À esquerda, tempo de rever a estratégia
As recentes declarações de António Costa (AC) sobre a dívida pública são um verdadeiro programa de governo: "Não nos distraiamos daquilo que é essencial e que está ao alcance da nossa mão, que é reforçar o investimento através dos recursos que estão disponíveis. É necessário naturalmente fazer o outro debate [sobre reestruturação da dívida] e é necessário que os consensos técnicos alargados se vão estabelecendo ao nível europeu, porque só uma solução ao nível europeu seria possível e admissível." ("Económico"/Lusa, 24 Outubro).
Imagino a decepção dos sectores da esquerda que fixaram como objectivo estratégico para o combate político a reestruturação da dívida, de certo contando com o apoio de AC. O que este lhes disse é claro: não contem com o PS para um braço de ferro com a UE. No PS já se faz contas a uma maioria absoluta, meta que tentará alcançar apresentando uma candidatura inclusiva, aberta a personalidades de diversos quadrantes políticos. AC traçou uma linha vermelha: "Só uma solução ao nível europeu seria possível e admissível." Portanto, a saída da crise em que estamos mergulhados não depende de nós e terá de ser encontrada no plano da UE, num processo negocial algo parecido com o das recentes negociações de Hollande e Renzi que conduziram ao reforço da austeridade nos respectivos orçamentos para 2015.
AC admitiu também que se chegará a um compromisso com a UE que, mesmo sem tocar na dívida, nos permitirá receber os recursos financeiros correspondentes a uma hipotética reestruturação. Tendo presente a agressividade do debate sobre os acertos de contas no orçamento da UE, é preciso ter muita fé para acreditar que os países do centro estão dispostos a contribuir com transferências para a periferia da zona euro, em montantes que dispensem a reestruturação das suas dívidas. Convém não esquecer que o tratamento dado a Portugal seria reivindicado pelos outros países devedores, e que tal acordo generoso teria de ser aprovado pelos parlamentos alemão, austríaco, finlandês e holandês. Não sei de onde veio esta ideia, mas uma coisa é certa: não passa de um sonho.
Aliás, a insistência de AC no potencial de crescimento associado aos fundos comunitários, os do QCA já negociado, é também reveladora de grande optimismo. De facto, a execução do QCA depende da candidatura de projectos de iniciativa privada ou pública. Ora o actual clima de depressão, em Portugal e na zona euro, criou problemas de liquidez que tolhem os promotores privados e geram expectativas pessimistas quanto ao futuro, a curto e a médio prazo. Daí um inevitável arranque lento na componente privada do QCA. Por outro lado, a necessidade de conter o défice dentro dos limites impostos pela CE conduz o investimento público a um nível insuficiente para, mesmo com elevada comparticipação comunitária, produzir efeitos significativos no crescimento económico. Ao contrário do que AC sugere, não há boa administração do QCA que substitua uma política orçamental keynesiana e uma política industrial, ambas proibidas na UE.
Este é o impasse em que nos encontramos: à espera de um milagre orçamental europeu, por bondade da Europa rica; à espera que o BCE salve o euro, imitando a Reserva Federal americana.
Pelo menos os economistas sabem, ou têm obrigação de saber, que mesmo uma política monetária agressiva como a que os EUA têm praticado já não chega para salvar a zona euro da deflação. Vem tarde e terá uma escala limitada porque não pode correr o risco de um veto do Tribunal Constitucional alemão. Por isso, a zona euro está condenada a passar por sucessivos colapsos-relâmpago nos mercados financeiros, como o da semana passada, até que chegue o colapso final. AC e seus assessores têm dado sinais de que não percebem isto e, portanto, acabarão por ir a reboque dos acontecimentos. Quanto às esquerdas, chegou o tempo da reformulação estratégica: a dívida não pode ser um refúgio para evitar reconhecer que o euro já não funciona e acabará um dia destes.
(O meu artigo no jornal i)
ladroesdebicicletas.blogspot.pt
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