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avião português abatido pelo PAIGC com mísseis Strella
Portugueses cortaram cabeças em Angola
Portugueses cortaram cabeças em Angola
Mutilação, terá sido resultado de mito religioso16.12.2012
O jornal português Publico, noticiou em Lisboa que um relatório militar confirma que soldados portugueses cortaram a cabeça de cadáveres de revoltosos africanos, colocando as cabeças em exposição para aviso.
Segundo referido por aquela publicação, a «degola» de alguns elementos africanos durante o ano de 1961, seria do conhecimento público mas nuca teria sido objeto de um estudo mais detalhado nem resultado de documentos militares que a confirmassem.
O que aconteceu em 1961
No inicio da década de 1960, ativistas norte-americanos pugnavam pela ação violenta para «libertar» os seus irmãos oprimidos em África, da mesma forma que se pugnava pelos seus direitos nos Estados Unidos.
Segundo referido por aquela publicação, a «degola» de alguns elementos africanos durante o ano de 1961, seria do conhecimento público mas nuca teria sido objeto de um estudo mais detalhado nem resultado de documentos militares que a confirmassem.
O que aconteceu em 1961
No inicio da década de 1960, ativistas norte-americanos pugnavam pela ação violenta para «libertar» os seus irmãos oprimidos em África, da mesma forma que se pugnava pelos seus direitos nos Estados Unidos.
O reverendo Baptista Martin Luther King, e o seu movimento de direitos civicos acabou por ser ainda que indiretamente, um dos inspiradores dos massacres de 1961.
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No entanto, as atividades das igrejas baptistas direta e indiretamente ligadas a igrejas e movimentos religiosos norte-americanos, de entre os quais se destaca o movimento do pastor Martin Luther King, foram essencialmente de cariz evangelizador e não militar.
No final da década de 1950 e inicio da de 1960, vários pastores protestantes encontravam-se nas províncias ultramarinas portuguesas e também nos países limítrofes.
Apoiados pelo dinheiro dos Estados Unidos, e pela mal disfarçada hostilidade do governo de Kennedy contra Portugal, que se recusava a abrir os mercados de Angola e Moçambique às empresas norte-americanas, movimentos evangélicos protestantes começaram a «educar» populações do noroeste de Angola.
Vindos diretamente da América, onde lidavam com uma população negra medianamente instruída, os pastores americanos encontraram uma extrema dificuldade de relacionamento com os africanos especialmente da etnia Bakongo mas também da étnia Kimbundu.
Aproveitando o facto de os ritos religiosos animistas destas étnias aceitarem a reincarnação e a vida após a morte, os pastores evangélicos norte-americanos aparentam ter conseguido um casamento entre direitos civis dos negros e religião[1].
O ativista Bakongo, dirigente da UPA Holden Roberto, de religião Baptista Evangélica, foi um dos organizadores dos massacres. Poucos anos antes de morrer, afirmará que a situação lhe saiu do controlo.
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As ações armadas começaram em meados de Março de 1961, aproveitando também da situação de absoluto caos que se vivia no vizinho ex-Congo Belga / Zaire e onde se encontravam as bases do movimento UPA (União dos Povos de Angola).
Nas últimas reuniões de preparação, os ativistas africanos foram industriados para combater, afiaram as catanas e receberam ordens para gritar UPA, UPA, UPA, mata branco, mata branco. Estas últimas ações de preparação decorreram dentro de igrejas protestantes construidas com dinheiro norte-americano [2].
Terrorismo, fanatismo, ataques suicidas
A atividade dos movimentos religiosos norte-americanos, que aparenta ter tido características idênticas às da doutrinação dos terroristas islâmicos da atualidade, levou a que ocorressem inúmeros ataques suicidas, levados a cabo por africanos de etnia Bakongo, que gritavam em altos pulmões «mata que é branco, mata que é branco» quando atacavam os portugueses, avançando sobre as armas dos soldados portugueses, acreditando serem imunes aos projecteis que os soldados disparavam para se protegerem.
A orgia de terror, que pelo menos em parte foi indiretamente patrocinada pelos organismos religiosos norte-americanos, acabou por conduzir a massacres, em que foram assassinados milhares de portugueses brancos, mas principalmente dezenas de milhares de angolanos negros de outras étnias[3].
Grupos de centenas de homens das tribos do norte de Angola, começaram a atacar as propriedades dos colonos brancos, matando indiscriminadamente tanto brancos angolanos como brancos portugueses como negros de etnias mais numerosas do centro e sul de Angola [4].
Perante uma onda incontrolável de ataques suicidas levados a cabo por africanos armados de catanas, e sem meios minimamente adequados para responder à violência, os militares portugueses terão utilizado uma solução de último recurso.
Foi considerado que o principal problema decorrente das vagas de ataques, consistia na violência resultado da crença absoluta na ressurreição, que tinha sido instigada nos grupos de atacantes.
Quando o corpo se separa da cabeça, não há ressurreição !
Tendo em consideração os mitos locais e os ritos religiosos animistas, os portugueses rapidamente compreenderam, que para os africanos daquelas etnias, a separação da cabeça do resto do corpo, tornaria impossível a ressurreição. Isto aplica-se a todos os povos Bantús [5].
Desta forma, ao tomar os cadáveres de alguns terroristas africanos, cortando-lhes a cabeça e expondo-a, os portugueses tentavam demonstrar que não era verdade que ao atacar os portugueses os africanos eram imunes às balas e que mesmo que morressem rapidamente ressuscitavam.
[1] – Para certos ritos religiosos no noroeste de Angola, nomeadamente os das tribos Bakongo a morte e a ressurreição são encarados de formas distintas, mas uma das formas de garantir que o inimigo não volta ao mundo dos vivos, consiste em cortar-lhe pedaços, cozinha-lo e come-lo.
É essa a razão que explica que muitos soldados portugueses tenham sido mortos pelos grupos de terroristas africanos, e cortados aos pedaços. Para as religiões animistas (que variam de tribo para tribo) a separação da cabeça impede a ressurreição, o que também acontece se o corpo for separado dos orgãos genitais.
Isto explica porque muitos soldados portugueses mortos foram castrados e comidos, tendo os seus órgãos genitais sido cortados e deixados a secar ao sol pregados em estacas.
Desta forma garantia-se que não haveria ressurreição.
Este foi o caso do massacre de Colua em 2 de Abril de 1961, em que militares portugueses foram emboscados, mortos, retalhados e comidos pelos africanos.
[2] – Tendo conhecimento do relacionamento de movimentos norte-americanos com os terroristas, o governo dos Estados Unidos informou o governo de Portugal de que deveria esperar movimentações violentas a partir de 15 de Março. No entanto, tais avisos não foram considerados, pelo que a maior parte da população foi apanhada de surpresa.
[3] – Muitos desses eram trabalhadores quase escravos, arregimentados pelos chefes-de-posto portugueses, que negociavam o trabalho de homens e mulheres das tribos diretamente com os «sobas». A exploração dos africanos por parte de alguns colonos portugueses ricos, foi uma das razões que segundo os movimentos africanos, justificou a dimensão dos ataques terroristas da UPA.
[4] – É normalmente dada maior importância à repressão levada a cabo pelos portugueses no norte de Angola, sendo normalmente esquecido que, os grupos de animistas arregimentados principalmente pelos organismos ligados a igrejas protestantes, provocaram mais de 10,000 (dez mil) mortos em apenas algumas semanas, entre os quais 8,000 trabalhadores negros do sul de Angola.
Após as ações terroristas, os portugueses responderam de forma violenta. O número de vitimas entre os africanos é ainda hoje discutido. As estimativas vão de 10,000 a 40,000 vítimas, no entanto não há forma de controlar os números reais, já que a UPA não tinha uma estrutura organizada que permitisse garantir uma contagem minimamente fiável.
[5] – Para os povos Bantú, existe um Deus. Os animais e as plantas não morrem e não existe mito da criação para as plantas e os animais. Já os homens nasceram de uma planta.
É reconhecido o mito do Camaleão, a quem Deus teria dito que o homem era imortal. As igrejas evangelicas anglo-saxonicas aproveitaram o mito do camaleão, comum em todas as culturas Bantú, para introduzir o conceito de vida eterna junto das tradições destas tribos. É este conceito que vai ser utilizado para explicar aos Bakongo que não podem ser mortos pelas balas dos portugueses.
www.areamilitar.net
Sangue do Tempo: Resistência, Nacionalismo e Literatura em Angola
"A gente fizemos a revolução, nossas memórias têm o sangue do tempo" (José Luandino Vieira, O Livro dos Guerrilheiros)
O presente trabalho analisa a formação da resistência anticolonial e do nacionalismo em Angola, focando os anos da guerra pela libertação nacional (1961-1975). Como fonte, privilegiou-se a produção literária deste país, especialmente os romances de Artur Pestana dos Santos (Pepetela). Buscou-se a articulação da literatura com o contexto histórico em que estava inserida. Dessa forma, Pepetela dialoga tanto com os demais escritores angolanos do período como com a esfera ideológica da época. Através da análise dos textos políticos e ficcionais, intenta-se pôr em perspectiva as diversas formas de resistência anticolonial e a formação do nacionalismo angolano.
No ano em que estoura o conflito pela libertação nacional, 1961, Angola era uma das “províncias ultramarinas” portuguesas. Leia-se em “províncias” um eufemismo jurídico para colônias.II O território angolano estava inserido no então chamado Terceiro Império Português, sendo somente no final dos anos de 1920 e início de 1930 com a chegada de Salazar ao poder que este império recebe um corpus ideológico definitivo.III Com a consolidação do salazarismo, ocorre a perseguição em Angola das vozes opositoras ao regime de forma que uma “geração inteira de assimilados moderados foi neutralizada ou purgada no período de 1923-30, e o nacionalismo angolano entrou em fase de silêncio e inactividade”.IV
Essa experiência de oposição ao regime colonial, levada a cabo pelos assimilados, pode ser definida como protonacionalista. Nesse contexto, assimilado correspondia no colonialismo português a um termo jurídico usado para designar o “negro ou mestiço que obteve a cidadania portuguesa. Por extensão: um ‘evoluído’, um ‘não-indígena’”V. Além da oposição destes assimilados, havia um fenômeno o qual denominamos etno-resistência. De maneira bastante simples, pode-se dizer que este tipo de resistência se caracterizava pela defesa do território invadido, na maioria das vezes, por via das armas. Comumente, essa defesa se deu no interior de Angola em zonas rurais. Na prática, tentava-se fazer permanecer as estruturas sociais pré-coloniais. A consciência contestatória era étnica e não nacional. Em 1941 com a revolta dos Cuvales a etno-resistência terá sua última grande expressão.
O que veio depois dessas experiências, o nacionalismo revolucionário angolano, foi na prática e na teoria espécie de síntese acrescida de tons originais dessas duas resistências anticoloniais. Por um lado, seus participantes eram provenientes das áreas urbanas, tal como os protonacionalistas. Ao contrário destes, porém, se traziam a insígnia de assimilado não negavam a herança africana buscando vincular-se às populações rurais integrantes da etno-resistência anterior. Tais características levam alguns autores a adotarem o conceito de crioulos para designar estes novos nacionalistas:
O assimilado corresponde, no colonialismo português, a um estatuto jurídico com pretensões de legislar sobre fenômenos culturais, o crioulo, conforme o encaramos, é um termo que está ligado a uma perspectiva tão somente cultural. (...). A crioulidade implica síntese e a assimilação, da forma como era entendida, opção. Evidentemente, o facto de muitos crioulos terem alcançado tal estatuto – assimilação – não significou a sua submissão à cultura portuguesa em detrimento da vertente africana”.VI
Os crioulos irão se abrigar sob a revista literária Mensagem. Fundada por um grupo de intelectuais angolanos em Luanda em 1948 e tendo na linha de frente Viriato da Cruz. Essa revista é o marco do regresso à resistência por meio da imprensa. Esse momento caracterizou-se pelo interesse, pela história e cultura tradicionais de Angola. Esse movimento de “regresso às fontes” foi sintetizado na palavra de ordem “Vamos descobrir Angola”. Em carta a Mário Pinto de Andrade, Cruz sintetizou da seguinte forma as pretensões e métodos da geração Mensagem:
O movimento (...) deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.VII
Buscava-se atuar de maneira que a forma literária fosse a “expressão dos sentimentos do homem angolano”, não se restringindo a um círculo de assimilados, mas “descendo a rua”, identificando-se com os anseios populares.VIII O substrato cultural africano até então negado era retomado e usado como justificativa para a contestação. Elementos tipicamente angolanos aparecem na literatura não mais em caráter estereotipado e mistificado, mas sim enquanto “elementos de ligação fraternal para com a comunidade dos oprimidos, confrontando as dores e as esperanças, (...)”.XIX Literatura e resistência se consubstanciam de maneira a uma ser medida exata do desenvolvimento da outra. Nasce assim a resistência literária angolana em sua face nacionalista revolucionária. Não mais reformista como os protonacionalistas, mas também não mais focal como a etno-resistência. A partir do empreendimento literário retomado com “outros métodos” e do retorno à tradição tipicamente angolano-africana, estabelecia-se um amplo projeto a nível nacional e revolucionário. Tal projeto desemboca na fundação do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que contaria com ampla participação dos crioulos fundadores de Mensagem.
Os argumentos dos jovens poetas de Mensagem irão ser postos à prova com o início da guerra pela libertação nacional em 1961. E, nesse contexto de guerra, vem à luzAs aventuras de Ngunga (AVN) de Pepetela, romance escrito em 1973 durante a participação do autor – integrante do MPLA - na guerra pela libertação nacional. As dimensões da obra (59 páginas) e sua estrutura muito simples podem ser explicadas pela necessidade pragmática do momento, a mobilização política urgente da massa campesina analfabeta ou com parco domínio da leitura. Nisso este romance não se afasta dos primeiros poemas da geração Mensagem. Tanto AVN como seus predecessores buscavam não só resistir pelas letras, mas especialmente mobilizar através delas.X
Daí também que não se estranha que AVN tenha sido imediatamente policopiada (ver imagem acima) em zonas de guerrilha e distribuída nas frentes de batalha. Enquanto outra narrativa – Mayombe - escrita um ano antes também na guerrilha por este autor, só conheceu publicação nos anos de 1980. Isso não torna esta última menos insurgente, pois como propôs Crummey, a resistência também pode ser silenciosa ao contrário de outras formas de oposição anticolonial como o protesto: “Protest studies, so far as we can distinguish them from resistance studies, imply somewhat different contexts. Protest entails a higher degree of vocalization. By contrast, resistance may appear mute, and stealth may be one of its essential features.”XI Por ser também protesto, apresenta AVN uma linguagem menos hermética do que a do romance anterior.
A linguagem simples e direta era naquele momento a melhor maneira de se fazer compreender pela população rural, que por vezes desconhecia a língua portuguesa. Ngunga é ele próprio um garoto de 14 anos analfabeto não falante do português. Com isso, a libertação é sempre associada com a educação e esta por sua vez com a conscientização política. Veja-se, por exemplo, a passagem da chegada da escola ao povoado de Ngunga. Com ela o povo “começava a ser livre”, pois,
O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com armas. A escola era uma grande vitória sobre o colonialismo. O povo devia ajudar o MPLA e o professor em tudo. Assim, o seu trabalho seria útil. As crianças deveriam aprender a ler e a escrever e, acima de tudo, a defender a Revolução. Para bem defender a Revolução, que era para o bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados. XII
O impacto da identificação libertação-educação-conscientização em Ngunga é perceptível quando de sua prisão pela polícia política salazarista (PIDE/DGS), nesse momento, “Pela primeira vez Ngunga deu razão ao professor, que lhe dizia que um homem só pode ser livre se deixar de ser ignorante.”XIII Deduzimos que esse mesmo impacto experimentado por Ngunga também o foi pela massa campesina com acesso aos escritos mobilizadores da época. A esses escritos pode-se atribuir a mesma argumentação de Christopher Hill para o caráter político da Bíblia nas revoluções inglesas do séc. XVII. Para Hill, o novo testamento, bem como para nossos propósitos, AVN estava “repleto de ideias libertárias que poderiam causar grande impressão sobre pessoas que o viam como um guia em tempos de opressão política e social” de maneira que “homens e mulheres iletrados” - que alfabetizavam-se com o folheto de Ngunga - podiam ver nesse texto uma “relevância política imediata.”XIV Afinal, o que poderia ser mais urgente e imediato que a correta distribuição da colheita? Como era o caso do soba (chefe tradicional) Kafuxi que escondia parte da lavra para não dividi-la com os guerrilheiros e com os demais membros da aldeia:
Quando chegava um grupo de guerrilheiros ao kimbo, Kafuxi mandava esconder a fuba. Dizia às visitas que não tinha comida nenhuma. Se alguma visita trouxesse tecido, então propunha a troca. (...). Se a visita não tivesse nada para trocar, então partia do kimbo com a fome que trouxera.XV
A isso Ngunga se indagava: “Todos os adultos eram assim egoístas? (...) Até um chefe do povo – como Kafuxi – escolhido pelo Movimento para dirigir o povo. Estava certo?” XVI Por maior que fosse o caráter imediato do texto, ele não poupava elementos de autocrítica ao movimento. É pouco provável que os camponeses ao lerem ou ouvirem a história de Ngunga se identificassem menos com a personagem por conta de suas reservas a alguns lideres. Pelo contrário, concluímos que é pela autocrítica que o autor reforça a resistência, bem como a autonomia do leitor/ouvinte a partir do momento em que mostra a este leitor (ou ouvinte) que é infrutífero um “retorno à tradição” de forma acrítica, como seria o caso se Ngunga justificasse a retenção da fuba pelo Soba usando como argumento a autoridade tradicional deste.
Usados com autocrítica, os elementos da tradição são, nesse romance, formas de criar o futuro. Por onde quer que a estória de Ngunga tenha viajado no interior de Angola modificou a paisagem ideológica dos lugares, pois a chegada de “um porta voz do MPLA” (como este folheto romanceado) evidenciava a capacidade deste movimento para integrar os camponeses “num movimento de resistência que continuava a ser simultaneamente modernizante e tradicional, mas em que os elementos de modernização se iriam sobrepor cada vez mais”. Claro que Ngunga não convenceu a todos, visto que “os ‘intelectuais e homens da cidade’ aceitaram a necessidade da resistência armada” sendo, contudo, “seguidos pelos camponeses (...) com graus variados de apoio ou de participação.”XVII
Ao fim da narrativa, fecha-se o ciclo de maturação ideológica da personagem: “Um homem tinha nascido dentro do pequeno Ngunga”XVIII e o escritor faz as vezes de pedagogo e ideólogo se dirigindo diretamente ao leitor:
Vê bem, camarada. Não serás, afinal, tu? Não será numa parte desconhecida de ti próprio que se esconde modestamente o pequeno Ngunga? Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em todos nós, nós os que recusamos viver no arame farpado, nós os que queremos o mel para todos. Se Ngunga está em nós, que esperamos então para o fazer crescer? Como as árvores, como o massango e o milho, ele crescerá dentro de nós se o regarmos. Não com água do rio, mas com a que Uassamba em sonhos oferecia a Ngunga: a ternura.XIX
Ngunga pode ser identificado como personagem síntese, símbolo da unidade. Contudo, para se chegar a essa unidade seria necessário catalisar o coro das vozes guerrilheiras. Esse coro se faz presente em Mayombe. Tal ocorre, pois nesse romance notamos aquela “independência psicológica e intelectual” das personagens de maneira que suas individualidades são destacadas, mas sempre enquanto submersas em um “universo social plural” o que faz com que tais personagens tornem-se “dotados de consciência e igualmente plurais”.XX Isso torna o romance dialógico e polifônico - conforme a definição de Bakhtin -, pois as perspectivas das personagens se chocham desembocando em uma “multiplicidade de posições ideológicas equicompetentes”.XXI
Além disso, Mayombe também remete ao gênero épico. Tomamos para isso a assertiva de Bernard Knox, para quem geralmente o épico “anuncia o ponto da história em que ela começa e prossegue em ordem cronológica até o fim”.XII É exatamente essa a estrutura básica do romance pepeteliano, no incipit temos: “Aos guerrilheiros do Mayombe,/que ousaram desafiar os deuses/ abrindo um caminho na floresta obscura,/Vou contar a história de Ogun,/o Prometeu africano.”XXIII Logo, o ponto em que a história começa é quando do desafio entre Ogum e os Deuses, o primeiro identificado com os guerrilheiros e o segundo com o colonialismo. Com efeito, das diversas personagens que compõem a polifonia do romance identificamos Muatiânvua e Sem Medo como sendo os mais próximos do “arquétipo de Ogum”, isto é, o guerrilheiro ideal tipo, o “homem novo” a ser encarnado posteriormente em Ngunga no romance de 1973.
Contudo, essa identificação arquetípica das personagens se mostra problemática, pois ao se valer de figurações como Ogum, o lendário rei iorubano divinizado,XXIV não estaria Pepetela se valendo de um passado insurgente longínquo - localizado já no tempo do mito-para legitimar a guerrilha então corrente, fazendo assim uso equivocado desse passado para legitimar facções políticas modernas?
A resposta a esta pergunta nos leva a considerar que existem duas formas de uso do mito para o fomento da resistência africana. Steinhart, por exemplo, alega que os movimentos nacionalistas utilizariam o capital simbólico do passado insurgente para criação do mito nacionalista a fim de legitimar práticas por vezes autoritárias.XXV A esta “mitificação da resistência” chamamos de negativa. O uso negativo das tradições insurgentes é perceptível em, por exemplo, Sekou Touré. Este líder político da Guiné-Conacri, “mandiga de etnia, reclamava-se, por parte da sua mãe, descendente de Almy Samory – parentesco não poucas vezes posto em causa – chefe de guerra africano do século XIX, fundador de um efémero reinado (1882-1898). (…)” de forma que Touré, em vários momentos evocou a memória de seu suposto antepassado “para criar consenso nacional”.XXVI Chamamos de negativo, pois ao se valer de uma tradição libertária para ações autoritárias acaba simplesmente negando essa mesma tradição.
Contudo, afirma Steinhart, que se faz necessário o estabelecimento de outro mito: “we must create a better ‘myth’, one better suited to interpreting the reality of African protest”.XXVII Essa outra forma de utilização do mito insurgente – a qual denominamos de positiva – se dá não mais na pragmática da política partidária, mas sim enquanto catalizador de anseios e aspirações coletivas suprapartidárias. É este o Ogum de Pepetela; um corte transversal na narrativa ocupada interiormente por uma pluralidade de vozes, que mesmo dissonantes entre si atuavam dentro do mesmo ideal revolucionário. Prova dessa utilização positiva e não romantizada do Guerrilheiro/Ogum é a passagem em que Muatiânvua, perdido em campo de batalha, precisa ser resgatado, não se oferecendo, contudo ninguém para a tarefa:
- Ninguém se queria oferecer, porque Muatiânvua é um destribalizado. Fosse ele quicongo ou quimbundo e logo quatro ou cinco se ofereceriam. Quem foi? Lutamos, que é cabinda, e Ekuikui, que é umbundo. Uns destribalizados como ele, pois aqui não há outros cabindas ou umbundos. É assim que vamos ganhar a guerra? XXVIII
A indagação repreensiva parte do comandante Sem Medo. Nela há a problemática da constituição da nação em Angola. Sobre esta procura na constituição nacional, argumenta Abdala Jr.:
Em suas primeiras produções (...), Pepepela constrói imagens literárias, que podem ser situadas como materialização de um sonho prospectivo, certamente latente na própria realidade. Como imagem dessa realidade humana em forma de amanhã, (...). Estava latente nessa imagem a ideia de um Estado-nação que comtemplasse dialogicamente a diversidade dos povos angolanos e também a ideia de que o próprio processo de luta pela independência pudesse aplainar as diferenças entre eles, (...) pelo desenvolvimento de uma práxis entre os revolucionários que relevasse a humanidade latente nos indivíduos. XXIX
À tese de Abdala coloca-se em consonância todo o restante dos críticos que se debruçam sobre a obra pepeteliana. Basicamente o argumento da crítica coloca que o autor angolano narra a nação como utopia, como prospectiva do amanhã. O fator que não se costuma apontar é que a utopia e a construção da nacionalidade só são plenamente compreendidas enquanto remetendo à resistência.
Isto é o que nos aponta a estrutura temporal épica de Mayombe. No épico, se tem por um lado o guerrilheiro formado, personificado no comandante Sem Medo e, por outro lado, vários guerrilheiros em maturação, em vias de tornarem-se os homens novos. Dessa forma, todos os personagens expressam a formação plural do nacionalismo angolano, sua maturação e variação interna. Por outro lado ao fim do romance chega-se a consensos: “Lutamos que era cabinda, morreu para salvar um quimbundo. Sem medo, que era kicongo, morreu para salvar um quimbundo. É uma grande lição para nós, camaradas.” Diz o Chefe de Operações, ao que foi respondido por Milagre: “Foi um grande comandante! E Lutamos um bom combatente!”XXX .
Só que este mesmo Milagre é o que se recusa de início a resgatar Muatiânvua por conta de sua origem étnica e que, ao longo de todo romance, olha com desconfiança Lutamos por este ser cabinda. Ao fim, porém, ele forma-se “homem novo” integrado definitivamente na ideologia nacionalista revolucionária do movimento. Mas diz Milagre antes de formar-se: “Viram como o Comandante (i.e Sem Medo) se preocupou tanto com os cem escudos desse traidor Cabinda (i.e Lutamos)? Não perguntaram porquê, não se admiram? Pois eu vou explicar-vos”.XXXI E em sua explicação Milagre tece as argumentações mais preconceituosas possíveis a respeito dos cabindas e dos kicongos.XXXII
Dessa maneira, Milagre expressa a contradição pessoal de um “tribalista” (ou etno-insurgente) em um movimento chefiado por intelectuais cosmopolitas. Indagado sobre essas relações entre etno-insurgentes e assimilados citadinos, Pepetela afirma que “De facto houve choques. Mesmo no aspecto rácico”, pois os primeiros “viam com alguma dificuldade gente não negra como participante no Movimento de Libertação” e enxergavam os últimos como “elitistas citadinos” enquanto que os assimilados crioulizados consideravam, por vezes, os etno-insurgentes “como camponeses atrasados”. XXXIII
Com isso Pepetela, ecoa uma das grandes preocupações dos teóricos da libertação africana. Talvez o melhor exemplo disso sejam as considerações de Amílcar Cabral sobre as formas e métodos da resistência: “A nossa resistência desenvolve-se sob várias formas, camaradas. Primeiro de tudo e no fim de tudo: Resistência Política. Por isso nós começamos por criar o nosso partido, um instrumento político.”XXXIV Segundo Cabral, uma das condições sem as quais a resistência não pode acontecer é a unidade nacional:
A primeira condição para a resistência política, camaradas, é unir as pessoas. (...) Unir, criar a pouco e pouco a consciência nacional, porque nós partimos de um ponto em que não tínhamos uma consciência nacional, em que tanto pela nossa história como pelo trabalho dos tugas (i.e colonialistas portugueses), estávamos divididos em grupos. Civilizados e indígenas, gentes do mato, balantas, papéis, manjacos, mandingas, etc., etc. O nosso primeiro trabalho é criar num certo número da nossa gente, a consciência nacional, a idéia da unidade nacional, (...).XXXV
Entretanto, essa tentativa de criar uma resistência nacionalista ancorada em teorizações modernas esbarra nas cicatrizes do colonialismo. Tais cicatrizes encontram-se na própria formação do MPLA, para Marcelo Bittencourt, por exemplo, o MPLA seria formado “a partir de duas frentes de luta: luandense e outra no exílio – esta última, numa etapa posterior, concentrar-se-ia fora do território português -, ambas clandestinas. No caso da vertente externa, contaria com o apoio da esquerda portuguesa e europeia”.XXXVI Essas camadas urbanas influenciadas pelas esquerdas europeias irão formar o grupo de personagens encabeçado pelo Comissário, Sem Medo e Mundo Novo. Todavia, a semelhança de origem não significava consonância quanto ao método de resistência, o que fica patente na chacota de Sem Medo para com Mundo Novo, para quem este devia sempre “estar a pensar na Europa e nos seus marxistas-leninistas”.XXXVII Para combatentes desse tipo (e somente para estes, insistimos), a crítica de Brunschwig se faz acertada quando fala das ideologias “importées d’Occident, et assez souples elles-mêmes, assez ambigiües pour pouvoir s’adapter aux peuples et aux circonstances”.XXXVIII Seu equívoco é tomar este argumento como generalização.
Se os “Mundos Novos” buscavam se valer dos dogmas revolucionários ocidentais, os Sem Medo criticavam esse aspecto religioso da resistência revolucionária: “É um aspecto religioso – dirá a personagem – uma concepção religiosa da política. Infelizmente, é a maneira de pensar de muitos revolucionários”.XXXIX Apesar das diferenças de método, Mundos Novos e Sem Medos teriam em comum a origem, a “urbanidade e a influência do pensamento de esquerda”. XL Em contraposição a estas personagens, tem-se o grupo dos não-assimilados formado especialmente por Milagre e Muatiânvua. De Milagre já sabemos sobre suas ideias “tribalistas”. Mas, em oposição a ele existe Muatiânvua:
Querem hoje que eu seja tribalista! De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só em Angola, como de África? não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa? (...). Eu, Muatiânvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos do Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem de tudo (mas não é a praia uma margem?), eu não preciso de me apoiar numa tribo para sentir a minha força.XLI
O componente étnico-local presente nos Milagres cedia lugar a uma identidade substancialmente diaspórica e não dogmático-partidária, constituindo-se uma via que chamamos de pan-africana heterodoxa, em que a afiliação com a África se dava “menos como regresso às origens do que como identificação diaspórica, (...), assim criando uma ligação mais a um lugar imaginado, com a consequente desterritorialização, do que a um território real”, esses aspectos transcontinentais e transnacionais do pan-africanismo “não podem ser, contudo, dissociados de uma forte componente nacionalista que também as caracterizará”.XLII Essa abordagem, ao mesmo tempo nacionalista e cosmopolita, da procura de um lugar imaginado remete à própria formação do nacionalismo como proposto por Benedict Anderson, para quem uma nação seria “uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.”XLIII
Ao imaginar essa comunidade, Pepetela busca restituir o passado espoliado pelo colonizador ao presente em libertação, ao mesmo tempo em que tenta estabelecer perspectivas práticas para um futuro em que o homem colonizado encontrasse-se enfim liberto. Tudo isso faz com que seja possível estabelecer esta narrativa, bem como As aventuras de Ngunga, como sendo um ato de resistência, enquanto nos mostra a dinâmica interna do processo insurreto angolano.
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