“Num dia em que morreram mais de meia centena de civis na Faixa de Gaza, Israel celebrava os seus 70 anos de existência, os EUA incendiavam o Médio Oriente com a inauguração da sua embaixada em Jerusalém, o Irão estabelecia um prazo de 60 dias para preservar o acordo nuclear, a Catalunha (com metade dos dirigentes independentistas na prisão) elegia finalmente um novo presidente, as notícias em Portugal abriam com a notícia de um presidente de clube de futebol aborrecido com a vida”. Não é certamente por acaso que tal sucede.
Visto de fora, o futebol em Portugal não é um desporto, é uma doença. E é uma doença crónica e antiga. No início do milénio, em imagens que me ficaram na memória pelo seu absurdo, todos os três canais de televisão nacionais abriam com diretos em frente a um restaurante. Lá dentro, a jantar, estariam - na altura os jornalistas ainda não tinham a con- firmação - o presidente do FC Porto com um treinador de futebol. A “notícia” era que o treinador poderia estar a negociar a sua entrada no clube do norte. Como era possível dar tanto e tão doentio destaque ao futebol? Como era possível toda a comunicação social pôr o futebol, uma contratação de um clube de futebol, à frente de tudo o resto que acontecia no país e no mundo?
Muitos anos depois, no início desta semana, outra grande “notícia” a abrir os principais blocos noticiosos nacionais - louvável exceção a RTP. Desta vez o presidente do Sporting estaria prestes a suspender, ou não, o treinador do clube.
Foi no dia em que morreram mais de meia centena de civis na Faixa de Gaza, Israel celebrava os seus 70 anos de existência, os EUA incendiavam o Médio Oriente com a inauguração da sua embaixada em Jerusalém, o Irão estabelecia um prazo de 60 dias para preservar o acordo nuclear, a Catalunha (com metade dos dirigentes independentistas na prisão) elegia finalmente um novo presidente. Mas as notícias em Portugal abriam com a notícia de um presidente de clube de futebol aborrecido com a vida.
Nesse dia, em frente à Assembleia da República em Lisboa, manifestavam-se centenas de imigrantes contra a prepotência do Estado português, no ensino público anunciava-se a redução de vagas para estudantes e mais um caso de burla de militares ao Estado marcava a agenda noticiosa. Mas para os editores de notícias nacionais o evento mais importante do planeta eram os achaques mentais de um dirigente desportivo da Segunda Circular.
Depois, anteontem, terça-feira, a derradeira notícia: hooligans portugueses atacam jogadores e um treinador, com a particularidade de não atacarem uma equipa adversária, mas a própria equipa do clube a que pertencem. A distinção é tão importante como a velha máxima do jornalismo: notícia não é o cão que morde o homem, mas o homem que morde o cão. Agora sim, havia mesmo matéria noticiosa. Só que, em qualquer país onde o futebol é um desporto e não uma obsessão, seria uma notícia para o final de um telejornal, não para a abertura.
Apesar de a Alemanha ser um país onde o futebol é o desporto-rei e um antigo jogador ser conhecido como Kaiser, “o Imperador” (Franz Beckenbauer), no dia em que os telejornais abrissem com o estado de alma de um presidente de um clube de futebol, os diretores dos canais teriam de se demitir. O futebol é um tema habitualmente presente nos últimos minutos ou segundos dos noticiários. Em Portugal não. Se um canal de televisão passa mais de meia dúzia de dias sem dar destaque em primeiro plano ao futebol, aí sim, poderão rolar cabeças.
Em Portugal, muito mais do que no resto da Europa, o futebol funciona como distração permanente da população. Enquanto os portugueses olham fixamente para os homens a correr atrás da bola no relvado, e para os negócios nos bastidores, ninguém liga realmente aos parlamentares nas bancadas da Assembleia da República e para os negócios dos deputados. Enquanto as pessoas se preocupam com os problemas de tesouraria de um clube de futebol, com os árbitros comprados e com os valores das transferências de jogadores, ninguém exige que se tirem consequências da venda ruinosa de setores estratégicos da economia, da perda de nove mil milhões de euros de dinheiro do Estado no BPN ou dos outros negócios escuros do Estado que enriquecem ex-governantes.
Na época em que há menos futebol, as televisões concentram as suas atenções nos incêndios, nos crimes de caçadeira, nos diretos das praias e nos festivais de música pelo país fora. O problema não é a saúde mental deste ou daquele presidente de clube de futebol ou treinador. Preocupante é a apatia e letargia de um país anestesiado pela clássica fórmula “pão e circo”.
Fonte: DN, 19 de Maio de 2018
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