Assim que o marido morreu, obrigaram-na a cortar o cabelo e a vestir-se de negro. Ao fim de sete meses, Laura fugiu da comunidade e começou uma vida nova: casou e teve gémeos.
Parecia que o mundo tinha acabado para ela. Tinha tido o raro privilégio na comunidade cigana de escolher o marido com quem casou, teve com ele seis filhos e estava agora viúva. A morte era ainda um pesadelo, do qual tentava acordar, quando a sogra lhe trouxe o fato negro que devia vestir durante o primeiro ano de luto. Era de flanela, quente, e segundo a lei cigana não podia ser lavado durante todo esse tempo. Só ao fim de um ano seria queimado para dar lugar a roupas mais leves. Mas negras. Uma viúva na comunidade cigana não deve voltar a frequentar festas, não deve voltar a divertir-se. Os sorrisos devem ser discretos.
Laura (nome fictício) tinha na altura 34 anos. A lei cigana impunha, ainda, que cortasse os longos cabelos e que os tapasse com um lenço negro. Nunca mais poderia exibir em público aquele que é considerado um símbolo de vaidade da mulher e de cobiça do homem. Tomada pela dor da perda do marido, quando se olhou ao espelho e se viu toda de negro, percebeu que não iria aguentar. “Tinha que sair dali”, recorda ao Observador três anos depois de ter fugido da família para poder largar o luto. “Fazia-me muita confusão ver-me vestida de negro e não poder lavar o fato. Podia tomar banho, mudar de roupa interior, mas tinha sempre que vestir aquele fato negro de flanela. Tão quente”, recorda sentada no sofá da sua nova casa. Antigamente, e segundo a lei cigana, as mulheres nem banho podiam tomar ao longo desse ano.
"Fazia-me muita confusão ver-me vestida de negro e não poder lavar o fato. Podia tomar banho, mudar de roupa interior, mas tinha sempre que vestir aquele fato negro de flanela. Tão quente."
Mas sair não foi fácil. Laura disse à sogra que ia de férias para casa de uma familiar. Mas nunca mais voltou. A primeira coisa que fez foi livrar-se do fato de flanela. Depois começou a vestir vestidos mais leves, embora negros. Até que abandonou por completo o luto. Como se não bastasse, quando menos esperava, conheceu um homem e apaixonou-se. Apaixonou-se por um homem que não era cigano, violando mais uma vez as leis da comunidade.
Tinham passado apenas sete meses da morte do marido. E o filho mais velho, na altura com 16 anos, não foi brando nas palavras. Nem nos atos. Chegou mesmo a agredir o novo companheiro da mãe — que nada fez. “Ele é um miúdo”, justifica agora ao Observador. Embora não o perdoe. Um miúdo que, aos olhos da comunidade cigana, é já um homem feito. Casado e pai de uma criança. Aliás, como é o filho mais velho, foi a ele que coube ficar com os irmãos na falta dos pais. E foi o que fez, mal soube que a mãe tinha um namorado. Foi ter com ela à cidade onde ela vivia e arrancou-lhe os filhos dos braços (o mais novo com quatro anos) para os levar para o bairro em Lisboa onde antes viviam todos. Estava irado. “Foi muito complicado. Ele segue muito as ideias dos tios. Fiquei sem os meus filhos todos. Ele levou-os para o bairro e eu não podia entrar lá para ir buscá-los. Mas ele é meu filho. E um dia tudo será perdoado”, garante.
O luto
A duração do luto depende da proximidade com o falecido. O luto pelo marido ou pelo filho dura a vida inteira da viúva ou da mãe. Para o pai, os filhos respeitam o luto durante dois a três anos. Os sobrinhos fazem entre três a seis meses de luto pelos tios. A mulher tem que se vestir de negro, usar o cabelo curto e não pode usar joias nem maquilhagem. Não pode representar ou suscitar qualquer forma de desejo. Homens e mulheres não podem frequentar festas nem beber álcool. No início do luto não podem comer carne. O luto é sinónimo de rutura com as “coisas boas da vida”. Por outro lado, estas regras podem ter reflexos nas crianças — que nas famílias mais tradicionais podem ser proibidas de frequentar aulas de música ou de ver filmes. Nalguns casos não mais se pronuncia o nome do morto e as suas fotografias são destruídas.
Associação para o Desenvolvimento do concelho de Moura
Um desses tios, irmão do falecido marido de Laura, entregou-se recentemente à polícia. Foi ele que começou um tiroteio no bairro onde viviam, em Lisboa, que culminou numa megaoperação policial. A troca de tiros entre duas famílias ciganas prendeu-se precisamente com um relacionamento amoroso entre dois jovens de famílias que não se entendiam. Um ato condenável pelos patriarcas da comunidade, que seguem à risca as leis ancestrais.
Laura estava disposta a viver a sua história de amor contra tudo e todos. E eram, de facto, todos que estavam contra aquela relação. Por um lado a comunidade cigana, para quem Laura se tornou uma pessoa não grata. Por outro lado, a família do marido, que não via com bons olhos ele envolver-se com uma mulher de etnia cigana. Laura estava agora dividida e abandonada entre dois mundos: o que deixou, no seio da comunidade cigana, onde ainda estão os filhos que quer recuperar e aquele onde queria entrar, da família do homem não cigano por quem se apaixonou.
Foi no meio desta guerra que Laura descobriu que estava grávida. E a primeira ecografia mostrou-lhe que estava à espera não de um, mas de dois bebés: um menino e uma menina, gémeos. Também Laura tem uma irmã gémea. A notícia da gravidez devia ter sido uma notícia feliz no seio da família do homem por quem se apaixonou. Mas foi mais um motivo de guerra. Assim que as crianças nasceram, a avó paterna tentou obter a guarda parental dos gémeos, alegando que o filho não tinha condições e que a mãe era cigana. Pior. Conseguiu que Laura, que não sabe ler nem escrever, assinasse um papel a consentir essa guarda. Um comportamento que ela diz que jamais vai perdoar.
O caso foi parar à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco do concelho onde Laura reside e as técnicas não perderam tempo: tinham que conhecer este casal. Encontraram uma mulher cigana entre dois mundos e com dificuldades de aceitação entre ambos. Determinada, sempre com uma resposta pronta a dar e de personalidade vincada, Laura deixou claro que queria criar os gémeos, assim como pretendia um dia recuperar os filhos que lhe levaram. Por outro lado, as técnicas encontraram no companheiro de Laura um homem demasiado “manipulável” pela mãe, uma mulher “difícil de lidar”, como partilharam com o Observador. Ainda assim, perceberam que não havia motivos para não dar uma oportunidade a Laura. Não havia motivos para aquelas crianças crescerem longe dos pais. Pelo menos para já.
Foi com a ajuda da Comissão que o casal encontrou uma casa para arrendar. Ele começou a trabalhar e ela a tentar esquecer as leis que a tinham regido durante toda a vida, para se adaptar à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco. Os gémeos, um rapaz e uma rapariga, têm agora um ano. E não tem sido fácil.
Laura está a aprender a ser uma mãe diferente daquela que foi dos seis filhos ciganos. As leis de uma e de outra comunidades assim o ditam. Segundo a lei cigana, as crianças devem derramar o mínimo de lágrimas possível. Os pais devem dar tudo aos filhos nem que “para isso tenham que roubar”. Laura lembra-se de uma vez em que andava nas compras com o falecido marido e os filhos e viu uma criança não cigana a chorar. A criança insistia que queria um gelado e a mãe recusava. Deixava a criança chorar. “O meu marido ficou tão impressionado, como era possível deixar chorar assim uma criança, que lhe foi comprar um gelado e ofereceu-lhe”, recorda Laura a sorrir.
O casamento
A maior parte dos casamentos entre ciganos é uma união de facto e nem sequer há registo sobre o ato. São geralmente uniões precoces (a partir dos 13 anos para as raparigas, 14/15 para os rapazes). Podem ser combinados entre os pais dos noivos durante a infância ou adolescência, a pedido dos próprios. O casamento confere estatuto social à pessoa, sendo a quase única forma de ascensão social na comunidade. Assim, enquanto os não ciganos apostam na educação formal dos filhos para adquirir reconhecimento, dentro da comunidade não cigana, os ciganos preferem dar importância à preparação dos filhos para a sua união matrimonial, o que pode levar a que as crianças se desinteressem pela escola. A cerimónia de casamento é um ato muito importante no seio da comunidade e segue determinados rituais. Normalmente a festa dura 2 ou 3 dias e é feito o teste da virgindade à noiva. Nestas cerimónias a noiva está sempre a mudar de fato. Quantas mais vezes o fizer, mais belo o casamento. A separação ou o divórcio são casos muito raros.
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O marido era um homem “mais aberto que aqueles ciganos todos”, diz, referindo-se à comunidade cigana que vive no bairro para onde se mudou, depois de casar. “Pedimos aquela casa à câmara e não fomos logo para lá. Queríamos por as coisas à nossa maneira. Quando fomos para lá, já havia só ciganos”, conta. Ainda assim, o marido deixava-a andar de braços descobertos e sempre condenou os homens que batiam nas mulheres. “Quando passávamos na rua, diziam que éramos o casal perfeito.”
Laura queria educar os gémeos da mesma forma que educou os outros seis filhos. Total liberdade. Mas sempre que as técnicas que a acompanham chegavam a casa, estava tudo num caos. Laura deixava de fazer tudo para dar atenção aos filhos e acabava por descurar a higiene e as lides domésticas. “Agora estou a melhorar nisso”, reconhece. Quando vivia com o ex-marido, os filhos eram prioridade sobre a casa, mas percebeu que a higiene e a alimentação são tão importantes como a atenção que deve dispensar aos dois filhos. A sogra encontrou uma casa perto do casal para viver. Tem prestado apoio, mas Laura não consegue perdoar-lhe a tentativa de obter a guarda exclusiva dos netos. Todos os dias vive com medo que isso aconteça.
"Nós crescemos e só vamos à escola se os nossos pais quiserem. Os rapazes é que vão normalmente e estudam até quererem. Aos 12/13 anos a rapariga já é uma mulherzinha pronta a casar".
O que ela gostava mesmo era de poder inscrever as crianças na creche e trabalhar. Mas até aí encontra uma barreira. Cresceu sem ir à escola, não sabe escrever nem sequer ler. “Nós crescemos e só vamos à escola se os nossos pais quiserem. Os rapazes é que vão normalmente e estudam até quererem. Aos 12/13 anos a rapariga já é uma mulherzinha pronta a casar”, explica Laura. Ainda assim, Laura tinha 17 anos quando casou. E o pai deixou que escolhesse o marido. “Como ele já tinha irmãos casados com irmãs minhas foi mais fácil”, diz. Só as famílias “contrárias”, ou seja aquelas que já sofreram algum tipo de conflito, é que não podem juntar-se por via do casamento.
Na comunidade cigana as meninas crescem à espera do dia em que vão casar — um acontecimento que dura dois ou três dias e que envolve grande parte da comunidade. Laura lembra-se bem desse dia. Aliás, um ano depois, acabou por vestir novamente o vestido de noiva para uma festa organizada pela autarquia de Lisboa no Terreiro do Paço. A ideia era reproduzir uma festa de casamento cigano. E Laura foi, já grávida do filho que agora não a apoia.
A educação
Desde a infância, a educação das crianças varia conforme o sexo. Eles têm mais liberdade. Elas são mais vigiadas e não podem assistir a determinados programas de televisão, por exemplo. A família alargada, como os avós e os tios, têm forte intervenção no processo educativo. Até os irmãos mais velhos e os primos podem intervir. Durante o crescimento das crianças, é privilegiada a aprendizagem de certos valores, como o respeito pelos mais velhos, a autonomização, a solidariedade dentro do grupo, o sentimento de grupo. As meninas aprendem cedo a tomar conta da casa e dos irmãos mais novos. Os rapazes são incentivados desde muito pequenos a acompanhar o pai de família. Nas comunidades ciganas, a criança cresce em plena liberdade, com regras diferentes dos não ciganos. Escolhem se vão à escola, por exemplo. As crianças são assim consideradas até aos 7/8 anos. Aos 10/11 passam a ter um papel mais ativo na família. Começam a entrar na fase da adulta muito mais cedo que as crianças não ciganas.
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Na comunidade cigana as meninas são educadas até aos 12/13 anos para servir o marido. E por esta altura estão prontas para casar. Muitas estão prometidas a um homem ainda antes de nascerem. Outras podem escolher, mas têm que ter aprovação da família. Laura acabou por só casar aos 17 anos, ainda assim nunca frequentou a escola. “O meu marido era uma pessoa muito diferente na comunidade e chegou a dizer para eu ir estudar. Mas eu tinha que tratar dos filhos e da casa”, recorda. Alguns domingos, conta, saía para trabalhar com ele. “Fazíamos 50 contos num dia”, diz orgulhosa.
O facto de não ter estudado é mais um entrave para conseguir um trabalho. Mas Laura tem demasiada energia dentro dela. “Eu vou conseguir. Vou aprender a ler e a escrever com os gémeos”, diz a rir. Um sorriso nervoso, como quem quer acreditar nisso. As técnicas da Comissão de Proteção de Menores e Jovens em Risco acreditam. E encorajam-na. Ela segue.
Texto de Sónia Simões, fotografia de Patrícia Amaral.
observador.pt
1 comentário:
Gabo a coragem desta mulher. Espero que consiga reaver os filhos porque uma mãe sem os filhos não é nada. Felicidades é o que desejo.
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