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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Facturas, sortes e vergonhas Na popular discussão sobre a Factura da Sorte estou entre o grupo de portugueses que considera manifestamente exageradas as reacções de desdém e de "repugnância" que se ouviram nas últimas semanas. É certo que, para um Governo que quer transformar a austeridade numa "nova ética da existência", expressão ontem aqui usada pelo Fernando Sobral, lançar um sorteio que incita ao consumo é uma contradição.

ELISABETE MIRANDA

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Facturas, sortes
 e vergonhas

Na popular discussão sobre a Factura da Sorte estou entre o grupo de portugueses que considera manifestamente exageradas as reacções de desdém e de "repugnância" que se ouviram nas últimas semanas. É certo que, para um Governo que quer transformar a austeridade numa "nova ética da existência", expressão ontem aqui usada pelo Fernando Sobral, lançar um sorteio que incita ao consumo é uma contradição. Também não será menos verdade que, numa sociedade depauperada, empurrada para o limiar da subsistência, acenar com carros de luxo roça a insensibilidade social e dá um certo toque terceiro-mundista. Mas, em tempos de governação pragmática, o que não faltam por aí são incoerências políticas e exemplos de vexatórios retrocessos civilizacionais. 

Ainda esta semana soubemos que, ao mesmo tempo que assiste à sangria de uma geração jovem e qualificada para o exterior o Governo está ocupado em criar programas que atraiam e facilitem a obtenção de residência a … "talentos" estrangeiros. Nesta mesma linha, e enquanto sujeita os portugueses a um esforço sem precedentes no IRS e no IMI, o Estado continua a conceder generosos descontos fiscais a quem se registe como residente em Portugal, ao abrigo de um sintomaticamente baptizado "regime especial para cérebros". Artistas, investigadores, trabalhadores, reformados: ser estrangeiro ou ter por lá passado é sinónimo de uma inteligência superlativa e merece-nos todas as deferências e especiais recompensas. Se não é terceiro-mundista, é o quê?

Nos últimos dias ficámos também a saber que, numa altura em que o País atravessa uma das piores crises económicas da sua história moderna o número de prestações sociais está em queda livre, deixando milhares de famílias desamparadas. À força da repetição de uma mensagem retrógrada e perigosa – de que é preciso guardar o dinheiro para quem realmente precisa - os desempregados estão a ser transformados em mandriões e os pobres equiparados a perigosos caçadores de apoios públicos. Se não é obscurantista, o que é?

E o que dizer de um País que continua a fazer depender a sua competitividade externa da manutenção de salários miseráveis de 431 euros líquidos, e que, em vez de aspirar aos melhores exemplos europeus em matéria de organização do tempo do trabalho, coloca as férias e os feriados no topo das causas da improdutividade da economia?

E de um Governo que, para abrir caminho à aceitação social de medidas de redução da despesa pública não arranja melhor método do que incitar a inveja entre novos e velhos, trabalhadores e reformados, função pública e sector privado da economia?

Ou como classificar sucessivos governantes que, como comprovava um estudo divulgado esta semana, usaram sistematicamente a administração pública para colocar "indivíduos com redes de conhecimento que podem ser relevantes para o partido"? Ou de alegados paladinos da transparência que exercem o poder e gerem a informação pública como se de coutadas privadas se tratassem?

Em Portugal abundam os exemplos de práticas de Terceiro Mundo e a intenção de substituir a obrigação cívica e legal de pedir facturas por um sorteio semanal pode ser mais uma. Mas, anacronismo por anacronismo, eu cá prefiro aqueles que nos beliscam a honra, mas ainda nos deixam alguma coisinha no bolso.

*Jornalista

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
14/02/14


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