasil nesta hora? Quem vai acreditar nela? Para o quê? Em nome do quê?
Espantoso que ainda esteja de pé. Onde está o resto do CDS nesta hora? Não tem importância o que a senhora Assunção disse? Tudo vale contra o PT, dizer que Haddad é tão mau quanto Bolsonaro? Dorme-se à noite depois disto? Um torturadorzinho ao pequeno-almoço, vai? E um estupro, quem merece? Que os eleitores dela saibam onde estão.
6. Este tempo precário, ameaçador, mantém baixa a cotação da coragem. A coragem separa, rompe, é demasiado cara, muita gente tem demasiado a perder. Mas se há uma hora para a coragem será esta.
Se é para um dia falar, um dia escolher, um dia não ficar em cima do muro, que seja agora. Hora de separação de águas, sim, de tomar partido, de dizer onde se está. Hora para o futuro perguntar por nós. E hora de ver quem são aqueles que merecem a nossa confiança, o nosso empenho, o nosso tempo.
A grande imprensa brasileira, mais uma vez, disse onde está: na neutralidade dos “frouxos” (para usar a expressão de um grande texto de Nuno Ramos, publicado numa das caras dessa imprensa, a “Folha de S. Paulo”). E, portanto, a grande imprensa brasileira, ao contrário de muita grande imprensa internacional, escolheu não identificar Bolsonaro como extrema-direita, como fascista, como a besta que é.
Ela, que tem poder, que não é o eleitor vulnerável, com medo de perder o emprego, ou manipulado pelas fake news, não foi capaz do mais básico nessa hora. Ela, que podia, escolheu não querer. Não foi a hora da coragem para ela, nem sequer da decência.
E quantos bons jornalistas, ainda assim, resistindo, dentro dela e fora dela. Quanto talento e quanta força. Cada excepção, cada feito, cada reportagem, cada pesquisa séria tornando mais chocante o conjunto.
E quantos bons jornalistas, ainda assim, resistindo, dentro dela e fora dela. Quanto talento e quanta força. Cada excepção, cada feito, cada reportagem, cada pesquisa séria tornando mais chocante o conjunto.
7. Mas se a coragem separa também une. Estas semanas revelaram isso. Gente tão diferente junta. Gente unida pelo que se sobrepõe a tudo. Gente que chorou por irmãos, pais, mães, tios, amigos, amores, chorou a dor de não os ter do lado, de não os ver escolher, de os ver ajudar a eleger o inimigo, o carrasco, aquele que jurou persegui-los, matá-los. Ao longo destes dias trágicos, épicos, eu vi, li, ouvi amigos, conhecidos, desconhecidos no Brasil unidos por esse desespero. Aquilo que parece uma solidão súbita, porque nos separa do que amparava, do nosso chão.
Mas dentro disso há uma outra união, uma união para o futuro.
E, para quem está fora do Brasil, de coração partido nestes dias, a revelação de como o nosso amor pelo Brasil é tão forte e plural, tão acima das diferenças, políticas, ou outras. Somos mesmo muitos dentro do amor incondicional pelo Brasil, e se não sabíamos antes ficámos a saber: estaremos juntos por ele e com ele, seja o que for que aconteça. Porque é muito, e é único, o que o Brasil nos deu, nos dá.
E, para quem está fora do Brasil, de coração partido nestes dias, a revelação de como o nosso amor pelo Brasil é tão forte e plural, tão acima das diferenças, políticas, ou outras. Somos mesmo muitos dentro do amor incondicional pelo Brasil, e se não sabíamos antes ficámos a saber: estaremos juntos por ele e com ele, seja o que for que aconteça. Porque é muito, e é único, o que o Brasil nos deu, nos dá.
8. Eu votaria Haddad sem hesitar, desde o começo, quando Lula ainda era candidato. Acho Haddad muito melhor candidato em 2018 do que Lula seria. Acho Haddad o melhor do melhor do PT, já escrevi e repito.
O PT errou muito, também já escrevi e repeti. E é bom ouvir como Haddad reconhece isso, como Haddad reagiu à crítica de Mano Brown no palco do próprio comício da virada. Mais do que bom: foi incrível ver a força tranquila de Haddad nas semanas mais difíceis da sua vida.
Escrevi aqui que ele me pareceu exausto na noite do primeiro turno. Que seria preciso ele querer tanto, e acreditar tanto, como tanta gente que o apoia. Foi o que ele fez estas semanas. E com uma elegância espantosa.
A solidez, a força que é preciso para atravessar estas semanas como ele atravessou. A política brasileira precisa de alguém como Haddad. Haddad é alguém à altura do Brasil. Forte e belo: virá, que nós vimos.
9. E eu vi as mulheres nessa campanha. Vi o povo negro, pobre, lgbt, nessa campanha. Vi mulheres negras, pobres, lgbt serem eleitas nessa campanha.
Vi a qualidade delas, como vão fazer a diferença em assembleias. Elas chegaram para mudar o sistema, e se chegaram ao sistema foi porque os governos do PT permitiram isso, e isso é parte do ódio que uma certa elite brasileira tem do PT. Há muitas razões, repito, para criticar o PT, mas há muito por reconhecer nos governos Lula. Que uma faixa da população pela primeira vez tenha tido acesso a educação superior, ao centro dos acontecimentos, a disputar um sistema feito para perpetuar elites, esse é um acontecimento histórico.
Um Brasil que passou a ter voz e agora começa a ter poder político.
Esse povo, sobretudo essas mulheres, sabem o que é lutar, resistir desde sempre. Não as vi deprimidas nestas semanas. Vi muita classe média deprimida, mas não elas, não esse povo. E acredito que deles, delas virá muita da resistência, e da inspiração para lutar nos próximos anos: a classe média tem muita luta a aprender com eles e elas. Seja o que for que aconteça. Porque seja o que for que aconteça, quer Haddad ganhe, quer não, o que veio ao de cima nas ruas existe.
Não há 49 milhões de fascistas no Brasil, com certeza que não. Mas há fascistas no Brasil, há nostálgicos da ditadura, há uma elite cega, além de frouxa, há muita violência já em acção. Vidas já foram perdidas.
Vidas estão literalmente em risco, muitas.
A luta será longa, seja o que for que aconteça.
E, portanto, é bom aprender com quem luta desde sempre. Preparar-se para a luta.
Este é o país onde indígenas lutam desde 1500 contra o extermínio, e onde negros arrancados de África lutaram nos quilombos.
Este é o país onde indígenas lutam desde 1500 contra o extermínio, e onde negros arrancados de África lutaram nos quilombos.
A luta será longa, mas é para isso que aqui estamos.
Aí estaremos.
________________________________________________________
A pedido da autora, o espaço de comentários destes artigos de opinião está fechado a partir de 26 de outubro de 2018.
Se tiver sugestões ou comentários sobre este artigo, envie, por favor, um email para 24@sapo.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário