A descoberta dos destroços de um navio de origem portuguesa que se afundou com escravos a bordo é considerada histórica. A investigação envolve vários parceiros que têm a escravatura como um património comum.
Mas onde está Portugal?
Naufrágios de navios negreiros não eram uma raridade nos séculos XVII e XVIII, quando Portugal dominava o tráfico transatlântico: os motins de escravos ocorriam com frequência durante as viagens.
O Transatlantic Slave Trade Database, um projecto internacional, tem cerca de mil naufrágios com escravos registados na sua base de dados. Mas esse tem sido, essencialmente, um trabalho de documentação baseado em fontes escritas. Os vestígios arqueológicos escasseiam.
É por isso que a descoberta dos destroços de um navio de origem portuguesa, anunciada no início de Junho, foi considerada histórica. Pela primeira vez, arqueólogos estão convencidos de terem encontrado vestígios de um navio que se afundou com escravos a bordo.
Porquê só agora? “A resposta é simples: não é um assunto que tenha recebido a atenção que merece por parte dos arqueólogos marítimos”, diz ao PÚBLICO o antropólogo Stephen Lubkemann, coordenador internacional do Slave Wrecks Project, uma joint-venture de seis instituições norte-americanas e sul-africanas que está a conduzir a pesquisa arqueológica sobre o navio portuguêsSão José Paquete de África, que naufragou ao largo da Cidade do Cabo, na África do Sul, em 1794.
“A arqueologia marítima tem-se voltado para uma certa versão da história. Uma versão da história ligada aos grandes acontecimentos, às batalhas. É uma versão bastante antiquada, na verdade: não é a história social, nem aquela que encontramos na historiografia dos últimos 30 ou 40 anos. E essa é uma falha que precisa de ser remediada. Chegaram entre 10 e 14 milhões de pessoas às Américas do Norte e do Sul vindas de África, e o mesmo número terá provavelmente morrido durante a travessia. O tráfico de escravos é a base do mundo moderno, quer em termos sociais, quer em termos económicos – basta olhar para as sociedades dos Estados Unidos e do Brasil. Talvez por ser uma história inconveniente seja um assunto negligenciado.”
O São José Paquete de África partiu de Lisboa em Abril de 1794, rumo à Ilha de Moçambique, onde se abasteceu de escravos – entre 400 e 500, segundo os investigadores. A 3 de Dezembro, iniciou o que deveria ser uma travessia transatlântica de quatro meses com destino às plantações de cana de açúcar no Brasil. Mas, 24 dias mais tarde, dominado por ventos e correntes fortes, o navio embateu num rochedo a 100 metros da costa sul-africana, junto à Cidade do Cabo, e desintegrou-se. Tripulação e cerca de metade dos escravos sobreviveram. Mais de 200 negros morreram no naufrágio.
O São José é uma das dez buscas que o Slave Wrecks Project tem em curso em diferentes partes do globo para tentar localizar navios naufragados com escravos a bordo. E apesar de só ter sido revelada publicamente agora, é o resultado de cinco anos de trabalho arqueológico e pesquisa em arquivos, incluindo portugueses.
Uma contribuição fundamental para a identificação do naufrágio foi a descoberta do manifesto de carga do São José no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. “Foi uma sorte enorme, mas também revimos mais de 12 mil documentos para o encontrar”, nota Lubkemann.
O documento descreve a quantidade e características da carga transportada de Lisboa para Moçambique, em particular cerca de 1500 barras de ferro cuja função era estabilizar o navio no mar. Essas barras eram de uso comum nos navios negreiros, servindo para compensar as variações da carga humana a bordo durante as longas travessias transatlânticas, já que nem todos os escravos sobreviviam à viagem.
No local do naufrágio os arqueólogos encontraram barras de ferro, pregos em cobre e pedaços de revestimento do fundo de um navio, também em cobre, vestígios de grilhetas, madeira de barris e a rotativa de uma roldana. É uma zona de águas muito agitadas, o que dificulta os trabalhos arqueológicos.
“As pessoas tendem a pensar num naufrágio estilo Titanic. Ou uma coisa bastante intacta que reconheceriam caso mergulhassem. Mas foi um acidente bastante violento, e os vestígios estão dispersos por todo o local.”
Nenhum dos objectos recuperados apresenta marcas de proveniência portuguesa. “Mas isso não quer dizer que não se trata do São José. Temos suficientes provas documentais e arqueológicas que nos permitem concluir que é”, garante o sul-africano Jaco Boshoff, que lidera os trabalhos de arqueologia marítima sobre o naufrágio do São José. “Nem tudo tinha marcas, como nos navios de guerra. Nos navios de guerra as barras de ferro tinham marcas, ao contrário das embarcações mercantis ou de escravos.”
Stephen Lubkemann admite que “existe um grande perigo na arqueologia de as pessoas encontrarem aquilo que querem encontrar”. O anúncio da descoberta do São José levou o seu tempo também porque os arqueólogos queriam ter bases sólidas que lhes permitissem desqualificar outros cenários. “Estatisticamente, seria impossível outro navio reunir os mesmos indícios”.
Portugal de fora
Apesar da investigação sobre o São José reunir vários países que tiveram papéis activos no sistema esclavagista, Portugal está ausente dessa colaboração. “Se quiséssemos incluir países que estiveram envolvidos no tráfico de escravos, um ponto de partida lógico seria Portugal”, diz Lubkemann. “Portugal foi pioneiro no tráfico transatlântico. Mais de 40% dos escravos foram levados em navios portugueses, um valor superior a qualquer outro país – Espanha, Grã-Bretanha, França, Holanda.”
Apesar da investigação sobre o São José reunir vários países que tiveram papéis activos no sistema esclavagista, Portugal está ausente dessa colaboração. “Se quiséssemos incluir países que estiveram envolvidos no tráfico de escravos, um ponto de partida lógico seria Portugal”, diz Lubkemann. “Portugal foi pioneiro no tráfico transatlântico. Mais de 40% dos escravos foram levados em navios portugueses, um valor superior a qualquer outro país – Espanha, Grã-Bretanha, França, Holanda.”
Lubkemann diz que tiveram conversas informais com alguns colegas em Lisboa no sentido de uma colaboração futura. “Pessoalmente, acho que devia ser uma prioridade para os arqueólogos marítimos portugueses. O tráfico de escravos é muito negligenciado apesar de ser um país que deve tanto da sua identidade à sua história marítima. Mas creio que todos os países padecem da sua própria versão de amnésia social: nos Estados Unidos, por exemplo, o Norte tende a esquecer o seu envolvimento no sistema esclavagista do Sul.”
Lubkemann e a sua equipa descobriram que o proprietário do São José, de apelido Pereira, tinha interesses em pelo menos quatro continentes. “Tinha ligações com Angola e São Tomé, o Maranhão no Brasil, Goa. Estamos em 1794 e parece que a era da globalização já estava em andamento.” O capitão do São José era o irmão mais novo do dono da embarcação. “Esse dono, sabemo-lo através de outros documentos, continuou a ser activo no tráfico negreiro pelo menos durante mais 30 anos. A sua assinatura aparece em 1828 numa petição endereçada às autoridades moçambicanas contra a abolição do tráfico de escravos. Sabemos que eles têm outro navio, também denominado São José, mas estePaquete de Goa. Continuamos a fazer o trabalho de arquivo, neste momento no Brasil, para tentar saber um pouco mais sobre a história desta família que tinha uma rede bastante internacional.”
O anúncio da descoberta do São José foi acompanhado de um simpósio internacional na Cidade do Cabo com investigadores e especialistas de diferentes nacionalidades. Moçambicanos, brasileiros e sul-africanos reclamaram o naufrágio como um património que lhes pertencia. De novo, não havia portugueses. Para que países vitimizados pela escravatura possam ser donos da narrativa?
“Esse género de sensibilidade pode sempre emergir, mas não houve nenhum esforço para excluir Portugal ou qualquer outro país com base nisso. A abordagem do Slave Wrecks Project é não ter uma narrativa dominante”, diz Stephen Lubkemann. “O tráfico de escravos é uma história complicada até em África. Muitas potências africanas tiveram uma participação activa.” Um exemplo: os investigadores encontraram um documento de 1794 nos arquivos de Moçambique indicando a venda de um escravo por um chefe local ao capitão do São José.
A descoberta do São José foi revelada em primeira mão pela imprensa norte-americana, ainda antes da conferência na Cidade do Cabo com os media locais. Apesar de o Iziko Museum, na Cidade do Cabo, ser o depositário dos achados do naufrágio, o Museu Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana, que vai abrir no Outono de 2016 em Washington D.C., irá expô-los pela primeira vez. E aí permanecerão durante um período de dez anos, antes de regressarem à África do Sul.
Essa decisão mereceu críticas de neo-imperialismo na imprensa sul-africana. “Pode parecer petulante reclamar direitos sobre os restos de um navio de escravos em que 212 pessoas – nem sul-africanas, nem americanas, mas moçambicanas – morreram, mas a questão é maior. Durante séculos, os artefactos africanos foram saqueados por museus europeus para serem exibidos”, escreveu o jornal sul-africano The Daily Maverick a 3 de Junho. “Quando uma descoberta é feita ao largo da costa de África, com ressonância histórica sobretudo para os africanos, e no entanto é imediatamente expedida para o Estados Unidos, (…) essa é uma trajectória que era comum – quando era mesmo? Ah, sim: na escravatura”, conclui o jornal.
Um naufrágio é um dilema, defende Stephen Lubkemann, porque levanta sempre a questão: a quem pertence? “Neste caso estamos a lidar com um navio que fundeou na África do Sul, onde cerca de metade dos escravos que sobreviveram ao naufrágio foram vendidos. De um ponto de vista legal, porque está dentro das suas águas territoriais e porque provavelmente há pessoas que descendem dos sobreviventes, é um património sul-africano, certo? Mas o navio tinha pessoas que vinham de Moçambique, o que faz com que seja um património moçambicano também. OSão José é um de quatro navios que partiram para o Brasil e sabemos que três deles chegaram ao destino. Conseguimos identificar 110 indivíduos de ascendência moçambicana no Maranhão. Será que esta história está de alguma forma relacionada com essas pessoas? A resposta é, muito possivelmente, sim. E não podemos esquecer que isto também faz parte da herança de lugares como Portugal e outras nações envolvidas no tráfico esclavagista, que precisam de reflectir sobre essa história. O património não é apenas aquilo de que nos orgulhamos, mas também o passado difícil.”
Lubkemann garante que a maioria dos achados do São José – “provavelmente 90%” – continuará na África do Sul. “A África do Sul, por sua vez, terá de responder a questões muito complicadas sobre a sua própria função de guardiã. E se Moçambique decidisse dizer ‘Aqui morreram moçambicanos’ e acusar a África do Sul de ser imperialista?”
KATHLEEN GOMES
www.publico.pt
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