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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O Bacalhau na Alimentação e Cultura do Povo Português - Mesmo até no campo da medicina o bacalhau não escapou, pois o bem conhecido óleo de fígado de bacalhau rico em Vitamina A e D foi durante muito tempo apregoado como uma “panaceia universal” para toda a espécie de problemas de saúde. A Histórica "Emulsão de Scott" foi uma das mais famosas marcas de óleo de fígado de bacalhau.

O Bacalhau na Alimentação e Cultura do Povo Português


 Mesmo até no campo da medicina o bacalhau não escapou, pois o bem conhecido óleo de fígado de bacalhau rico em Vitamina A e D foi durante muito tempo apregoado como uma “panaceia universal” para toda a espécie de problemas de saúde. A Histórica "Emulsão de Scott" foi uma das mais famosas marcas de óleo de fígado de bacalhau.





Segundo um estudo efectuado por Jorge Bebiano em 1958, pode-se afirmar que o consumo do bacalhau em Portugal, no que se refere à quantidade não era uniforme por todo o país, sendo um produto de pouco significado nas áreas mais pobres.

Parece que o bacalhau era um produto essencialmente consumido nesta época pelos citadinos e pelo proletariado industrial, enquanto que a população rural adoptava este alimento de forma pouco significativa do ponto de vista da quantidade.

Paradoxalmente, formou-se entre os portugueses um autêntico dicionário de culinária referente ao bacalhau, que não tem igual na história da gastronomia nacional. Se perguntarmos a qualquer dona de casa como preparar este peixe a resposta cairá provavelmente em meia dúzia de receitas como “Bacalhau à Braz”, à “Gomes de Sá”,“Pastéis de Bacalhau”, cozido com legumes, assado ou arroz de bacalhau. No entanto, nas revistas, livros e secções de culinária dos jornais, aparecem sempre centenas de receitas que nunca ninguém come e de que nunca ninguém ouviu falar. Alguns exemplos destas receitas que são autênticas obras da imaginação são o “Bacalhau com Trufas”, o “Bacalhau à Russa” e o “Bacalhau à Maitre D’Hotel com Mariscos”.[1] O facto é que a multiplicação das receitas imaginárias é um fenómeno cuja compreensão nos escapa.




Outro fenómeno difícil de compreender é a forma como a existência e o preço do bacalhau eram tratados na imprensa diária. Se folhearmos revistas e jornais publicados nas décadas de 1950 e 1960, pode-se comprovar com facilidade que durante todo este período apareciam regularmente notícias que focavam a falta deste produto no mercado. O que não se compreende é porque nunca foi dada tanta importância a outros bens alimentares tão ou mais importantes que o bacalhau do ponto de vista nutricional e que muitas vezes também faltavam no mercado, tal é o caso do leite e até mesmo da carne que muitos em Portugal nesta época comiam apenas uma vez por semana.

A distribuição do bacalhau era apresentada com títulos eufóricos e a sua existência ou não no mercado tornou-se um tema de debate que todos os jornais faziam questão de referir. Intimamente ligados ao consumo, encontravam-se também comentários a fazer referência ao preço do bacalhau. Normalmente estas notícias eram dadas em tom humorístico, sob a forma de versos, desenhos ou comentários sarcásticos. Porém, também é possível encontrar um grande número de notícias que tratam o problema do preço e da disponibilidade do bacalhau no mercado de forma séria com análises bastante fundamentadas em alguns casos.[2]




A vida do português, assim como a sua cultura, estão influenciadas pelo uso e abuso que dá ao bacalhau. Esteja onde estiver, o português refere o bacalhau como algo que o liga às suas origens, à terra dos seus antepassados ou a certos e determinados momentos familiares e de confraternização.

Mesmo até no campo da medicina o bacalhau não escapou, pois o bem conhecido óleo de fígado de bacalhau rico em Vitamina A e D foi durante muito tempo apregoado como uma “panaceia universal” para toda a espécie de problemas de saúde, sendo administrado às crianças como um suplemento alimentar até à década de 1980, quando começou a cair em desuso. Uma das mais famosas marcas de óleo de fígado de bacalhau foi a Histórica Emulsão de Scott que prometia curar toda uma série de afecções de saúde. No entanto, nos países nórdicos o óleo de fígado de bacalhau ainda é largamente utilizado como suplemento alimentar.

O bacalhau começou por ser um alimento desprezível destinado apenas aos excluídos, escravos e marginais, porém, o tempo e a história ditaram que o bacalhau acabaria por se transformar numa iguaria apreciada por artistas e literatos de todos os quadrantes que desde o século XIX fazem referências ao mesmo. Estão entre estes o bem conhecido Eça de Queirós e Aquilino Ribeiro.

A cultura portuguesa, principalmente a cultura popular, reflecte o conhecimento e a generalização do bacalhau na sociedade.

A religião e a política instrumentalizaram o bacalhau ao máximo, tentando tirar vantagens deste alimento peculiar. No caso da religião, esta ligou o consumo do bacalhau ao ciclo das festividades e à pesca, sobretudo aos pescadores, aos sortilégios das incertezas das viagens e aos milagres por boas pescarias. A religião utilizou ainda o bacalhau como um donativo a ser distribuído às portas dos conventos e nas sacristias, nas épocas festivas do calendário litúrgico.

Por sua vez, a política utilizou o bacalhau nos demagógicos discursos e comícios de “bacalhau a pataco” para criar climas favoráveis a golpes e contragolpes, fossem durante o período monárquico ou já na república. As políticas de importação, as regras de comercialização, os níveis de preço e a demais legislação histórica existente sobre o bacalhau foram, muitas vezes, utilizadas com objectivos de política interesseira.[3]

Durante muito tempo, não apenas em Portugal, mas em todo o mundo Ibérico, a abstinência às sextas-feiras era geral e por isso o alimento alternativo era o bacalhau. Este excesso de zelo religioso era visto com estranheza por estrangeiros, mesmo até pelos católicos estrangeiros que visitaram Portugal e Espanha durante o século XVIII. No entanto, para os Ingleses, este zelo religioso representava uma excelente oportunidade de fazer negócio vendendo bacalhau a Portugal e pode-se por isso dizer que há aqui um paradoxo, pois, de certa forma o zelo religioso dos católicos Portugueses e Espanhóis alimentava as bolsas de um país protestante como era a Inglaterra.[4]

Sem considerar todas as feiras e romarias onde o bacalhau era normalmente consumido assado nas brasas, a par da gorda sardinha, temos o Ano Novo, os Reis Magos, o Carnaval, a Quaresma e Semana Santa, as Maias, o Corpo de Deus, os Santos Populares, o Dia de Todos-os-Santos e o dos Fiés Defuntos e, por fim, o Natal. Claro que existiam ainda muitas outras festas religiosas e cívicas celebradas um pouco por todo o país, especialmente no Verão, mas julgo ter enumerado as suficientes para que se possa ter uma ideia do tamanho do papel do bacalhau na cultura popular e religiosa portuguesa e a utilização que foi dada ao mesmo. 

O bacalhau surgiu sempre nos ciclos festivos religiosos, como um alimento de recurso dos pobres. Levou bastante tempo para que o bacalhau pudesse ser considerado um prato digno de um rei. Aliás, o médico de D. João V considerava que o bacalhau gerava “humores melancólicos e mal depurados das suas partes excrementícias”.[5]

São ainda muitos os costumes e tradições que sobrevivem por todo o país e nestas o bacalhau tem quase sempre um lugar de honra e destaque, não apenas à mesa, mas nas usanças que de uma maneira ou de outra teimam em considerar o bacalhau como sendo o “fiel amigo”.[6]

Aos domingos era tradição comer um almoço de bacalhau. Comia-se das mais variadas maneiras: ora à “Gomes de Sá”, ora guisado, ora “à Bráz”, ora assado com muito alhinho no azeite quente, ora em arroz, ora pataniscas, ora no forno. No entanto, o grande prato, aquele que merecia mesmo honras de festa era o bacalhau cozido.[7]

As anedotas sobre o bacalhau, com todas as possíveis analogias e subentendidos de significação duvidosa ou as insinuações maldosas a respeito das suas características – cheiro, sabor, composição, etc… - foram e são frequentes no anedotário português.

Basta-nos folhear algumas revistas, jornais, magazines ilustrados e outro tipo de publicações para que se possa encontrar com relativa facilidade anedotas e textos curtos humorísticos em que o “fiel amigo”é envolvido, quer como um protagonista, quer como um parceiro secundário.

A presença do bacalhau nas anedotas é tão profusa que a caricatura não o pode deixar de utilizar, mais numas épocas do que noutras, como um motivo de crítica humorística.

A passagem da anedota oral ou escrita à caricatura foi logo apropriada pela “imprensa de humor” quando esta se generalizou, sobretudo a partir de meados do século passado. O facto de o bacalhau ser um produto de uso popular, conhecido e desejado por uma grande parte da população, transformou-o num objecto e motivo de humor, sobretudo a nível urbano.

As representações que o bacalhau assume são tão diversas que a sua inventariação total se torna impossível de fazer, mas a verdade é que o bacalhau é facilmente reconhecível porque as suas imagens têm uma total identificação com o espécime real.[8]

Determinadas publicações como o “António Maria”, de Rafael Bordalo Pinheiro, o “Papagaio Real” ou a “Paródia”, na monarquia ou no regímen republicano; ou o “Sempre Fixe” e “Os Ridículos”, nas décadas de 1920 e 1930 são exemplos da importância e do lugar que o bacalhau ocupa no anedotário e na caricatura portuguesa.[9]


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