Estas duas mantas alentejanas não estavam à venda na FIA deste ano. Eram decoração num stand de promoção a alguma coisa de comer ou beber do Alentejo. Nem estava lá a Mizette Nielsen com as de Monsaraz, nem aCooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola. A representação da tecelagem alentejana este ano ficou a cargo do Carlos Rosa e das suas três belíssimas mantas de lã fiada à mão. Há cada vez menos artesãos rurais na FIA, e fazem falta. Também os pavilhões internacionais ficaram reduzidos a um, sem grandes surpresas relativamente à edição anterior. O meu stand preferido, de onde no ano passado tinha trazido umas lindas tulmas , é o do projecto argentino Marias Mosca .
mantas de fitas
Tem 6 casas onde tecem mantas de retalhos, urdidas com lã e tecidas com retalhos que juntam pela cidade e por casas dos alfaiates. Em cada casa, três, quatro teares.
João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552.
João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552.
Uma prática com certamente muito mais de quinhentos anos de história, a de fazer mantas de retalhos, ou trapo , ou tirelas, ou fitas, como lhes chamam na Aldeia das Dez, na Serra do Açor, onde fomos conhecer o tecelão, poeta eescultor Viriato Gouveia. Com oitenta e três anos que não se lhe vêem nem no rosto nem nos gestos, contou-nos histórias da carestia de linha de algodão durante a Segunda Guerra Mundial e do reflorescimento da produção de mantas a seguir a 45 e até aos anos 70, quando entraram em irreversível declínio. As mantas do Sr. Viriato, e do pai com quem aprendeu a tecer, sempre foram urdidas com linha e tapadas com fitas (tecidos rasgados à mão ou cortados com tesoura) que quem encomendava as mantas entregava ao tecelão. Read more →
casa de trabalho de nordeste
Em Nordeste, S. Miguel, ainda se trabalha lã local para fazer mantas, algumas malhas e trajes para os grupos folclóricos (em que a lã é agora muitas vezes substituída por fibras sintéticas). Na Casa de Trabalho e Protecção à Juventude Feminina do Nordeste o fio é criado pelos processos manuais de cardar, fiar e torcer, e foi lá que, com a gentil D. Filomena, aprendi a fiar na roda .
as mantas da d. guiomina
Em Castro Daire há cada vez menos ovelhas. Quase não se vêem rebanhos e a lã dos que há consta que em boa parte é queimada. Muita é sedeúda, a maneira local de dizer que tem as fibras muito compridas e pouco macias, mas também há algumas ovelhas marinhotas (de meirinha, o nome dado em Portugal desde o século XV à lã de melhor qualidade proveniente das ovelhas merino), de lã mais frisada e macia. Algumas delas pertencem à D. Guiomina. Como não queria desperdiçar a lã lembrou-se de a fiar mais grossa e pouco torcida, de a ugar(juntar dois fios num novelo) e de fazer com este fio fofo grandes mantas de malha. Leva a malha para o monte, com as ovelhas, e as mantas vão crescendo…
(i)material
Janela decorada com cobertor e estandarte em forma de barrete para as Festas do Barrete Verde , Alcochete, Agosto de 2011.
Notas soltas à volta do mesmo tema:
O IMC acaba de lançar um Kit de Recolha do Património Imaterial , editado em papel mas disponível também em pdf para download gratuito. Foi concebido para ser usado por professores e alunos do 2º e 3º ciclos e parece muito bem estruturado e intencionado (O Kit foi concebido sobretudo para aplicação a nível local, promovendo a interação dos jovens com os elementos da comunidade (aldeia, freguesia, bairro, etc.), assim como o conhecimento aprofundado e a valorização do seu Património Imaterial.). Nos anos 70, mas num contexto político bem diferente, foi também graças a alunos e professores de muitas escolas que se fez uma das mais interessantes colecções de livros sobre produções artesanais portugueses (a colecção Artes e Tradições da editora Terra Livre). A acompanhar…
Arquivos digitais: a minha amiga Catarina Miranda tem vindo a dar a conhecer no seu blog uma série de arquivos fotográficos portugueses cujas colecções começam a estar acessíveis através da internet. Vai sendo mais fácil conhecermo-nos.
Saber e contar: é muitas vezes nos blogs mais discretos, feitos apenas com o intuito de partilhar, que se encontra informação mais interessante sobre tradições locais. É o caso, entre tantos outros, da secção de etnografia do blogAlcoutim Livre (obrigada António pelo link).
tecer
Nas aldeias junto a Miranda do Douro tecem-se mantas diferentes das que conheço das outras regiões do país. São urdidas com linho (agora algodão) etapadas com lã fiada relativamente grossa e torcida num fio de dois cabos (de torção “S”). O desenho é criado através da técnica dos puxados, que se encontra em várias regiões (por exemplo no Montemuro ), mas aqui toda a superfície é coberta de puxados, que são no fim do trabalho abertos com uma tesoura. O resultado é uma manta com muitos quilos de lã (julgo que entre dez e vinte) e tão densa e espessa que aos nossos olhos parece um tapete de luxo. Uma manta larga é composta por três peças tecidas individualmente (os teares domésticos são estreitos) e cosidas no fim umas às outras, por vezes rodeadas ainda de uma franja feita também em casa (o tear de franjas vê-se à direita na imagem de cima) e na mesma lã.
tapetes de trapos presos
Postal editado pela Associação Etnográfica do Montemuro
Fiquei a conhecer esta técnica no ano passado, por a ver referida no interessantíssimo livro de Glória Marreiros Viveres, saberes e fazeres tradicionais da mulher algarvia (1995). A autora explica que se fazia com os trapos mais pequenos e linha reaproveitada de meias desfeitas. Descreve-a assim (p. 45):
Começa-se por uma carreira de malha de liga, na segunda carreira o trapinho é preso pelo meio ficando com as duas extremidades livres, fazem-se mais malhas e volta a prender-se novo trapinho. A seguir fazem-se mais duas voltas de malha de liga sem prender trapilhos e na terceira volta, repete-se a prisão dos trapinhos de tecidos e assim sucessivamente.
Uns meses depois, a Margarida partilhou imagens de uma senhora algarvia (Almerinda Neves) a fazer um destes tapetes durante a Fatacil . Por não conhecer outros exemplos, foi com surpresa que descobri estes mesmos tapetes usados como mantas no museu do Mezio . A D. Lurdes, que orienta os visitantes, contou-me a mesma história de reaproveitamento (agora diz-se upcycling): nesta malha, feita também ali muitas vezes com linha de meias desfeitas, eram usados apenas os trapos que já não tinham largura que chegue para serem cosidos. Fica-se a pensar nos séculos de linho e lã e no contraste (e garridice, como se dizia dantes) que as chitas estampadas devem ter trazido às aldeias a partir do século XIX. E será que a técnica é conhecida ou usada noutras regiões também? E noutros países?
A execução é muito simples, apesar de as peças se irem tornando bastante pesadas à medida que crescem: cortam-se os retalhos em tiras com cerca de 3cm de largura e prendem-se na malha como as imagens mostram. As duas últimas imagens são deste cobertor .
mezio
No Mezio funciona aquela que é provavelmente a mais interessante cooperativa de artesãos do nosso país, a Associação Etnográfica do Montemuro . Por cima da loja fica o museu etnográfico, onde cada peça está legendada com o seu nome local (bem, tirando o triste neologismo trapologia que ainda estou para saber quem foi que inventou). Ou a região de Castro Daire é especialmente rica em tradições têxteis ou nenhuma outra das que visitei até hoje fez tão bem o respectivo levantamento. Percebi como se fazia a torcida dos fios fiados em casa (lá diz-se ugar os fios e torcê-los no fuso-parafuso), vi baralhos de agulhas de tricot talhadas em madeira de urze, meias especiais sobre as quais vou escrever mais a sério em breve e uma técnica de fazer mantas ou tapetes de malha com trapinhos pelo meio que pensava só existir no Algarve. Isto para não falar no ponto de crochet quebra-cabeças que ainda não consegui deslindar nem encontrar referido em lado nenhum, nas pulseiras e tigelas de tricot, nas colchas de puxados, nos naperons de papel recortado, nos alforges e nos tamancos de madeira e burel…
cobertores de papa
A norte das mantas de Mértola fazem-se, em Maçaínhas , os célebres cobertores de papa. São mantas de lã churra seleccionada e fiada especificamente para este fim, tecidas num enorme tear totalmente manual por um único artesão de 84 anos. Do tear saem para um pisão (já único no seu género e que lembra as pernas de um gigante), daí para a máquina de cardar , onde ganham o característico aspecto peludo que as torna tão quentes, e finalmente para um estendal onde secam e ao sol e são esticados para adquirirem o aspecto definitivo.
Tudo isto se passa na fábrica de José Pires Freire , que tive o privilégio de visitar na melhor das companhias . Fomos recebidas pelas duas únicas operárias num espaço que há algumas décadas ainda albergava oito tecelãos. O único ainda activo já só vem de vez em quando, quando lhe apetece, e quando se reformar definitivamente não tem quem o substitua. Duas aldeias mais para a frente, numa fábrica moderna, fazem-se réplicas industriais destes cobertores, mas não são a mesma coisa. Ficámos também a saber que nesta região tradicionalmente são os homens que tecem, ocupando-se as mulheres de encher as canelas e ajudar com a urdidura. Não resistimos a trazer um cobertor cada uma.
Tudo isto se passa na fábrica de José Pires Freire , que tive o privilégio de visitar na melhor das companhias . Fomos recebidas pelas duas únicas operárias num espaço que há algumas décadas ainda albergava oito tecelãos. O único ainda activo já só vem de vez em quando, quando lhe apetece, e quando se reformar definitivamente não tem quem o substitua. Duas aldeias mais para a frente, numa fábrica moderna, fazem-se réplicas industriais destes cobertores, mas não são a mesma coisa. Ficámos também a saber que nesta região tradicionalmente são os homens que tecem, ocupando-se as mulheres de encher as canelas e ajudar com a urdidura. Não resistimos a trazer um cobertor cada uma.
Comprar uma destas mantas (eu trouxe a de riscas amarelas, vermelhas, verdes e castanhas) é a melhor forma de contribuir para que a arte não desapareça. Quem não puder ir a Maçainhas pode encontrá-las nas lojas A Vida Portuguesa de Lisboa e Porto.
mantas alentejanas
As mantas de Mértola, actualmente feitas apenas pelas mulheres da Cooperativa Oficina de Tecelagem e muito menos conhecidas do que as de Monsaraz , são um verdadeiro artigo de luxo. Quem as vê não adivinha o que representam em termos de preservação de saberes quase extintos e a única monografia dedicada ao tema que conheço (Mantas tradicionais do Baixo Alentejo, de Ângela Luzia, Isabel Magalhães e Cláudio Torres. Mértola, 1984) tem um quarto de século.Estas mantas nascem nos dois teares domésticos que a cooperativa mantém a funcionar e são feitas hoje como há décadas ou séculos. A sua lã é diferente de todas as outras lãs portuguesas e macia como mais nenhuma. Vem das ovelhas merino e campaniça , autóctones da região, e é tratada de forma totalmente manual até chegar ao tear, sendo ainda hoje fervida em pequenos cestos na margem do rio, aberta, cardada e azeitada à mão e fiada em pequenas rodas artesanais. As cores das mantas são as da própria lã: branca, preta e sernubega (o castanho café com leite da ovelha campaniça). Como cada uma representa um sem fim de horas de trabalho são necessariamente objectos caros, mas comprar uma é contribuir para a sobrevivência de todo um universo. A minha está a uso há dezasseis anos e continua tão bonita como quando foi comprada.
Posts in Category ‘Mantas portuguesas ’
dos trapos
Tive o prazer de partilhar com a Diane o momento em que de uma velha arca saiu esta manta estrelada (e deixo-lhe a tarefa de a mostrar melhor um destes dias). Não sabemos quando nem por quem foi feita, mas os tecidos não terão menos de cem anos. Não tem recheio nem é acolchoada, e o método com que foi feita não é nenhum dos que vêm nos livros estrangeiros. Ver uma peça assim reforça a minha ideia de que não faz grande sentido usarmos tantas vezes o vocabulário do quilting norteamericano para falar das nossas mantas de retalhos e que era muito mais interessante, por exemplo, descobrirmos se por cá este motivo de estrelas (♥ ) tem nome. A Natália, que herdou esta manta (e que aparece a fiar no post anterior ), chama-lhes simplesmente mantas de trapo. Foi nela que a sua filha se inspirou para fazer esta outra e a Diane trouxe-a emprestada para nos inspirar também a nós.
velhos são os trapos
Na semana passada, junto com algumas gavetas, e outras velharias, encontrei num prédio em obras aqui ao lado uma arca cheia de trapos velhos que não resisti a abrir. Entre eles, uma manta de trapo muito velha e puída mas tão fina que tive de a trazer comigo para ver se sobrevivia a uma boa lavagem. Está rota demais para usar como tapete, mas acho que dará umas boas almofadas. Resolvi experimentar bordar-lhe um passarinho em ponto de cruz, depois de andar de volta do catálogo de uma exposição do Museu de Arte Popular sobre o tema (O ponto de cruz: a grande encruzilhada do imaginário. Coord. Elisabeth Cabral – ainda disponível na loja do Museu de Arte Antiga).
É impressionante a diferença entre as mantas de trapo antigas, feitas com roupa cortada em tiras o mais estreitas possível e debruadas a tecido, e as que se vendem agora, quase sempre de trapilho industrial e onde já não se vêem os efeitos tradicionais. As mantas de trapo, que se fazem em vários países, devem ser uma ideia com tantos séculos de vida como o próprio trapo. Duas imagens com mais de cem anos:
fios
Não sei se é por o tema ser o meu preferido, mas achei a exposição do IEFP deste ano na FIA – Fios, Formas e Memórias dos Bordados , Rendas e Tecidos – particularmente bem conseguida. A secção das mantas tecidas, por si, já vale o passeio. As alentejanas (da Cooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola e daFábrica Alentejana de Lanifícios de Mizette Nielsen ) e trasmontanas (de Sendim, feitas em surrobeco recortado e aplicado sobre surrões – sacos antigos de lã e algodão usados para guardar os cereais -), estão expostas lado a lado e formam um conjunto impressionante. Ainda lá volto esta semana.
aervilhacorderosa.com
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