Nas águas do Sado, as mulheres vão à pesca com os homens. É uma vida dura que Ermelinda Carvalho, uma das mais antigas pescadoras da Carrasqueira, encara com uma boa disposição de fazer inveja.
Sentada sobre um balde de plástico virado ao contrário, Ermelinda Carvalho vai lentamente libertando os chocos do emaranhado das redes. “Este trabalho que eu estou a fazer agora sentada, antes fazia-se em pé”, atira a rir-se a pescadora, mãos calejadas pelos anos que já leva nesta arte. Ainda é cedo. Muito cedo. O sol só agora começou a aparecer timidamente sobre as gruas da Setenave, mas a família Carvalho já tem as mãos sujas há mais de uma hora.
Às primeiras horas do dia recolhem-se as redes atiradas ao rio no dia anterior e enche-se o convés da Nau do Sado de chocos e da tinta que eles libertam. Nada disto é estranho para Ermelinda Carvalho. Nas águas sadinas, a mulher não fica em casa a suspirar pelo homem que se faz à faina logo às primeiras horas do dia. Elas vão com eles, elas trabalham como eles. “Não me deem outra vida. Eu gosto é disto”, diz Ermelinda, 60 anos, avental de oleado no corpo, chapéu de ceifeira na cabeça, boa disposição a horas em que a maioria das pessoas estaria rabugenta.
Rabugice não faz parte da rotina de Ermelinda e do marido Joaquim. Há décadas que se levantam muito antes de qualquer galo pensar sequer em cantar, pelo que as más disposições matinais há muito que ficaram ultrapassadas. “É só o despertador tocar e pés ao chão”, atira a pescadora pouco depois de fazer a visita guiada à Nau do Sado, a pequena traineira que dá o sustento à família. Não é um passeio muito grande. Ermelinda levanta uma tampa do convés, aponta lá para dentro e diz: “Aqui é o quarto.” Vê-se uma manta entesada pelo sal, amarrotada sobre umas tábuas de madeira. Logo ao lado, nova tampa: “Aqui é a cozinha.” Também não é divisão que impressione. Ninguém disse que esta vida era fácil.
As cabanas da Carrasqueira
Ermelinda fala o suficiente por ela, pelo marido e pelo filho, que também vai a bordo e praticamente nasceu na água. “Sabe com quantos dias este começou a vir ao mar? Dezanove dias!” Rodrigo, agora com 31 anos, pelos vistos não enjoou de ter vindo tão cedo. Mal se despachou da escolaridade obrigatória, veio para aqui. Um pouco à semelhança da mãe, que, mesmo quando viveu longe do Sado, nunca deixou de o ter em pensamento.
Joaquim, Ermelinda e Rodrigo nasceram na Carrasqueira, uma vila da península de Tróia virada ao estuário do rio que banha Setúbal. A terra pouco tem de pitoresco, pelo menos nos dias que correm. O porto palafítico, todo em madeira, é a principal atração desta localidade que sempre se dividiu entre o trabalho no campo e a pesca. Ermelinda lembra-se de, ainda menina, ir com o pai apanhar amêijoas e canivetes à outra margem do Sado. A Carrasqueira, onde hoje os designers da moda vão fotografar coleções e os recém-casados vão eternizar a felicidade de um dia, era então muito diferente. “Era mais cabanas, mais à base de palhotas” e o porto não tinha nem metade do tamanho atual, “era umas estacazinhas, umas tábuas”.
Já depois da faina, enquanto os chocos aguardam nos baldes pela compradora que os há de levar aos restaurantes das redondezas, Ermelinda senta-se à mesa de um café para falar um pouco mais dessa Carrasqueira de outros tempos. “Antigamente, uma cabana era para os pobres. Hoje é para os ricos.” Na vila já são raras as palhotas. À medida que os pescadores foram amealhando, as casas passaram a ser de tijolo e cal. “Vendi a minha cabana por um conto e quinhentos”, ri-se Ermelinda. Quando ela de lá saiu, acabada de casar, a cabana só tinha duas divisões — cozinha e quarto –, o chão era de areia e a iluminação ainda era garantida por candeeiros de petróleo. “Hoje vive lá uma médica.”
Pescadores de histórias
A Nau do Sado não é um barco particularmente grande, mas mesmo assim é maior do que os que ocupam habitualmente os cais do porto palafítico da Carrasqueira. Só muito raramente, quando a maré está suficientemente alta, é que a Nau do Sado lá pode estar. Por isso, antes de se lançar ao rio, a família Carvalho tem de ir da Carrasqueira até a um aldeamento turístico próximo de Tróia, onde a traineira dorme nas águas calmas e profundas do enorme estuário.
Para chegar à Nau, Rodrigo enfia-se no bote Pateta e rema até a uma barcaça maior, Carvalhinho. Vem à costa, apanha os pais e faz-se ao largo, onde está a Nau. Mal a embarcação começa a roncar e a dirigir-se para o meio do rio, Ermelinda veste o avental de oleado e, entre o balanço das ondas, desbobina historietas da faina. Como a que envolve uma turista alemã que, certo dia, quis ir ver como se pescavam chocos. Lá foi, mas deu-lhe a vontade de ir à casa de banho a meio da viagem. Ermelinda arranjou-lhe um balde e a alemã lá se desenrascou. “Jogou a urina à água. Conforme joga o balde, o vento estava de norte, o chichi vai parar todo à cara do meu marido.” Ermelinda dá grandes gargalhadas, Joaquim só encolhe os ombros.
Outros momentos foram mais duros. Quando Rodrigo e o irmão eram bebés, os pais não tinham outro remédio se não levá-los no barco com eles. Nessa altura, Ermelinda ainda fazia pesca no mar (hoje não, só se dedica ao rio), onde a jornada de trabalho durava a noite toda. Enquanto Joaquim e Ermelinda trabalhavam, as crianças deitavam-se naquele quarto do porão, cuja tampa ficava frequentemente bloqueada, pois não havia mais espaço para pôr as redes. “Aí é que doía, aí é que custava muito. Eles lá todos mijados e cagados a chorarem e a gente sem poder lá ir.”
E, claro, há as partidas que o mar prega. “No mar, não se vê uma mulher”, explica Ermelinda, que durante muitos anos foi a única da Carrasqueira a arriscar sair para o Atlântico. As outras só vão ao Sado. “Os homens chegavam a dizer ao meu marido ‘eh! Você quer matar a sua mulher!'” E várias vezes julgou Ermelinda que se ficava lá no mar. “Isto agora é uma brincadeira, mas quando há chuva e vendavais…”
Uma nau para toda a obra
Não é que precisássemos que ela o dissesse para percebermos, mas Ermelinda — Minda para as amigas — é daquelas mulheres que faz a festa sozinha. É ela que, com a cunhada, organiza anualmente a procissão em honra de Nossa Senhora dos Navegantes; é ela que tem lugar cativo em todas as excursões da freguesia e da paróquia para animar as hostes; foi ela que juntou um grupo de gente para ir ao “Preço Certo” há uns anos. Conhecer o apresentador Fernando Mendes era um sonho, mas a experiência ainda foi melhor, porque Minda arrebanhou a montra final. “Levei-lhe uma santola. O homem nunca tinha visto um trabalho daqueles. Aquilo foi uma festa! Mas depois foi uma guerra viva, toda a gente queria coisas.”
Junho já não é grande altura para a pesca do choco. Os meses de abril e maio são os que mais fartura dão: uma ida ao Sado pode render uns 70 ou 80 quilos do bicho, apreciado por estas bandas frito, grelhado, em caldeirada, como calhar. Agora, um dia em que se consiga vinte quilos já é bom. “Pelo São João é altura em que há pouco peixe, mas é quando ele está mais caro”, diz Joaquim. De pé dentro da cabine, este homem de poucas falas mas sorriso franco vai controlando o destino da Nau enquanto Rodrigo, lá atrás, volta a atirar as redes à água. Ermelinda, entretanto, lava o convés do excesso de tinta e esmaga com uma marreta os últimos caranguejos não comestíveis que por ali ficaram. “Não há sábados, não há domingos, não há feriados. A gente se não vem, não ganha.”
Em agosto, a Nau do Sado vai para o estaleiro. “Este barco já teve as cores do Vitória”, diz Joaquim. Do Vitória de Setúbal, pois claro. Agora já não. O verde e o branco ainda dão cor ao casco, mas também há uns apontamentos vermelhos aqui e ali. A Nau é testemunha dos milhares de horas que os Carvalhos já passaram lá dentro. Vê-se um braseiro, baldes de praia, maços de tabaco vazios e, no topo da cabine, uma bandeira portuguesa toda esfarripada.
Filha de peixe sabe nadar
Apesar da boa disposição, Ermelinda Carvalho faz questão de dizer a cada passo que esta vida não é pera doce e que, para as mulheres, pode ser ainda mais cansativa do que para os homens. Até Rodrigo o admite. Consertar redes? “É o inverno da minha mãe”, diz, entre um sorriso amarelo e um encolher de ombros. Minda explica a rotina dos dias de inverno. “É ir ao mar, apanhar umas amêijoas, fazer a lidazinha da casa a fugir e ir logo remendar as redes.” É um trabalho de paciência, que ocupa todas as tardes dos meses frios e chuvosos em que o peixe se apanha no mar, não no rio.
Quando era mais nova, Ermelinda ia ao mar com o marido. “A nossa vida era dormir no barco. Abalava aí pelas oito da noite e só voltava a casa ao meio-dia.” Depois ainda fazia o almoço, saía para apanhar umas amêijoas no rio e ia vender. E recomeçava tudo outra vez. “Foi aí que eu dei cabo da coluna, dos rins…”
Os queixumes são legítimos, mas filha de peixe sabe nadar. Ermelinda começou a ir com o pai para a faina em criança e, mal se despachou da quarta classe, quis fazer disto vida — mas não conseguiu logo. “Fui gaiata para Lisboa tomar conta de três crianças e limpar uma casa. Só voltei para casar.” E não mais abalou, porque isto era destino. E Lisboa não a atrai. “Só aquilo cansa. O trânsito. Não era capaz de viver assim. Quando lá vou até fico a pensar ‘como é que as pessoas conseguem?’. Eu gosto mesmo é de água. O marido é Aquário, o filho é Peixes e eu sou Caranguejo!”, ri-se.
observador.pt
2 comentários:
Eu,filho de pobres trabalhadores do campo e um simples operário emigrante na Holanda onde resido desde 1964 e já velhote,92 anos de idade,deixo aqui o meu Muito Obrigado ao meu amigo comprovinciano e camarada António Garrochinho,por êste belo apontamento descritivo da vida desta família de pescadores e que eu gostei imenso de ler.
OBRIGADO EU JOSÉ ! UM FORTE ABRAÇO
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