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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Ainda a geringonça – A Terceira Via e a atual situação de impasse, na Europa e em Portugal também. Reação a um artigo de Augusto Santos Silva e também às interrogações de Nuti sobre Portugal. Por Francisco Tavares

sobre artigo novo partido corrupcao geringonça
Cartoon da autoria de Vasco Gargalo realizado para uma reportagem da RTP que regista o segundo aniversário dos inéditos acordos de Governo entre PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes

A Terceira Via e a atual situação de impasse, na Europa e em Portugal também. Reação a um artigo de Augusto Santos Silva e também às interrogações de Nuti sobre Portugal

FTavares
Por Francisco Tavares


Diz o Dr. Augusto Santos Silva, em dado momento de um seu artigo intitulado Filhos mais de Kant do que de Hegel(DN, 22/05/2018): “….. Seria um erro trágico ignorar a natureza dinâmica e mutável da nossa ideologia, pregando imobilismos dogmáticos, revivalismos anacrónicos ou retornos a imaginários paraísos perdidos. Quando peço que consideremos o esforço de atualização feito, há 30 anos, pela dita Terceira Via, não sugiro que regressemos a ela – teve o seu tempo, mostrou méritos e limitações, agora outros desafios nos confrontam” (sublinhados a negro meus).
Mas para confrontar os novos desafios, certamente que se impõe alguma reflexão sobre o passado (e certamente que os anos de 1930 e os anos de 1980 devem ser revisitados, regularmente) sem imobilismos dogmáticos, revivalismos anacrónicos ou retornos a imaginários paraísos perdidos.
A Terceira Via, méritos e limitações? Quais dr. Augusto Santos Silva? De que méritos falamos? Não se trata de nos atolarmos numa discussão sobre o passado, entre Kant e Hegel. Trata-se de tirar lições do passado. E de ver e ouvir a realidade que nos rodeia, não esquecendo as lições do passado (povos sem memória arriscam-se à repetição dos mesmos erros) para se poder construir um futuro inclusivo para todos.
Por isso, seria não só didático, mas sobretudo útil com vista ao futuro, se pudesse concretizar esses “méritos e limitações”.
O que foi a política da Terceira Via, esse dito esforço de atualização, liderada por Blair e Schröeder senão a caução às políticas hoje chamadas neoliberais vindas de Tatcher e Reagan? Foi o abraçar pela social-democracia das políticas que nos trouxeram às políticas de austeridade que significaram até agora, entre outras coisas:
  • desvalorização do fator trabalho,
  • desregulação do mercado de trabalho,
  • austeridade,
  • privatizações,
  • corte na despesa pública de setores fundamentais da sociedade (saúde e educação, por ex.),
  • o “new public management” que insistia à exaustão nas virtudes da gestão privada. A este propósito um relatório bem recente – janeiro de 2018 – do conceituado Departamento Nacional de Auditoria do Reino Unido, questiona a existência de comprovação substantiva de que tenha havido quaisquer economias financeiras com as PPPs – PFI and PF2, National Audit Office – e um relatório da European Federation of Public Service Unions (EPSU) de maio de 2014 – Public and Private Sector Efficiency– conclui que “existe (…) experiência exaustiva de todas as formas de privatização e (…) evidência sobre a comparação da eficiência técnica. Os resultados são notavelmente consistentes em todos os setores e todas as formas de privatização e externalização: não existe evidência empírica de que o setor privado seja intrinsecamente mais eficiente” (cf. Introduction).
  • a “santificação/entronização” do défice público zero que não tem nenhuma realidade ou teoria económica que o sustente.
Afinal, porque se tornaram tão indistintos em diversos países (vd. o que se passou, e passa, em França, ou em Itália, ou na Alemanha, ou até em Espanha – e a lista poderia continuar) os partidos tradicionais de direita e os da social-democracia? As soluções não passam necessariamente pela violência, mas perante o cerco, que se mantém, a grandes camadas da população (de que são reflexo a subida dos partidos populistas, a falta de solidariedade, vd. novo governo de Itália, vd. Hungria, vd. Polónia) é de esperar que se mantenham em silêncio?
Como é possível manter, desenvolver e renovar o espaço público onde se afirme o primado da lei e do direito e a salvaguarda de direitos, deveres, liberdades e garantias se se estiver perante enormes camadas da população em pobreza ou em risco de nela entrar?
Aqui, antes de continuar, deixem-me introduzir um recente comentário interrogativo de Mario Nuti dirigido a um seu amigo de Portugal: “Visto desde Itália, desde 2015 Portugal é um caso exemplar de políticas socialistas com sucesso, caso único na Europa, sem austeridade, crescimento do PIB de 2% ao ano e de 3,2% do emprego, com os socialistas, os comunistas, os verdes e o Bloco de Esquerda: um exemplo para todos nós, principalmente em Itália onde a esquerda se dividiu várias vezes. Como parece a geringonça de António Costa vista desde Portugal?
O que representaram as políticas da troika em Portugal, filhas das políticas iniciadas nos anos de 1980 (e depois prosseguidas entre outros pela Terceira Via)?
“Com a crise e com a “troika” registou-se uma reestruturação violenta e rápida do mercado de trabalho, que determinou a expulsão maciça de trabalhadores com o ensino básico, que foi muito superior ao emprego destruído. Associado a isso, aumentou a proletarização e a precariedade, e os baixos salários tornaram-se cada vez mais dominantes (cf. Eugenio Rosa em A Viagem dos Argonautas, 13/02/2018). Não existem hoje sinais claros de reversão das políticas da troika.
Quanto ao crescimento do PIB, Portugal registou, efetivamente, uma subida de 2,7% do produto em 2017: segundo os dados do INE o motor desse aumento foi a aceleração do investimento – de 8,4% – compensando a evolução negativa da procura externa líquida. Dentro do investimento foi a formação bruta de capital fixo em construção – +9,2% – a componente que deu o maior contributo (em 2016 tinha tido um crescimento negativo). Também o investimento em “máquinas e equipamentos” e em “equipamento de transporte” aceleraram significativamente.
No entanto, de notar que apesar da evolução negativa da procura líquida externa, nas exportações o turismo registou um aumento acentuado, com as vendas ao exterior a crescerem 15,4%, “o que constitui uma das taxas de crescimento mais elevadas desde o início dos anos 90”, assinala o Banco de Portugal, referindo que esta taxa só é comparável à que se verificou no ano da Expo98.
As projeções do BdP para os próximos 3 anos (2018-2020) apresentam sucessivamente menores taxas de crescimento: 2,3%, 1,9% e 1,7%, em linha com as projeções do BCE para a zona euro. O que significa que não nos afastaremos da zona euro, mas também não nos aproximaremos. E aumento de construção (imobiliário) não augura um futuro propriamente sustentável. E a ver que impacto, por exemplo sobre o turismo (e não só, é claro) terá a atual tendência à alta do preço do petróleo.
Ainda quanto ao PIB, faço notar que a Espanha, por exemplo, teve um crescimento em 2017 de 3,1%, e está governada pelo Partido Popular que em virtude de não ter maioria absoluta tem conseguido a aprovação do orçamento essencialmente com o apoio de um partido que concorre na sua área política, a direita, que é o partido Ciudadanos. Refira-se ainda que o Banco de Espanha projeta um crescimento do PIB de 2,7%, 2,3% e 2,1% para o período 2018-2020.
Todavia, outros dados disponíveis em Portugal apontam para:
  • O risco de pobreza ou exclusão social: dados do INE indicam que, em 2017, apesar da sua diminuição em relação ao ano anterior (menos 196 mil pessoas), existiam dois milhões e 399 mil portugueses (23% da população) que estavam em risco de pobreza ou exclusão social.
INE risco pobreza e exclusao dados prov 2017 1
Nota: Inclui pessoas em risco de pobreza (pessoas com rendimentos anuais por adulto equivalente inferior ao limiar de pobreza) ou em situação de privação material severa ou vivendo em agregados com intensidade laboral per capita muito reduzida (todas as pessoas com menos de 60 anos que, no período de referência do rendimento, viviam em agregados familiares em que a população adulta entre 18 e 59 anos (excluindo estudantes) trabalhou em média menos de 20% do tempo de trabalho possível).



Porque permite uma imagem consistente do problema apresenta-se abaixo o cálculo da linha de pobreza ancorada em 2009 e atualizada nos sete anos seguintes com base na variação do índice de preços no consumidor.
INE linha pobreza 2009 2017 dados prov 2017 2
Apesar da sua redução nos dois últimos anos, a linha de pobreza mantém-se bem acima da registada em 2009, e representa mais de 1/5 da população.
  • O desemprego e o subemprego continuam a constituir causas importantes desta pobreza em Portugal, como se pode comprovar com uma atenta leitura dos dados do INE:
    • 410,1 mil desempregados que correspondem à taxa de desemprego oficial de 7,9%
    • 199,6 mil inativos disponíveis (que não procuram emprego)
    • 199,4 mil trabalhadores em subemprego a tempo parcial (e salário parcial, claro)
Ou seja, um total de 809,1 mil portugueses estão em situação de desemprego ou de precária sobrevivência, o equivalente a 15%.
  • Em 2008, no início da crise, o rendimento médio dos portugueses (6027€/ano) era já muito inferior ao rendimento médio na UE (12.312€/ano) e mais ainda em relação à média da zona euro (13.967€/ano). Entre 2008 e 2016 esse fosso aumentou (+880€ na UE, +432€ na zona euro, -134€ em Portugal)
  • O nível dos salários associado ao aumento da precariedade do emprego parecem estar na origem de uma nova classe de trabalhadores pobres. 11% da população que trabalha “vive em situação de pobreza, pelo que ter um emprego não quer dizer que se escapa à pobreza”, segundo afirmou em março de 2018 o especialista Farinha Rodrigues.
Será caso para se dizer, à semelhança de um dito jocoso de outras épocas, “de recuperação em recuperação até à depressão final”. Que afinal, de divertido não tem nada. A fragmentação da sociedade, fruto das políticas austeritárias, não parece que tenha desaparecido, quer em Portugal quer em muitos outros países da Europa.
Aliás, a lógica destas políticas tributárias do thatcherismo (que Blair não contrariou, pelo contrário) e do reaganismo é o cada um por si, o indivíduo basta-se a si próprio, se não vences a culpa é tua, o mercado autoregula-se, o Estado só atrapalha, as simplificações ideológicas, o erguer de muros. O que se assiste em toda a Europa são sinais iniludíveis de fechamento [1], de desconfiança, de enfraquecimento de sentimentos solidários, de intolerância. E o acentuar da desigualdade na distribuição da riqueza que estas políticas austeritárias trouxeram e o consequente empobrecimento de grandes camadas das populações, trazendo insegurança e medo do futuro, é certamente um bom terreno para que floresçam os extremismos, e nomeadamente movimentos de tipo fascista.
Não é tempo de os políticos e outros responsáveis fecharem no baú políticas que somente semearam a destruição nas nossas sociedades? Não se trata de voltar ao “belo” mundo de antes, mas certamente há que identificar e denunciar os sinais que a memória, a experiência passada, nos permite reconhecer como perigos altamente destrutivos das sociedades. Autores insuspeitos de simpatias populistas, como Wolgang Münchau e Harold James alertam-nos para o retorno aos velhos e negros anos 30 – o primeiro no texto “A Itália mostra o caminho para a morte da democracia liberal” e o segundo em “Dez lições sobre e República de Weimar”.
Reconhecendo embora o que de positivo teve a implantação da atual solução de governo, que segui com entusiasmo desde o seu início, e que travou a rampa de destruição em que caminhávamos, além de uma importante descompressão social, é altura de constatar o perigoso muro que se levanta (ele estava lá…) à frente da Geringonça, que constitui o esgotar de soluções balizadas dentro das políticas marcadas pelo signo da austeridade.
Em 22 de maio de 2018
Nota
[1]  Ontem fiquei surpreendido com uma notícia aparentemente insólita de que a Suécia prepara os seus cidadãos para a guerra. Segundo o El País o governo sueco vai enviar para casa dos cidadãos instruções em caso de crise no país, algo que tinha acontecido pela última vez em 1961, em plena guerra fria. Não parece que deixe de ser um sinal dos tempos que correm.



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