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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A SENHORA GRACIA NASI - Beatriz de Luna, nome cristão de Grácia Nasi, pertence a uma família originária de Castela que, após o decreto de Expulsão dos Judeus de Espanha em 1492[1], procurou, em Portugal, abrigo para a prática da sua religião, das suas tradições e festas. Abrigo para viver!

A Senhora

Grácia Nasi 

Retrato de Gracia Nasi pintado por Cynthia Von Buhler



Uma abundante literatura permite-nos trazer de volta, envolta em seu mistério, esta Senhora do séc. XVI português.


 Nascida em Lisboa, no ano de 1510, veio a morrer em Istambul em 1569.


    Beatriz de Luna, nome cristão de Grácia Nasi, pertence a uma família originária de Castela que, após o decreto de Expulsão dos Judeus de Espanha em 1492[1], procurou, em Portugal, abrigo para a prática da sua religião, das suas tradições e festas. Abrigo para viver!

    No ano de 1510, data do seu nascimento, já não existem Judeus em Portugal. Chamam-nos agora de Cristãos-Novos. Convertidos no seu coração e na sua vontade, ou feitos Cristãos por aqueles de quem é o poder. Assim se distinguindo daqueles que sempre o haviam sido, os Cristãos-Velhos. Só muito mais tarde, o Marquês de Pombal virá a abolir esta distinção[2]. Da conversão forçada, fala Garcia Resende:


" Os Judeus vi cá tornados

todos num tempo cristãos..." [3]


    Com o nome de Beatriz de Luna, Grácia Nasi casa com Francisco Mendes, natural de Sória, também em Castela, filho da ilustre família Benveniste, chegada a Portugal em 1492. Semeah Benveniste é o seu nome hebraico. Em Lisboa, conhecem-no por Francisco Mendes "o grande marrano". O poderoso comerciante de pedras preciosas e de especiarias. O banqueiro. "Assim à data do seu casamento, Francisco e seu irmão Diogo, que entretanto se estabelecera em Antuérpia, já haviam construído um império que detinha a primazia do comércio em toda a Europa" [4]



Imagens do mundo da Dona Gracia Nasi. De cima: seu médico, Amatus Lusitanus; sua residência em Ferrara, medalha retrato de sua sobrinha; o novo vinho branco Dona Gracia; uma carta anunciando a sua morte (cortesia do Univesity of Zagreb); mapa de sua viagem; sentado com o sobrinho em seu ombro, em Veneza.


Casada aos 18 anos, viúva aos 25, Grácia vê-se pela morte do marido (1535) investida na função de gestora e responsável pelo mundo dos negócios e da finança que compartilha com o seu cunhado, Diogo Mendes, estabelecido em Antuérpia em 1512.

Sem medo, Grácia Mendes organiza os seus negócios e a sua fuga.


A Inquisição tinha sido introduzida em Portugal depois da morte do seu marido, em 1536, pela vontade de D. João III e decisão do Vaticano[2].

Num barco inglês fretado pelo seu cunhado, parte em 1537, deixando Lisboa, levando consigo sua filha Reyna, sua irmã Brianda e dois sobrinhos Bernardo e João Micas, filhos do seu irmão Agostinho Micas, médico da corte, já falecido.


Rumam e desembarcam em Inglaterra onde Grácia se inteira da rede de fuga dos Marranos e onde reafirma a vontade de continuar a obra de proteção iniciada por seu marido. Chega a Antuérpia em 1537.

De parceria com seu cunhado, dirige os negócios e as finanças da sua Casa Comercial e Bancária.

A família parece enraizar-se na Flandres. Brianda Nasi, a irmã de Grácia, casa com Diogo Mendes na catedral de Notre Dame, em Antuérpia, seguindo a tradição – tão frequente entre os Judeus – dos casamentos endogâmicos. Assim preservam a religião, os ritos, a família e o património.

Mas o perigo tece uma teia à volta da família Nasi-Benveniste. À volta da Casa Mendes.
O dote de Reyna, filha de Grácia e de Francisco, faz fervilhar a ambição de muitos que sendo poderosos não são Judeus. A partida de Antuérpia urge. Parte em 1545. Veneza é a cidade escolhida. Lá, onde os Judeus podem assumir a sua pertença religiosa, Grácia prefere continuar a assumir o cristianismo de fachada, guardando o Shabbat dentro das paredes de sua casa. Não habita o ghetto mas escolhe o centro da cidade, o Rialto, zona de comerciantes, viagens e negócios onde fácil é acolher e esconder os Marranos.

Surgem desentendimentos familiares com sua irmã, originados pela gestão do grande empório comercial que possuem, e que, agora por vontade expressa em testamento de Diogo Mendes, Grácia gere sozinha. Numa tentativa de afastar a irmã, Brianda acusa-a de judaizar e Grácia é presa.


Selo comemorativo

Destaca-se então como figura da maior importância dentro da família, João Micas, que se afirma como verdadeiro sucessor de Diogo Mendes, após a morte deste, em 1543, na gestão da Casa Mendes, como braço direito da tia.

É graças às suas estratégias que as duas irmãs são libertadas das masmorras venezianas. Brianda, a denunciante, tinha sido ela própria acusada do mesmo crime por um dos seus agentes que declarou que “também ela judaizava em segredo"[6] e encarcerada.

Uma vez mais Grácia parte. Um outro caminho se abre... Ferrara.

Já em 1538, um ano após a sua chegada a Antuérpia, Hércules II, Duque de Este, lhe havia feito o convite para viver nos seus domínios. Convite agora aceite, no ano de 1549.

Importante nos negócios, na finança, na ajuda solidária, é agora em Ferrara que Grácia Nasi se torna uma figura de vulto no mecenato.




O afeto que a une a Benvenida Abravanel, filha de Samuel Abravanel e sobrinha de Isaac Abravanel, não terá sido estranho a esta nova dimensão da sua vida.



Empenha-se na publicação de obras entre as quais avultam a “Bíblia de Ferrara” e “Consolação às Tribulações de Israel”.


Publicada em Ferrara, em 1533, por dois judeus sefarditas da primeira geração de convertidos – o “espanhol” Jerónimo de Vargas e o português Duarte Pinel, respetivamente Yob Tob Atias e Abraão Usque – a famosa Bíblia de Ferrara apresenta duas versões: uma destinada aos Cristãos, outra aos Judeus. A versão hebraica traz a data de 14 de Adar de 1513. É dedicada " À muito ilustríssima Dama, Dona Grácia Nasi", pelos seus autores.
Bíblia de Ferrara
Foto de Eva Amado Bacelar



A outra publicação tem a assinatura de Samuel Usque: a " Consolação às Tribulações de Israel", impressa na mesma cidade, em 1533, é também ela dedicada à " ilustríssima Senhora Dona Grácia Nas, coração da nação portuguesa...para vos testemunhar a minha gratidão pelos numerosos favores que recebi da vossa mão." Mas não é ainda em Ferrara que param os caminhos desta Senhora do Renascimento. Portuguesa e Judia.



Consolação às Tribulações de Israel

Istambul...

Talvez Francisco Mendes com o aproximar dos tempos que em 1536 trouxeram a Inquisição para Portugal, tivesse concebido o plano de partir para essa cidade, capital do Império Otomano.



O sultão Bejazet II (1492-1512) convidava todos os Judeus Sefarditas [7] a estabelecerem--se em suas terras. São lhe atribuídas as palavras: “Pode considerar-se sábio e inteligente um tal soberano D. Fernando que empobrece o seu país e enriquece o meu?"

O sultão Bejazet II



Parte em 1522. Deixa atrás de si a Europa dos negócios, da alta finança que tão bem conhece. É recebida em Istambul por tantos a quem o seu dinheiro, aliado ao poder de iniciativa, ao sentido de responsabilidade, à firmeza de decisão, tinham permitido deixar o país que para eles não tinha lugar.

Em Istanbul volta declaradamente ao Judaísmo. Retoma, publicamente, o seu nome. Grácia. Grácia Nasi. Aí vive 16 anos de 1553 a 1569, data da sua morte. Anos, enfim, de ser e mostrar quem é.




 Mais tarde, em 1554, chegam a Istambul Bernardo e João Micas, agora Samuel e Joseph Nasi. Através deste último, que rapidamente se torna figura proeminente do Império, amigo pessoal de Solimão II, o Magnífico, e de seu sucessor Selim II, de quem recebe o título de Duque de Naxos, a família conhece a cultura, o fausto, e também as intrigas, da cidade e do Império.

Gravura de Gracia e Joseph Nasi




Novos casamentos ocorrem na família, dentro dos ritos próprios do Judaísmo: Reyna casa com Joseph e Grácia a Jovem com Samuel.

Grácia Nasi morre em 1569 com 59 anos em Istambul. Com Tiberíades no coração. Essa cidade onde Grácia e Joseph tinham sonhado um espaço onde se pudessem fixar os Judeus que de outras terras tivessem sido expulsos.



Tal ambição não veio a concretizar-se, destruindo à esperança que os animava no ano de 1560, depois de haverem negociado e obtido do sultão Solimão I a concessão dessa cidade santa da Galileia.

O sultão Solimão I



Grácia Nasi, a Senhora que nos convida a melhor a estudarmos, para melhor a conhecermos a si e à sua época. A Mulher que suscita em nós muitas perguntas. Poucos dados dela temos. Nascimento e morte. A viagem entre 1510 e 1569 que foi a sua vida. Dos sentimentos da menina nascida em Lisboa, da adolescente, da mulher, não sabemos muito. Conhecemos o seu grande sentido da responsabilidade e da solidariedade. O seu incansável dinamismo. A coragem de decisão. A firmeza.

Nas palavras de Samuel Usque, "era a mão estendida que resgata os cansados. Alimenta os famintos. A fonte de coragem e do estímulo para os pobres e enfraquecidos”.


Biblioteca Geral relativa à mostra sobre Grácia Nasi 1510-1569 
e outros judeus portugueses



Em cada um de nós, Grácia Nasi, escreve a sua própria vida. Em cada leitura que dela fazemos. Em cada sala do seu museu, em Tiberíades, que visitamos... Em cada vez que nela pensamos.



Homenagem a Dona Grácia Nasi em Tiberíades 


[1] Decreto de Alhambra. Decreto régio promulgado pelos Reis Católicos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, em 31 de Maio de 1492,em Alhambra, Granada.
[2] Lei de 25 de Maio de 1773
[3] Resende, Garcia, Miscelânea, 1554
[4] Mucznik, Esther, Grácia Nasi, A Judia Portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, Esfera dos Livros,2010
[5]Bula Cum ad nihil magis, publicada em Évora em 22 de Outubro de 1536.
[6]Birnbaum, Marianna, A longa viagem de Grácia Mendes, Lisboa, Edições 70, 2005

[7]Judeus originários da Península Ibérica.

Este artigo foi elaborado e uma cortesia de,
 Dora Caeiro
A quem agradeço o carinho desta partilha. J

Bibliografia consultada:

AZEVEDO, J. Lúcio, História dos Cristãos Novos Portugueses, Lisboa, Clássica Editora, 3ª Edição, 1989.
BIRNBAUM, Marianna, A longa viagem de Gracia Mendes, Lisboa, Edições 70, 2005
BROOKS, André Aelion, The  Woman Who Defied Kings: the life and times of Doña Garcia Nasi.  A Jewish leader during the Rennaissance, St. Paul, Minnesota, Paragon House, 2002.
CLÉMENT, Catherine, A Senhora, Porto, Edições Asa, 1994.
Mercadores e Gente de Trato in Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses, Lisboa, Campo da     Comunicação,2010
Dicionário do Judaísmo Português, Lisboa, Editorial Presença, 2009
FERNAND–HALFEN, Alice, Gracia Mendesia-Nasi, Une Grande Dame Juive de la Rennaissance, Paris 1929.
FERRI, Edgarda, Gracia Nasi, a Judia, Lisboa, Quetzal Editores, 2002
KAYSERLING, Mayer, História dos Judeus em Portugal, São Paulo, Editora Perspectiva S. A, 2009
MARCOCCI, Giuseppe, História da Inquisição Portuguesa desde 1536-1821, Lisboa, A esfera dos Livros, 2013
MARTINS, Oliveira, História de Portugal (Tomo II), Lisboa, Livraria, Bertrand, 1882
MUCZNIK, Esther, Grácia Nasi, A Judia Portuguesa do séc. XVI que desafiou o seu próprio destino, Lisboa , A Esfera dos Livros, 2010
PAMUK, Orhan, Istanbul, Memórias de Uma Cidade, Lisboa, Editorial Presença, 2008
RAGEN, Naomi, O Fantasma de Hannah Mendes (Romance Histórico), Lisboa, Replicação, 2005
REMÉDIOS, J. Mendes dos, Os Judeus de Portugal, Volumes I e II, Edição Fac-Simile,  Lisboa, Alcalá             2005
RESENDE, Garcia de, Miscellnea, Évora, 1554
 SARAIVA, António José, Inquisição e Cristãos Novos, Lisboa, Estampa, 1985.
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro, Judaísmo e Inquisição, Lisboa, Editorial Presença, 1987
WILKE, Carsten L., História dos Judeus Portugueses, Lisboa, Edições 70, 2009

Imagens:
zivabdavid.blogspot.pt

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