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quarta-feira, 2 de maio de 2018

OPINIÃO DE UM PROVEDOR DE JUSTIÇA - EU SEI



Eu sei

(José de Faria Costa 
Eu sei. Sim, eu sei. E porque sei, não quero que o meu silêncio ecoe no infinito presente da minha vida para que não possa ser apodado, no futuro passado, de cúmplice.
Eu sei que muitas vezes não é fácil vir a terreiro defender aquilo que deve ser defendido como se defendêssemos as “muralhas da cidade”. Mas há um tempo para tudo e não precisamos de recorrer ao Eclesiastes para justificar a bondade do que se acaba de dizer.
Eu sei que o tempo mediático talvez já tenha passado para aquilo que brevemente irei escrever. E talvez, por isso mesmo, o queira agora dizer, porque as coisas só ganham sentido quando a poeira frenética da mediação informativa, levada pelo vento do tempo instantâneo, pula para um outro acontecimento, uma outra notícia, verdadeira ou falsa, pouco importa, para um outro dado da comunicação social (escrita, televisiva ou radiofónica).
Eu sei que a liberdade de expressão e os direitos a informar e a ser informado são esteios indestrutíveis de uma qualquer comunidade verdadeiramente democrática e que, por isso, qualquer forma de censura ou limitação desproporcionada, em meu juízo, são intoleráveis.
Eu sei que há um ruído insuportável à roda de vários casos, chamados mediáticos, que uma solerte comunicação social considera serem protagonizados por “famosos, ricos e poderosos” e que se alimenta, de modo preciso, da qualificação que, justamente, faz desencadear as pulsões mais primárias dos membros de uma qualquer comunidade de homens e mulheres historicamente situados. Este é, em definitivo, um dado histórico indesmentível e que a mais séria psicossociologia do estudo das massas não deixa de confirmar.
Eu sei que muitos vão dizer, como já antes o disseram, que só desta forma se pode combater o crime, sobretudo a criminalidade altamente organizada e muito particularmente a sofisticada criminalidade económico-financeira e, para mais, continuarão a dizer que o esmagamento das garantias mais elementares dos cidadãos, mesmo que inocentes, nada tem de especial: é o preço a pagar para honrarmos a deusa “transparência”, acompanhada da sua irmã “eficiência”. E alguns, mais afoitos no seu radicalismo, até dirão que pensar o contrário mais não é do que a redundância de “luxos” que alguma intelligentsia liberal e talvez decadente gosta de defender. Tudo tem de ser transparente. Na vida individual. Na vida colectiva. Tudo pode e deve ser devassado. Sem limites. A intimidade pessoal, a vida privada individual, familiar ou social nada valem quando se quer perseguir os criminosos, quaisquer criminosos, mesmo que só putativos criminosos, esquecendo-se ou postergando-se, sem rebuço, a presunção de inocência até ao trânsito em julgado.
Eu sei que as coisas que têm acontecido nos últimos meses, para não dizer anos – e que se espelham na divulgação de factos sujeitos ao segredo de justiça ou, não o estando, na sua publicitação que é, do mesmo passo, criminalmente punível -, se tornaram, de forma patológica, endémicas no tecido jurídico-social português. Endemia ou pandemia que aparentemente preocupa toda a gente mas que, efectivamente, faz que “toda a gente” nada faça.
Eu sei que tocar ou mexer neste ponto é tocar ou mexer na estrutura político-normativa do próprio Estado, o que nos faz imediatamente duvidar de qualquer movimento de reforma em tempos que são dominados, ferreamente, pela ideologia e pela nomenclatura do pensamento económico-financeiro e que, ao menor suspiro de manifestação de vontade de mudança, de supetão nos é atirado o perverso, estúpido e diletante brocardo: “It”s the economy, stupid.” Mas o problema é que este ar malsão que respiramos não vem só da economia. Vem de muito mais fundo. Vem de não se perceber que a administração da justiça em nome do povo – não a justa aplicação do direito ao caso concreto por um juiz e não por representante do Ministério Público – é sempre e definitivamente um problema político. Uma questão que se insere no grande mundo das políticas públicas de quem legisla e de quem governa.
Neste sentido, dizer-se “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” é não só apoucar e definhar a máxima religiosa que lhe serve de parâmetro mas também, e talvez por sobre tudo, não querer assumir as obrigações políticas que órgãos, democraticamente eleitos, devem com orgulho, porque mandatados pelo voto, levar a cabo.
Eu sei que uma leitura apressada ou de má-fé dirá que o que vai aqui pressuposto é a tutela doutrinal de uma “justiça para ricos” e de uma “justiça para pobres”. Em boa-fé direi que uma tal interpretação está nos antípodas do que sempre defendi, escrevendo e ensinando, há quase meio século. Por imperativo ético e democrático a lei é igual para todos e a todos por igual tem de ser aplicada, com rigor e imparcialidade. E direi mais: a corrupção é um mal, também ele endémico, que tem de ser combatido por todos os meios, incluindo o direito penal, na sua expressão mais firme e rigorosa. Por isso, infelizmente, Portugal vive duas endemias em que uma alimenta a outra, em um indissociável processo simbólico de reciprocidade.
Eu sei que a última metade do século passado foi a afirmação e tutela, em jeito que se queria universal, dos direitos humanos, em todas as suas dimensões e, por sobre tudo, de modo muito particular, quando lidávamos com as “cousas” dos direitos penal e processual penal. Porém, os primeiros anos desta centúria parecem levantar ventos securitários. E se, desde a Ilustração, se dizia que “mais vale ter à solta um culpado do que punir um inocente”, parece que, hoje, o mais importante é punir a eito e se se não puder fazê-lo em tribunal que aconteça, então, na praça pública. Oh! Santa Idade Média, regozija-te, os teus lados mais negros estão perdoados. Para quê o “processo justo”? Para quê a presunção de inocência até trânsito em julgado? Para quê a proibição da inversão do ónus da prova em processo penal? Para quê o princípio da legalidade da norma incriminadora? Para quê mostrar a insanidade da delação premiada? Para quê salientar dogmaticamente o irrazoável do querer criminalizar o chamado “enriquecimento ilícito”?
Eu sei. Eu sei que o que escrevi pouco vale para mudar o que quer que seja, porque sei que uma crónica de jornal não tem sequer a vida de um ai e, outrossim, menos sequer a força política de um gesto de criança. Todavia, sei que é preciso: não navegar mas dizer.

Professor universitário e antigo Provedor de Justiça


estatuadesal.com

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