Línguas Malditas
Aprender português era uma estratégia contra as dificuldades da escravidão, mas a visão de mundo dos negros sobrevivia nas línguas maternas africanas
Fugiu no dia 26 do passado, um moleque de nome Joaquim, nação Cabinda, estatura alta, fala bem e passa por crioulo, tem uma ferida na canela da perna direita, levou vestido calça de riscado azul, e camisa de algodão americano; quem achar ou der notícias na rua da Misericórdia n. 82, será recompensado. (Diário do Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1845)
Com essas palavras, um proprietário noticiava a fuga de seu escravo, entre menino e jovem, o qual, embora nascido na África, de “nação Cabinda”, falava tão “bem” que podia ser confundido com um crioulo (termo que designa o escravo nascido no Brasil, diferentemente do escravo “de nação”, proveniente da África). Apesar de uma ferida na perna, havia fugido fazia alguns dias. Joaquim pode ter sido recuperado por seu proprietário, como pode também ter encontrado um outro “moleque” africano chamado Tobias, descrito como “Inhambane, estatura regular, corpo fino, retinto, olhos grandes, beiços vermelhos”, que escapara de seu dono poucos dias depois. Caso isso acontecesse, como eles se comunicariam? Teria também Tobias condições de falar como um crioulo e dialogar com Joaquim em português? Se não, poderiam trocar idéias e dicas sobre como sobreviver e gozar a liberdade em uma das línguas que aprenderam com suas mães?
Em meio aos duros limites da escravidão, a comunicação e o desempenho lingüístico foram problemas enfrentados com criatividade e perspicácia pelos escravos. Gaspar, um africano de nação nagô, que fugiu ou foi furtado em Salvador em 1838, era citado como “alto, nariz fino, dentes limados, cara alanhada, idade trinta anos, fala desembaraçado”. Já o crioulo Antônio, “fala também as línguas de Moçambique”. Esses e inúmeros outros exemplos mostram que as habilidades lingüísticas faziam parte da sabedoria escrava em negociar alguns espaços de liberdade.
O burburinho da cidade do Rio de Janeiro no século XIX era feito de muitas línguas, em virtude da diversidade da população, proveniente de diferentes regiões do Império e de outros continentes. Longe do que se poderia esperar, a língua portuguesa, mesmo na capital do Império, nem sempre era a mais ouvida. Havia o inglês dos homens de negócios e marinheiros, os falares próprios dos ciganos, o francês, língua da moda, muito apreciada pela alta sociedade, além das línguas indígenas e dos idiomas da família banto, trazidos pelos africanos e usados também por escravos nascidos aqui.
Adèle Toussaint, professora francesa, escreveu sobre suas idas ao mercado da cidade: “É lá que se precisa ouvir falar aquela língua africana chamada língua da Costa. Nada de mais estranho: parece que nela não entra nenhuma consoante; não se distinguem absolutamente mais que ohui, y a, ahua, o, y, o. Aprendi algumas dessas palavras, que logo esqueci; é quase impossível reter uma linguagem da qual se ignora inteiramente a ortografia”.
O grande fluxo das línguas africanas acompanhou o tráfico oceânico, que foi muito intenso na primeira metade do século XIX, até seu fim em 1850. De acordo com o Recenseamento de 1849, na parte urbana da Corte, nada menos que um terço dos habitantes eram africanos.
As línguas oriundas da África eram usadas tanto em momentos de trabalho como nas diferentes ocasiões em que africanos e descendentes estivessem reunidos. Muitos africanos que pertenciam a etnias diferentes entravam em contato — e aprendiam a comunicar-se — já nas travessias para os portos de embarque e ao longo da viagem nos navios. Isso era facilitado pelas semelhanças de algumas das línguas da família banto. Além das próprias línguas maternas, eles poderiam ainda usar línguas francas (línguas comuns) para trocar idéias, praguejar contra o senhor ou lembrar-se da terra. Essa comunicação guardava um grande potencial para a autonomia dos escravos, incluindo formas de solidariedade e de resistência ao regime escravista.
O quimbundo, o quicongo e o umbundo são algumas línguas do chamado mundo banto, que incorpora, por exemplo, Angola, Congo e Moçambique, para citar regiões de onde saiu um fluxo importante de africanos para o Brasil. Há hipóteses sobre uma cultura banto muito presente na região Sudeste, especialmente no vale do Paraíba, articulada a revoltas, tentativas de fuga, mas também à formação de famílias e à manutenção de formas de nomear e perceber o mundo.
No Rio de Janeiro e outras regiões do Brasil, a língua quimbundo constituiu uma língua franca. Em Salvador, para onde a diáspora africana encaminhou pessoas oriundas de outras regiões e culturas, especialmente da África Ocidental, há notícias de uma língua geral baseada no iorubá (também chamado de nagô), que ainda hoje é usada nos rituais do candomblé. O pioneiro nos estudos sobre africanos no Brasil, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), enumerava uma infinidade de línguas, como o iorubá, o ewe, o fon, o hauçá, trazidas pelos africanos escravizados e algumas delas recriadas e adaptadas.
Conservar as línguas era crucial para aqueles homens e mulheres. Significava manter, em meio à situação adversa e muitas vezes violenta da escravidão, o próprio conhecimento que tinham do mundo, sua forma de olhar e sentir, sua identidade cultural, algo que lhes pertencia.
Não era por acaso que as autoridades ficavam alertas quanto ao uso de línguas próprias pelos africanos e escravos. Vistas como bárbaras, dissonantes, primitivas, inspiravam medo e às vezes eram reprimidas mesmo nos ambientes rurais, o que podemos ver pelos depoimentos de descendentes de escravos. Numa sociedade escravista e hierarquizada, o medo de possíveis revoltas escravas era muito intenso, e os homens da política e proprietários de terra e de escravos jamais esqueceram a famigerada Revolta dos Malês, que sacudiu a cidade de Salvador em 1835.
Outro temor dos dirigentes imperiais (políticos, escritores, jornalistas, autoridades policiais) era a possibilidade de que a nação, há pouco independente, se tornasse africanizada em demasia, o que geraria um retrato dos brasileiros inconveniente à classe senhorial.
Apesar de correntes, as línguas africanas em geral não eram incorporadas às propostas de uma língua nacional que apareceram durante o Romantismo, da mesma forma como as marcas africanas não eram evidenciadas nas imagens da nacionalidade, em que predominavam o tema da natureza e o indianismo.
Entretanto, essas línguas malditas ou pouco desejadas influenciaram fortemente o modo de falar e escrever no Brasil, sobretudo em termos de vocabulário e pronúncia, mas também em termos de sintaxe. Numa sociedade em que as trocas culturais eram intensas, ocorrendo nas práticas religiosas, musicais, nas relações familiares, a comunicação verbal não ficava fora desses entrecruzamentos e sincretismos culturais. Alguns homens de letras da época reconheceram isso, como Gonçalves Dias, que escrevia: “temos uma imensa quantidade de termos indígenas ou sejam africanos, que até nos dicionários se introduziram, mas que na maior parte só aparecem na conversação — nomes de comidas, termos de pesca, de lavoura etc., que não são clássicos, mas indispensáveis”. Em 1853, Brás da Costa Rubim, autor do Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários da língua portuguesa, registrou palavras que “passaram da linguagem dos indígenas da América e da África para o uso comum”.
A mistura entre o português e as línguas africanas, no entanto, começou antes mesmo do desembarque dos africanos no Brasil. Em certos pontos da África, o português foi também utilizado como língua franca nas atividades ligadas ao Império Colonial Português. O aprendizado obedeceria às exigências práticas para o trabalho escravo, interessando a feitores e senhores de escravos, mas carregava todo um sentido simbólico mais amplo, segundo o qual, ao aprender uma língua civilizada, o escravo ganharia uma pátria de forma correlata à sua cristianização.
A maneira como era anunciada a fuga de escravos nos jornais do Império indica situações interessantes sobre a experiência lingüística dos escravos, tal como era vista pelos senhores, mas também deixa pistas de interpretação para suas táticas de enfrentamento, sobrevivência e acomodação.
A identificação dos escravos incluía as características da fala, os sinais físicos e as habilidades profissionais. O modo de falar, o bom ou mau desempenho, além de algumas singularidades, como “brando no falar”, “fala espevitado”, eram sinais identificatórios relevantes:
Ao doutor Figueiredo Neves, morador na rua do Hospício n. 97, fugiu no dia 22 do corrente, um escravo por nome Aureliano, pardo claro de cabelos corridos, natural de São Paulo, o qual terá atualmente vinte a 22 anos de idade: é de estatura ordinária, delgado de corpo, e tem falta de dentes na frente, e no pescoço do lado esquerdo um lobinho ou papo: começa a ter buço agora, e quando fala é com muita pausa, boleia sofrivelmente e cose de alfaiate, sabendo também ler e escrever. O senhor do referido pardo o supõe seduzido por não ter este motivo algum para fugir, e por isso roga às autoridades policiais a apreensão do mesmo pardo, e protesta usar de todo o rigor contra o seu sedutor ou acoitador”. (Diário do Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1845)
As características da fala e os sinais físicos apareciam ainda colados a um conjunto de valores, de medos, de prevenções na hora de identificar os escravos fujões.
Marcelina, crioula, era apresentada como “fula, rosto comprido e puxado, bexigosa, boca e olhos pequenos, lábios grossos (...), com uma cicatriz no braço direito, muito regrista, branda no falar (...)”. Um crioulo fugiu em Queluz, Minas Gerais, “de cor fula” e “de poucas falas”; outro, de “fala muito macia, pés chatos”. Fugiu também João, “estatura baixa, retinto, pernóstico”. Outro, também crioulo, “baixo, magro, muito conversado, e conversa bem”. Havia também Aureliano, um pardo trigueiro, que procurava passar por homem livre, empregando-se em seu ofício de tocar tropa, e que “fala bem”. O africano José, oficial de pedreiro, tinha “fala macia”. Outro africano é apresentado como alguém que “fala desembaraçado”. O moleque Serafim “fala muito bem; é muito cigano; costuma trazer o chapéu ao lado. Desconfia-se ter acompanhado uns mascates italianos, como camarada. (...).” O mulato João, “fala um pouco compassado e grosso”. Uma “fala em falsete” identificaria José, um “cabra” que estava fugido havia mais de três anos. Manoel tinha a “fala descansada, cor retinta”. O pardo Félix, de Pernambuco, “tem o falar risonho”.
Portanto, saber comunicar-se poderia facilitar a fuga, mas há também muitos exemplos de fugitivos que tinham dificuldade em interagir. O pardo José tinha “de costume falar um pouco baixo e às vezes como que não ouve muito”. Já Antônio Moreira, “de cor parda, baixo, bastante feio, fanhoso no falar, e alguma coisa gago, finge-se ou é idiota (...)”, característica que todavia não o impediu de exercer seu ofício de ferrador (ferragem de animais).
Problemas na fala podiam acompanhar a observação sobre a inteligência e a esperteza, como na descrição de Jacinto: “de idade de dezenove a vinte anos, bem preto, (...) é muito ladino e inteligente, fala muito apressado e gagueja, e algumas vezes custa-lhe soltar a fala, e por isso fala de supetão e com muita rapidez”.
A distinção entre africanos e crioulos, que sempre foi importante para o regime escravista, nem sempre foi vivida como uma fronteira rígida entre os escravos, o que pode ser notado pelas habilidades orais: José, escravo de nação, “mal-encarado e fala como crioulo”. Outro, ao contrário, era crioulo, mas teria um sotaque de africano: “Miguel, preto, de trinta a quarenta anos de idade, estatura do corpo regular, barbado, crioulo do Rio Grande do Sul, fala com sotaque de africano e inculca-se como pedreiro”. Fazia-se freqüentemente referência a escravos como “ladinos” (espertos) ou “boçais” e suas gradações, “um pouco ladino”, “muito ladino”, que significa a incorporação de habilidades à experiência na sociedade escravista, incluindo o aprendizado da língua senhorial.
Isso tudo pode tornar mais evidente que numa época em que as hierarquias se baseavam na distinção jurídica entre livres e escravos, na propriedade e na cor da pele, a comunicação verbal foi um espaço de trocas inevitáveis, de uma mestiçagem cultural que ocorreu a despeito dos conflitos, violências e agruras do cotidiano. Trata-se de um momento importante da história da língua portuguesa no Brasil, um país multilíngüe, conseqüência da diversidade humana. Defende-se hoje, na África, a idéia de que todas as crianças têm o direito de ir à escola e aprender em suas línguas maternas. Em Angola, no ano que vem, o ensino das línguas nacionais, como o quimbundo e o quicongo, fará parte do currículo escolar, e há um movimento para que se tornem línguas oficiais. É um exemplo a ser invejado.
Ivana Stolze é doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e do CNPq e professora da PUC-RJ. É autora de Cores, marcas e falas. Sentidos de mestiçagem no Império do Brasil (Arquivo Nacional, 2003).
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