A verdade é como o azeite, acaba sempre por vir ao de cima.
Mais uma vez se cumpre o popular adágio.
Marisa Matias, no debate televisivo com Edgar Silva, faltou à verdade sobre o seu voto a favor de uma resolução do Parlamento Europeu que, em 2011, abriu caminho à agressão militar à Líbia e a toda a tragédia que se lhe seguiu e que ainda hoje persiste.
Confrontada por Edgar Silva, repetiu categoricamente quatro vezes que votou contra, por voto nominal, e aconselhou a consulta das respectivas actas.
Confrontada com as actas, que confirmam o seu voto a favor da resolução, eis que a candidata, em vez de admitir o duplo erro (o voto a favor, por um lado, e a falta à verdade, por outro), tenta virar o bico ao prego e vem acusar quem coerentemente votou contra a resolução: o PCP.
E fá-lo disparatando: afirma que o PCP decidiu legitimar o regime de Khadafi. Sucede que a resolução (ver aqui: http://goo.gl/xjzvEj) não tratava de legitimar ou deslegitimar o regime de Khadafi, tratava, ocultando-o demagogicamente, de legitimar a intervenção militar. Depois de aprovada, os acontecimentos seguiram exactamente o guião estabelecido pelos falcões da guerra…
Para os interessados, a história mais completa segue abaixo.
1. Marisa Matias, no debate televisivo com Edgar Silva de 6 de Janeiro, respondendo à crítica de que tinha votado favoravelmente no Parlamento Europeu a intervenção militar externa na Líbia, repetiu categoricamente quatro vezes que votou contra, por voto nominal, e aconselhou a consulta das respectivas actas.
Posteriormente, alguns dos seus apoiantes fizeram circular um comunicado, reproduzido pela própria, que exibia a imagem da pretensa votação e onde constavam os votos contra de Marisa Matias, Ilda Figueiredo e o meu próprio, entre outros.
No entanto, tratava-se apenas de uma votação intermédia para a inclusão ou retirada de um parágrafo (o parágrafo 10) da proposta de resolução a submeter ao Parlamento. A votação contra foi muito minoritária e o parágrafo foi incluído na resolução a ser votada.
Na votação final da resolução, que constituiu a deliberação do Parlamento Europeu (Resolução RC-B7-0169/2011, de 10/03/2011), Marisa Matias votou a favor, como pode ser comprovado na respetiva acta, na p. 6 (http://goo.gl/yCT88o).
É agora transparente, depois da generalizada consulta da acta, que Marisa Matias faltou à verdade quando disse que votou contra. A verdade é que votou a favor. Também não fica bem, a ela e alguns dos seus apoiantes, tentar, com a reprodução da imagem da votação intermédia, passar a ideia de que se tratava da votação final.
2. O funesto parágrafo 10, incluído e aprovado com a resolução, solicitava à Alta Representante da UE e aos Estados-Membros a disponibilidade para uma decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) sobre a imposição de uma zona de exclusão aérea (com a justificação demagógica de impedir o regime de atacar a população civil).
Na verdade, a imposição de uma zona de exclusão aérea era o pretexto para a intervenção militar, pois não é possível impô-la sem o recurso a meios militares. E o parágrafo, na habitual linguagem diplomática, instava na verdade a Alta Representante e os Estados-Membros a cumprir a provável decisão do CSNU de impor essa zona e, mais do que isso, a reclamar e incitar essa decisão, nomeadamente através dos Estados-Membros que aí tinham assento (França e Reino Unido, membros permanentes, Alemanha e Portugal) e das pressões que a UE poderia fazer sobre alguns dos restantes.
Os EUA, a França, o Reino Unido, os falcões da guerra estavam impacientes para lançar a guerra. A resolução aprovada pelo Parlamento Europeu serviu os seus objectivos.
Todos sabíamos disto. Não foi por acaso que este foi o único parágrafo a ser votado previamente se integraria a proposta final. No debate televisivo e faltando à verdade, Marisa Matias afirmou que votara contra a “intervenção militar externa na Líbia” (a crítica que lhe era feita, a que respondeu “votei contra e foi voto nominal”), referindo-se precisamente a este parágrafo, só que na votação intermédia e não na final.
Marisa Matias mudou o sentido do seu voto da votação intermédia, na práctica, preparatória da proposta, para a votação final da resolução, definitiva. Na primeira votou contra, na segunda votou a favor.
Nada a obrigava a ter procedido assim. Os deputados do PCP, coerentemente, votaram contra numa e noutra, como aliás o fez a grande maioria dos camaradas do nosso grupo (GUE/NGL). A incoerência não foi dos deputados do PCP.
3. No jornal Público de ontem, 9/01/2016, interpelada pela jornalista a explicar esta sua incoerência (estando já claro que, ao contrário do que afirmou no debate, votara a favor da resolução, com o funesto parágrafo incluído), Marisa Matias afirma: «o voto final tinha que ver com legitimar ou não o regime de Khadafi, eu não legitimei, o PCP decidiu legitimar».
Esta é uma acusação sem pés nem cabeça. A resolução não tinha nada a ver com legitimar ou deslegitimar o regime de Khadafi. Como facilmente se pode concluir com a sua leitura (aqui: http://goo.gl/xjzvEj). A resolução procurava, isso sim, ocultando-o demagogicamente, legitimar a intervenção militar, submetendo a decisão final do Parlamento o fatídico parágrafo 10 nela integrado.
Marisa Matias contradiz-se novamente. Invocou o facto de ter votado contra esse parágrafo, na votação preparatória da proposta, como exemplo de que votou contra a intervenção militar, reconhecendo assim que o parágrafo desencadearia o processo. Mas quando votou a favor do exacto mesmo parágrafo, agora submetido a votação final integrado na proposta de resolução, a intervenção militar desaparece, como se o parágrafo não constasse. Muito conveniente, mas inconsistente. O parágrafo 10 é o mesmo nas duas votações. Só que a primeira votação era intermédia e preparatória, a segunda era definitiva e constituía a deliberação oficial do Parlamento Europeu.
Na verdade, como evidenciou toda a preparação da resolução e a votação intermédia, esmagadoramente aprovada, o que se pretendia era uma “cobertura”, prolongada depois na do CSNU, para desencadear as operações militares, com o pretexto da zona de exclusão aérea.
Não se tratava de legitimar ou não o regime, tratava-se de legitimar a agressão militar. Foi fundamentalmente por esta razão que os deputados do PCP votaram contra a resolução, tal como já tinham votado contra a inclusão do parágrafo 10 na proposta de resolução.
Depois de aprovada a resolução, com o nosso voto contra e o voto a favor da Marisa Matias (além do BE, também o PS, o PSD e o CDS votaram a favor), os acontecimentos seguiram o guião estabelecido pelos falcões da guerra. Uma semana depois, o CSNU, pressionado pelos EUA e impulsionado pela resolução da UE, decidiu a imposição da “zona de exclusão aérea” e as forças militares, já em estado de prontidão, iniciaram dois dias depois os ataques.
Todos os problemas foram agravados e a Líbia mergulhou no inferno. O curso posterior dos acontecimentos, nomeadamente as vagas de refugiados que procuram atravessar o Mediterrânio daí provenientes, são como pedras lançadas à cara da UE a recordar-lhe as responsabilidades na instabilidade, na guerra, na devastação e no colapso de um Estado agora muito mais falhado do que alguma vez o possa ter sido.
O controlo dos recursos naturais líbios foi o motivo fundamental da intervenção militar, que nunca teve como verdadeira preocupação o povo líbio, tal como a intervenção militar foi o verdadeiro motivo da resolução aprovada pela Marisa Matias, que nunca teve como verdadeira preocupação os direitos humanos.
Foi triste ver Marisa Matias contradizer-se e passar a votar a favor a resolução aguardada pelos falcões da guerra. É triste vê-la negar que tivesse votado favoravelmente e depois apresentar a votação intermédia como a definitiva. E é triste, quando a verdade é reposta, vê-la alijar as responsabilidades no voto e nas inverdades que acerca dele proferiu lançando-se numa disparatada e indigna acusação ao PCP, que foi coerente desde o primeiro ao último instante, pronunciando-se sempre contra uma intervenção militar, que não estava interessada no povo líbio e que resultou na destruição do seu país.
4. A declaração de voto de Ilda Figueiredo então proferida em nome dos deputados do PCP recorda o que estava em causa e desmente cabalmente a descabelada acusação lançada por Marisa Matias:
«Manifestamos a nossa profunda inquietação relativamente aos mais recentes acontecimentos na Líbia, mas defendemos a resolução pacífica e política do conflito, sem ingerências externas. Ora, lamentavelmente, a Resolução do PE defende a intervenção militar, dado que não pode haver zona de exclusão aérea sem intervenção militar.
Por isso, esta resolução, em vez de contribuir para uma solução pacífica, parece visar a preparação de actos de agressão, pelos EUA, a NATO e talvez da União Europeia, contra a Líbia, pelo que expressamos a nossa firme oposição a qualquer intervenção militar externa neste país.
Qualquer agressão contra a Líbia, independentemente dos pretextos e “mandatos”, teria graves consequências para um povo que vive já numa situação de profunda tensão e insegurança; seria profundamente prejudicial para todos aqueles que, na Líbia, prosseguem a luta pelos seus direitos, a democracia, a soberania e a paz e introduziria sérios factores de instabilidade e conflito na região.
Qualquer agressão militar pelos EUA e seus aliados – inseparável dos seus objectivos de controlo dos recursos naturais líbios – seria direccionada não só contra o povo Líbio, mas contra todos os povos da região que se levantaram e prosseguem a luta pelos seus direitos sociais e políticos, pela liberdade, a democracia e a real soberania e independência dos seus países. São lutas que apoiamos.
Por isso, votámos contra a Resolução.»
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