Andanças para a Liberdade é uma autobiografia de Camilo Mortágua, contada como uma história de vida, sobre a vida exemplar de um resistente, contra a ditadura. É a história de um homem simples e simultaneamente a história de um filósofo cuja sabedoria popular o torna um precioso livro de ensino.
Andanças para a Liberdade I
É a memória de um resistente antifascista, saído do povo rural deste país, que foi caixeiro, padeiro, agricultor, camponês e aventureiro revolucionário.
Neste primeiro volume, Camilo narra-nos a sua história de vida desde o “Camilinho come e cala”, nascido em terras de Estarreja até à aventurosa experiência revolucionária do assalto ao navio Santa Maria, em 21 de Janeiro de 1961.
Aguardamos com a maior expectativa o segundo volume, no prelo, que nos relatará a aventura de Camilo Mortágua nos anos de luta antifascista até à revolução de Abril.
O 1º volume das Andanças é uma prodigiosa narração de um contista nato onde a oralidade do discurso surpreende pela profundidade, nos faz rir sem deixar de reflectir, nos entusiasma e comove em permanente olhar novo.´
É que Camilo Mortágua usa uma narrativa construída em discurso plural, com níveis diferenciados mas interligados, da sua consciência feita de “personas” desiguais. O distanciamento reflexivo, o desassossego e a vontade de viver dão à sua vida uma frescura poética, um encantamento permanente na procura da pilotagem constante de autodesenvolvimento feito de permanente exame de consciência a que ele chama o colectivo de auto-análise comportamental, CAAC. Trata-se aqui duma ironia subtil com que resolveu, heteronimicamente, o olhar polivalente, filosofando diante da vida entre contradições múltiplas, destino feito de necessidades e sempre com liberdade de escolhas. Este livro tem uma escrita original, lírica e por vezes hilariante que nos ajuda a percebermo-nos a nós próprios com ironia, distanciamento e humor.
Esta metodologia faz parte do universo específico das chamadas literaturas de formação mas que aqui, sem pretensões ideológicas e excessivamente didácticas, percorre o fio da vida na espontaneidade e sorriso permanente do autor. A vida, assim, é uma vida vivida sempre prenhe de futuro, coada pelas três principais personagens que constituem a sua personalidade forte e coerente.
O “come e cala” é a criança que se plasma na vida imposta pela envolvente social, O “batata” é a “persona” que cria dispositivos de acomodação. E o Zé Ninguém, composto por complexidades e mútua reflexão permanente entre o Pé Ligeiro, o Zé e o Camilo Mortágua.
Esta é a metodologia simplificada que se revela na procura de auto-aprendizagem, no “ver” para além das aparências, no ressentir “dentro e fora” a realidade que vai surgindo, envolvida em sensações emoções e intuições.
A história da sua infância é feita de encantamentos poéticos em que o “camilinho” vai usufruindo o aconchego dos brancos panos de linho que o acomodam na canastra de pão em que sua mãe transporta os pão das padarias de Ul, levando à cabeça, a caminho de S. João, a caminho de Macinhata, da Feira ou de Arrifana.
Depois das andanças várias da sua vida, o “come e cala” vai crescendo tornando-se também no “batata” ao longo da vida complexa que vai vivendo. Aprende o valor da vida por entre as terras baixas, irrigadas e drenadas pelos canais dos ribeiros e rios desde Antuã ao Vouga.
Percurso dos grãos que vêm dos celeiros até aos moinhos de água. Os esteiros, os barcos com decorações multicolores e os moliceiros dão à paisagem de “águas largas”, a inesquecível marca de aventuras... A escola decorria ligada à vida das fainas. Fainas do campo e do mar nas redondezas. Terras de Estarreja a Murtosa, de Salver até Avanca.
Apanham-se búzios de pescadores moliceiros, comem-se enguias de caldeirada.
No capítulo II, Mortágua continua com a escrita de aprendizagens: o distanciamento no acompanhamento de si próprio na 3ª pessoa vai aprofundando a reflecção adolescente. E a doença assim como a relação com os amigos vão-lhe maturando a consciência. Assim, o Senhor Constantino, que nunca falava de si, trazia-lhe perguntas que lhe alargavam a consciência. O Sr. Constantino trazia também, todos os dias, um livro ou uma revista da sua biblioteca particular. Eram romances anticlericais, obras de pendor libertário pois este homem passara anos no Tarrafal e por isso faziam dele, agora, a referência dos seus anos de aprendizagem.
Camilo Mortágua
No capítulo III, o Adeus a Portugal, conta-nos a aventura em Maio de 1951, navegando em direcção à Venezuela. Tinha agora quase 18 anos. ”Já a cabeça voltava a levantar para olhar longe... eu havia de ser capaz.”
No capítulo seguinte Mortágua conhece a emigração. Confronta-se com gente diferente. Experimenta profissões várias e empreende novas viagens... Descreve o percurso de lambreta pela América do Sul. Faz lembrar a aventura de Che Guevara, não fora o propósito de representar, numa campanha de promoção publicitária, uma firma que vendia lambretas! A fábrica italiana apoia financeiramente o itinerário de Caracas ao Rio de Janeiro... O folclórico itinerário, cheio de percalços rocambolescos, passaria por um evento apenas picaresco não fora porém o aprender a aprender da viagem. Deu para ver com olhos de ver a realidade social da América Latina. Deu para desenvolver o desenrascanço do "Zé Ninguém" Mortágua face às atribuladas andanças daquele percurso.
O “Zé-ninguém”, na sua “auto-análise comportamental” no período negro do ditador Perez Giménez da Venezuela, leva-o ao conhecimento da comunidade portuguesa Echos de Portugal. Existem, nesta associação, várias iniciativas sociais e culturais dos portugueses da Venezuela. Conhece então Daniel Morais, antigo membro da MUD (Movimento Unidade Democrática). Era um democrata de firmes convicções. Por isso o ajuda a consolidar princípios éticos e políticos. Alerta-o para a “necessidade de pensarmos pela nossa própria cabeça e relativizarmos sempre os dogmas estabelecidos, a coerência entre o discurso e a prática, o amor à liberdade sobre todas as coisas e a disponibilidade para a solidariedade universal”.
Este novo impulso da consciência torna o “Zé ninguém” Camilo Mortágua, mais convincente para a intervenção cívica. Torna-se então militante da esquerda venezuelana, agente de ligações, “correio da revolução” no contacto entre vários grupos, assumindo assim uma postura internacionalista: “não importa onde se nasce, o que importa é onde se luta”.
Assim, dentro de Camilo Mortágua, o “Zé ninguém” transpirava optimismo e confiança no futuro enquanto o “Come e cala” apenas ouvia passivamente, sem nada fazer e o “Batata”, medroso como era, inventava dificuldades à vontade de mudança. O debate que Camilo Mortágua descreve nas páginas 166/167 é uma reflexão entre a polaridade conservadora e a polaridade transformadora que perpassa constantemente na realidade social e em nós próprios:
“Dizia o Batata: Não percebo porquê tanta algazarra! Estão a ver, estamos na mesma que antes, a correr de um lado para o outro, até com menos clientes, a fugir entre os automóveis, sujeitos a apanhar com uma porta pelas trombas e ainda por cima a ser insultados, sem tempo para descansar como pessoas normais... Não mudou nada... Temos tanta liberdade como a que tínhamos!
Respondia o Zé Ninguém em tom irado: Cala-te murcão... És mesmo matarroano das berças... Então já não te recordas do cimento frio e dos duches gelados que nos obrigavam a apanhar lá naquela choldra para onde nos levavam às vezes quando algum polícia de trânsito lhe apetecia embirrar com a gente? Já não te lembras do medo com que andávamos sempre tremendo com que alguns “amigos polícias” se lembrasse de mandar roubar-nos as motos? Não te interessa nada que os nossos amigos venezuelanos andassem sempre receosos de dizer o que pensavam com medo de serem denunciados à “Seguridade” do facínora Estrada, que nos vissem como estrangeiros e inimigos exploradores, que nunca quisessem conviver connosco e nos julgassem simples mercenários de fortuna; e agora te abracem e falem espontaneamente das suas vidas, com alegria e sem verem em ti um delator e um falso amigo? Não te sentes mais confiante em ti e nos outros sem as ameaças arbitrárias de uma repressão sem lei nem justiça? Não vês que a liberdade... não sentes... a liberdade... não te dás conta que estamos aqui, só nós e mais ninguém, absolutamente senhores do nosso destino, a decidir para onde voar? Acorda... porra! Temos que voar para ir alargando o espaço em que as pessoas possam exercer livremente os seus destinos!... Vamos mas é entrar na campanha a favor do Fidel em vez de estar para aqui com conversas vãs...
O “Come e cala”: “Olha o gajo! Está feito político... Estamos feitos!”
Estes debates interiores construídos com uma oralidade espontânea, são etapa narrativa em que as andanças para a liberdade o levam a uma experiência cívica que abre o caminho a uma maior politização constante que o levará a participar no assalto ao Santa Maria, nos preparativos da “acção directa” dirigida por Henrique Galvão que veio a espantar o mundo pela coragem e exemplaridade política.
Camilo Mortágua não deixa porém de referir as dificuldades e contradições nessa luta, mas ressalta sobretudo neste Capítulo V, Santa Maria – Santa Liberdade, a positividade da sua narrativa:
“Porque, as nossas, são simples andanças de andar e dançar, de ir e vir, de passar para lá e para cá, procurando caminhos, umas vezes sérios, outras vezes parecendo que não, preferimos ater-nos a falar daqueles raros momentos em que fomos capazes de rir de nós próprios... acreditando que o riso espanta o medo e, sem medo... a liberdade é possível! (Coisa que tínhamos compreendido muito antes do Umberto Eco escrever).
É certo que éramos menos de meia dúzia de pobretanas, superiormente mobilizados e motivados para combates indefinidos. Um “D. Quixote” rodeado de “Sanchos Panças”, apeados e desarmados. Mas... “o sonho comanda a vida”, e tínhamos uma grande capacidade de sonhar, embora não fôssemos ainda capazes, por essa altura, de ousar rasgar e ultrapassar certos preconceitos cuja observação nos paralisava.
... Andávamos de seca para meca, constantemente à procura de encontrar o “divino unto” para olear a nossa emperrada máquina.”
Mortágua descreve depois, com realismo e simplicidade, e até mesmo modéstia, o assalto. O texto, cuja oralidade está sempre presente, revela-nos o fim de festa daquela aventura que tanto entusiasmo provocou. Em 21 de Janeiro de 1961 teve lugar o assalto ao paquete Santa Maria onde se proporcionou a maior denúncia feita contra a ditadura salazarista.
Camilo Mortágua descreve assim essa operação:
“Quando se ouviram os primeiros tiros, deu-me vontade de não estar ali. Com a sala da rádio e a casa das máquinas controladas, corremos para a ponte de comando a ver o que se tinha passado. Junto à escada que dá acesso à ponte de comando, apercebi-me duma pessoa deitada de barriga para baixo a esvair-se em sangue... Merda, de repente deixei de ver as estrelas e o céu ficou preto! Fazia frio... muito frio! Ergui a cabeça e segui em frente atrás dos companheiros, lá em cima, na ponte do comando, tudo tinha acabado. Disseram-me que havia um ferido que eu não vi e iniciaram-se as negociações entre o Galvão e o comandante Maia, já relatadas em muitas outras ocasiões.
Pronto, para já o Santa Maria estava sob o nosso controle... e agora?
... O que eu temia não se verificou. Não houve reacção descontrolada, os 600 passageiros aceitaram os factos com absoluta serenidade e até, bastantes, mesmo emigrantes espanhóis e portugueses, com algum entusiasmo. Os americanos e de outras nacionalidades que viajavam como turistas, a esses tinha-lhes saído um grande prémio, um bónus inesperado para as suas férias.
Durante o assalto tinha-me tocado descer à casa das máquinas, ao caldeirão onde se gerava toda a energia que fazia mover aquela “aldeia libertada” dos nossos territórios de além-mar. Lá, alimentando as fornalhas, tronco nu, fui encontrar uma equipa de cabo-verdianos, homens já bem entrados em idade, a quem explicámos o que tinha acontecido. Olharam-nos com olhos de espanto... quedos e curvados... por momentos ficamos assim a comunicar com os olhos, mudos... de repente, ergueram-se aprumados, bateram-nos a pala e disseram: - Até que enfim que é dia de festa!”
A operação terminou a 4 de Fevereiro de 1961 quando o navio foi entregue por Henrique Galvão às autoridades brasileiras. Humberto Delgado, no Brasil, a 27 de Fevereiro apoia a convocação da ONU para discutir a situação de guerra em Angola e repudia a posição colonialista do governo português.
O Santa Maria, Santa Liberdade, tornara-se assim um grande símbolo de esperança para a luta anti-salazarista.
Jacinto Rodrigues
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publicado por luardejaneiro
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