OPINIÃO
Passos foi à ópera e caiu no fosso da orquestra
Numa coisa é preciso tirar o chapéu a Passos Coelho: a sua primeira promessa eleitoral é cortar salários.
São 10h00 da manhã. Passos Coelho anuncia que em 2016 os funcionários públicos vão receber a totalidade do salário, porque assim determinou o Tribunal Constitucional. Duas horas mais tarde, são 12h00, e o mesmo Passos Coelho anuncia que afinal em 2016, se for reeleito, os funcionários públicos já não vão receber a totalidade do salário. O que vale é que Passos não voltou a falar às 14h00, senão ainda deixava os trabalhadores do Estado sem um cêntimo.O que fez Passos Coelho mudar de ideias entre as 10h00 e as 12h00? Teimosia. Apesar de o Tribunal Constitucional ter chumbado a possibilidade de mais cortes salariais depois de 2015, o primeiro-ministro diz que voltará a apresentar a mesma proposta, caso seja reeleito. Einstein já dizia que a insanidade é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar que o resultado seja diferente. E Passos Coelho continua a apresentar sempre as mesmas leis que são sistematicamente chumbadas pelos juízes por violarem a Constituição.
Passos Coelho faz lembrar aquela velha história de Needleman contada por Woody Allen. Conta Woody que Needleman foi à ópera em Milão e, para ver melhor, inclinou-se sobre o parapeito do camarote, escorregou e caiu desamparado lá para baixo, para dentro do fosso da orquestra. Para não dar parte de fraco e evitar o ridículo, Needleman, que era muito orgulhoso e teimoso, passou a frequentar a ópera todas as noites e, de cada vez que lá ia, atirava-se para dentro do fosso de orquestra. Passos Coelho vai ao Tribunal Constitucional assim como Needleman vai à ópera. E de cada vez que lá vai recebe um chumbo. Mas isso não o inibe de lá voltar. E já são duas mãos cheias de chumbos em apenas três anos de governação.
Ao insistir em apresentar uma norma que já foi considerada inconstitucional, Passos Coelho está claramente a afrontar o Tribunal Constitucional. E nem sequer foi uma norma que chumbou resvés; foram dez dos 13 juízes que obrigaram o Governo a repor a totalidade dos salários na função pública a partir de 2016.
É importante nesta altura revisitar os argumentos que levaram os juízes a chumbar a norma, invocando o princípio da igualdade. O tribunal até aceitou cortes em 2015 com o seguinte argumento: “A pendência de um procedimento excessivo, que se segue a um período de assistência financeira, ainda configura um quadro especialmente exigente, de excepcionalidade, capaz de subtrair a imposição de reduções remuneratórias à censura do princípio da igualdade." Mas, como em 2016 “vai acabar o procedimento por défice excessivo”, os juízes consideraram então não haver uma justificação para perpetuar os cortes até 2018 como queria (e pelos visto ainda quer) o Governo.
Ao dizer que pretende manter os cortes para além de 2015, Passos Coelho está a dizer que não acredita que o défice ficará abaixo dos 3% e que Portugal abandonará o procedimento dos défices excessivos. Caso contrário, não terá nenhum argumento juridicamente válido para convencer os juízes do Tribunal Constitucional a dar o dito por não dito e a aprovar em 2015 uma norma chumbada em 2014. E, mesmo que o défice fique abaixo ou acima dos 3%, não se percebe a tentativa de insistir numa medida temporária que nada tem de estrutural. Tirem mas é da gaveta a reforma do Estado e deixem em paz os funcionários públicos, que já pagaram o que tinham a pagar para ajudar a equilibrar as contas públicas.
Numa coisa é preciso tirar o chapéu ao primeiro-ministro. Nunca tinha ouvido e visto um primeiro-ministro partir para uma pré-campanha e fazer do corte de salários a sua primeira promessa eleitoral. Uns dirão que é teimoso, outros dirão que é coerente. Eu diria que é coerente e que se está a deixar levar pela teimosia.
O CDS e o PSD, foi notório, foram apanhados desprevenidos. E terão começado a pensar que, quando Passos Coelho disse “que se lixem as eleições”, queria mesmo dizer “que se lixem as eleições”. Terão pensado que aquilo que Passos Coelho fez ontem foi literalmente colocar numa bandeja 500 mil votos dos funcionários públicos e entregá-los ao PS de António Costa. E sem que o PS mexesse uma palha. O vazio de ideias do Partido Socialista no debate de ontem do Orçamento do Estado foi confrangedor. E foi penoso ver Vieira da Silva ou Ferro Rodrigues a criticarem os cortes de salários na função pública que, por alguma razão de que os próprios não se lembrarão, ficaram conhecidos como os "cortes de Sócrates". Os cortes que Passos quer prolongar até 2018 são os cortes que José Sócrates inventou em 2010.
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