Petra: O tempo é um pouco mais antigo
No coração das montanhas Sahara, no sudoeste da Jordânia, às portas do grande deserto arábico, Petra, refém do seu prestígio e do seu mistério, é hoje um dos mais visitados recintos arqueológicos de todo o mundo.
O caminho volteia entre alta penedia, na sombra das primeiras horas matinais. É um desfiladeiro estreito e semelhante ao leito de um rio seco, que se estende ao longo de um quilómetro. Num último instante, a dois passos do final, a fraga altíssima das margens inclina-se e forma uma espécie de cúpula natural. O andarilho, imerso na penumbra, vê a garganta desaguar subitamente numa clareira e iluminar-se diante de si o mais conhecido ícone de Petra, o templo Khazneh al-Faraoun, símbolo das influências helenísticas na arquitectura da cidade.
O acesso à antiga capital dos nabateus é paradigmático de uma cidade secreta ou improvável e a sua descrição caberia bem num texto de Borges ou de Calvino. A cidade permaneceu invisível e ausente dos mapas modernos até 1812, quando o aventureiro e explorador suíço Johann Ludwig Burckhardt, disfarçado de mercador árabe, com o nome Ibrahim Ibn Abdallah, conseguiu que um guia beduíno da região o conduzisse até lá. O último registo histórico de Petra datava de 1276, por ocasião da passagem do sultão Baybars, em viagem do Cairo para Karak a fim de responder à ameaça de uma horda de Cruzados. Curiosamente, numa dessas geométricas figuras do destino de que falava Rilke, foi justamente em Karak que Ibrahim Ibn Abdallah ouviu falar de uma misteriosa cidade antiga escondida no interior de uma montanha.
Petra converteu-se, nas últimas décadas do século XX, na jóia da coroa do património histórico e cultural jordano e na mais generosa fonte de receitas turísticas do país. Classificada pela UNESCO em 1985 como Património Mundial, é um dos espaços arqueológicos mais visitados em todo o mundo — cerca de três mil visitas por dia, no pico da estação.
Mas não há bela sem senão. A pressão do turismo, que aumentou substancialmente a partir de 2007 depois da controversa iniciativa que elegeu Petra como uma das sete novas maravilhas do mundo, constitui uma ameaça tão real quanto a erosão natural sobre o arenito colorido em que os nabateus talharam a sua capital. Os efeitos sobre o modo de vida e sobre a cultura das famílias beduínas que foram obrigadas a abandonar Petra são outro dado importante para a reflexão sobre as consequências do turismo. Se houve melhoria nas condições de vida da comunidade bdul, registaram-se também mudanças dramáticas sob o ponto de vista cultural que os visitantes podem observar à vista desarmada: a produção e o comércio de artesanato anódino e de bugigangas, a mendicidade, a dependência absoluta de actividades relacionadas com o turismo.
O primeiro mistério
O recinto arqueológico de Petra ocupa um espaço imenso — e dificilmente o viajante terá uma ideia da cidade e do seu património arquitectónico num único dia. Para quem disponha de tempo e deseje explorar minuciosamente a área, há passes válidos para três dias. É sempre possível, obviamente, reduzir a visita a um único dia, mas esta opção implica iniciar a jornada muito cedo, dar muita corda aos pés e dispor de condição física que permita andarilhar uma boa vintena de quilómetros, incluindo subidas e descidas por muitas centenas de degraus pendurados aqui e ali à beira de abruptos declives.
O percurso principal, que se estreia no Siq (o desfiladeiro de entrada, que sempre foi um elemento precioso da defesa da cidade) e atravessa o vale onde se situam as edificações mais relevantes, significa uma “pequena” caminhada de quatro quilómetros. Há outras rotas complementares muito interessantes, que vão surgindo em sucessivas bifurcações, desafiando as artes de organização do caminheiro.
O viajante saberá de tudo isso pelos livros ou pelas brochuras e mapas que trocará por alguns dinares à entrada. Às primeiras horas da manhã, com os turistas mais madrugadores a posar diante do Khazneh al-Faraoun ou de um punhado de camelos ataviados com coloridas albardas, figurantes dóceis à espera de passageiros, talvez lhe pareça parca a aventura e fraco o desafio de por ali andar à procura de antiguidades. Mas as primeiras radiações de luz matinal sobre a fachada do Khazneh al-Faraoun e os mistérios indecifráveis que encerra são um alento para a jornada. Terá sido mesmo o Khazneh, nos antanhos de dois mil anos atrás, um templo? Ou mausoléu de um dos últimos monarcas dos nabateus? A urna funerária que culmina a fachada, acima de belos capitéis coríntios e de colunas jónicas, guardou em remotos outroras algum tesouro, como narram as lendas da tribo bdul? O interior, esse, é de uma glória distinta, é como o de muitas outras tumbas e templos de Petra, uma sala vazia, cavada com geométrica diligência na pedra, muito mais austera do que a câmara das aventuras do inverosímil arqueólogo Indiana Jones em A última cruzada.
O império nabateu
O desfiladeiro continua em direcção ao centro de Petra, ladeado por uma série de túmulos, acabando por desaguar numa ampla ágora, que se considera ter sido o centro cívico da urbe. Nas paredes rochosas continuamos a ver tumbas — escavadas e esculpidas em arenito, como quase todos monumentos da cidade — sobrepostas até dezenas de metros de altura. Na face poente, um magnífico exemplo do zénite civilizacional de Petra: um grande teatro greco-romano com assento para oito mil espectadores. Data do primeiro século d.C., de uma época em que os nabateus já haviam cedido à conquista por Roma, só depois de muita resistência e de terem, até, subornado um legião inteira enviada para os subjugar...
Antes de ser designada capital da província romana Arabia Petrea, Petra conseguiu manter-se independente mais de meio milénio, quer pelas notáveis defesas naturais proporcionadas pela sua localização nas entranhas das montanhas Shara e rodeada por desertos, quer por mor de hábeis manobras diplomáticas que asseguraram, também, o controlo de toda a parte ocidental do deserto arábico. A prosperidade do reino nabateu teve sustento numa particular argúcia comercial, a partir dessa posição de dominância. Petra obteve largos benefícios da cobrança de direitos de passagem pelos seus territórios de caravanas com especiarias orientais que cruzavam a Arábia ou iam do porto de Aqaba, no Mar Vermelho, em direcção a Damasco e ao Ocidente. Se este tipo de exploração de rotas comerciais era comum nesses tempos, parece que os nabateus, bons e atentos empreendedores, ter-lhe-ão juntado também o comércio, a pilhagem e a pirataria no Mar Vermelho. A seu tempo e pelas instâncias devidas chegou o reconhecimento do esplendor e prestígio alcançados: a referência do geógrafo Estrabão a uma cidade cosmopolita e próspera (e “muito bem governada”, no Livro XVI da sua monumental Geographia, e a visita do imperador Adriano no início do século II d.C.
Da ribalta à solidão
A passos tantos, o assunto planta-se na agenda do caminheiro: haverá maneira de escapar por umas horas ao vaivém incessante de turistas? A primeira fuga tem ponto de partida pouco antes do teatro romano. Um escadório na escarpa sul leva a um dos mais importantes locais de sacrifício dos nabateus. O turista tresmalhado tem à sua frente meia hora a galgar centenas de degraus até alcançar uma pequena plataforma situada a duzentos e tal metros de altitude. O panorama tem quase 360 graus e entre o relevo montanhoso vislumbra-se bem o Jebel Haroun (o Monte Hor da Bíblia), um local sagrado para as três grandes religiões monoteístas originárias do Médio Oriente, que se supõe guardar o túmulo de Aarão. A perspectiva da cidade é esplêndida, uma visão da ribalta agitada e anunciando-se a norte a escarpa onde foram esculpidos alguns dos cenários mais brilhantes de Petra, os Túmulos Reais, e a sul a românica Avenida das Colunas, ladeada pelos vestígios de uma igreja cristã do século VI, relicário de esplêndidos mosaicos bizantinos.
Face à visão de um espaço urbano tão sofisticado, símbolo e produto de impressionantes cruzamentos culturais (que poderão ter contado com artistas e arquitectos idos de Alexandria e de Antioquia, ou mesmo da Grécia), o mistério guia a pergunta fundamental: que povo foi este que tão subitamente abandonou as suas derivas pelo deserto e construiu em região tão inóspita a sua admirável capital? Que deixou o legado de um alfabeto que se tornaria o embrião de uma das línguas mais faladas em todo o mundo, o árabe? A sua origem e o seu destino permanecem um enigma, assim como a celeridade com que passaram da condição de tribo nómada à de construtores de um pequeno império, que se estendia de Damasco à península do Sinai e ao território actualmente ocupado pela Arábia Saudita.
A ascensão do Jebel Haroun, a pé ou a bordo de um burrico, aventura proposta por alguns guias beduínos, é um dos percursos pedestres mais exigentes (e o mais facilmente conotado como off the beaten track), mas o turista enfastiado de multidões e a sonhar com andanças “alternativas” fará bem em ajuizar sobre o acerto do programa. Sendo o Jebel Haroun um lugar de peregrinação, há em Petra quem não veja com bons olhos tais excursões. E, na verdade, há possibilidade de inúmeras outras expedições pelos vales e montanhas próximos, com aliciantes paisagísticos e culturais de equivalente nomeada, como algumas aldeias beduínas ou a extraordinária obra de engenharia hidráulica constituída por canais, túneis, aquedutos e cisternas realizada pelos nabateus há dois mil anos num território já então com fraca pluviosidade e séria escassez de água.
A esmagadora maioria dos visitantes limita, naturalmente, as suas deambulações ao centro urbano de Petra, mas é espantoso o número de vestígios arquitectónicos do velho reino (muitos ainda por desenterrar) dispersos pelo Parque Arqueológico de Petra, uma ampla área que abrange vales, encostas e cimos montanhosos, e que conta, apesar de tudo, com uns quantos lugares solitários que raramente são contemplados com a curiosidade turística e se reservam aos andarilhos mais perseverantes.
Visões orientalistas
Uma outra “expedição”, mesmo se não aparta o caminheiro da torrente de visitantes, oferece também alguma exigência. Para vencer as veredas escarpadas que conduzem ao al-Deir — que tomam uma boa hora de caminhada — há quem se meta a negociar o aluguer de um jumento; será menos fatigante, quem duvida?, mas a dança dos cascos sobre o solo pedregoso e o lajeado irregular dos degraus é coisa de fazer torcer o nariz. Por seu próprio pé vai a maioria da gente, prudente, sem sobressaltos que quebrem a admiração da paisagem de ravinas.
A fachada do al-Deir, o “Mosteiro”, é uma das imagens das visões estereotipadas, e fortemente codificadas, do Orientalismo novecentista, saído das penas de Flaubert, Byron e Kipling, ou dos pincéis de Delacroix, Ingres e David Roberts (autor de uma bela e famosa pintura do al-Dair), entre tantos outros viajantes e artistas europeus cujo legado continua a escorar tanto preconceito contemporâneo. De um mirante vizinho do al-Deir (que foi túmulo de outro rei nabateu), alcança-se um panorama excelso sobre a cordilheira. Para noroeste, a sombra do rio Jordão e a sua atribulada margem ocidental; a oeste, o Neguev; a leste, adivinha-se o mar de areias ardentes do deserto da Arábia, de onde terão chegado os nabateus.
Apesar de alguns trechos da fachada acusarem sinais de irremediável erosão, o al-Deir respira uma certa juventude — digna de admiração, se pensarmos nos seus dois mil anos de vida. A degradação parece ser mais lenta aí do que nas construções esculpidas nos arenitos que lá em baixo, no vale, regressam lentamente à condição de poeira, juntamente com os deuses mais amados dos nabateus. Afinal, nem eles, os deuses, são eternos, nem a pedra poderá alcançar a idade do tempo, ou sequer a sua metade. Mesmo se a imaginação humana, pela voz do poeta inglês John William Burgon, se tenha lembrado de contemplar Petra com um hiperbólico epíteto: “A rose-red city half as old as Time”.
Os tesouros da margem oriental do rio Jordão
Apesar da localização da Jordânia numa das regiões mais instáveis do mundo, o turismo é uma das actividades que mais contribuem para a sua economia, registando-se cerca de oito milhões visitantes por ano, atraídos tanto pelo turismo cultural e religioso, como pelo ecoturismo. Se Petra é a principal razão da viagem, o país reúne um invejável património, de importância regional e universal.
A Jordânia faz parte, também, da Terra Santa. O rio Jordão está a dois passos de Amã e ao longo da fronteira com a Cisjordânia há uma série de lugares mencionados em narrativas bíblicas, assim como nos livros sagrados do judaísmo e do islão. O roteiro pode ser organizado a partir de Amã ou da cidade de Madaba, situada a uma vintena de quilómetros da capital. A meia hora de viagem a partir de Madaba está situado o Monte Nebo, de onde Moisés terá contemplado a “terra prometida”, segundo um relato bíblico; não muito longe fica o local do rio Jordão onde Jesus Cristo terá sido baptizado; um pouco mais a sul, estão as praias do Mar Morto.
Em Madaba conserva-se um magnífico acervo de painéis de mosaicos bizantinos, incluindo o que passa por ser o mapa mais antigo da região. A norte de Amã, a meio caminho da fronteira com a Síria, a cidade de Jerash merece uma atenção especial pelos vestígios bastante bem conservados de uma cidade romana de província. Memória das complicadas relações entre o cristianismo e o islão por volta do início do segundo milénio d.C., as fortalezas de Shobak e de Karak, no sudoeste jordano, lembram as vãs tentativas dos Cruzados de se apoderaram dos lugares santos do cristianismo.
Também a partir da capital jordana, e seguindo a estrada que liga às fronteiras do Iraque e da Arábia Saudita, há um percurso muito interessante, o dos chamados Castelos do Deserto. Trata-se de uma série de construções islâmicas datadas do século VII, com características variadas, possivelmente residência de emires e/ou instalações agrícolas de uma época em que a zona era fértil. Algumas são fortalezas, como a de Azraq (o Forte Azul de “Os sete pilares da sabedoria”), onde o tenente britânico T. E. Lawrence, que ficou conhecido por Lawrence da Arábia, estabeleceu o seu quartel-general durante a Revolta Árabe, em 1917/1918. A arquitectura destes edifícios, pelo seu carácter compósito, incorporando influências românicas, bizantinas, selêucidas e coptas, sublinha uma realidade frequentemente ignorada ou esquecida: não há culturas puras e impermeáveis, todas as culturas e civilizações humanas são construídas com contribuições muito diversas e estão, de uma forma ou de outra, em contacto contínuo entre si.
A Reserva Natural de Dana, vinte quilómetros a norte de Petra, tem vindo a tornar-se popular entre os amantes do trekking (percurso muito interessante é o que liga a Reserva à antiga capital dos Nabateus), mas é o deserto do Wadi Rum, vizinho da fronteira com a Arábia Saudita, a grande estrela do ecoturismo na Jordânia. A classificação da área como Património Mundial fundamentou-se tanto em valores naturais quanto na riqueza histórica e cultural. O ecossistema do Wadi Rum inclui fauna e flora muito específica (lobos, hienas, gazelas, pequenos mamíferos, répteis e insectos) e a paisagem é belíssima, combinando dunas, desfiladeiros, vales amplos e formações rochosas, muitas delas com bizarras formas modeladas pela erosão, que se erguem no meio de um mar de areia rubra. Os percursos pelo Parque Natural do Wadi Rum, organizados apenas por operadores autorizados (das três tribos beduínas que vivem na área) contemplam o património natural e paisagístico e, igualmente, dimensões culturais — como núcleos de gravuras rupestres, as ruínas de um templo nabateu e vários aspectos da vida das comunidades beduínas seminómadas.
A região está ligada também à Revolta Árabe. Foi a partir do Wadi Rum que T. E. Lawrence e os seus aliados árabes lançaram o assalto final sobre Aqaba, então sob domínio otomano. O deserto foi palco da rodagem de Lawrence da Arábia, o filme de David Lean que narra alguns dos principais episódios da revolta que levou ao fim do Império Otomano e ao início de um período de influência britânica que mudaria radicalmente o curso da História no Médio Oriente.
Por Humberto Lopes (texto e fotos)
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