Má Despesa Pública. “O secretismo na gestão do dinheiro público envenena a democracia”
Quando pedem esclarecimentos aos gestores públicos, são frequentemente tratados como intrusos
Começam a ser incómodos para muita gente. Contam que, quando pedem esclarecimentos a entidades públicas sobre as despesas que fazem, com frequência são ignorados ou tratados como intrusos impertinentes. Não se conformam com a impunidade dos responsáveis por gestão pública danosa. Insistem que este é um exercício de democracia. E consideram que na raiz da corrupção que dizem grassar nas autarquias e empresas do Estado está o sentimento de impunidade dos gestores públicos, que se consideram “uma casta à parte”.
Qual é o vosso objectivo, com este tipo de investigação?
Rui Marques: Há outras pessoas a fazer o que nós fazemos, de forma avulsa. A nossa intenção é apenas despertar consciência cívica, fomentar o escrutínio, pois o escrutínio leva à responsabilização. Entendemos ser um exercício de cidadania que todos devíamos fazer. Os nossos responsáveis públicos têm de perceber que podem vir a ser responsabilizados.
Porquê essa vossa preocupação
em vigiar a despesa pública?
Bárbara Rosa: Limitámo-nos a reunir um conjunto de informação pública que espelha vários exemplos, quer de negligência quer de incompetência gestionária dos responsáveis públicos, de uma forma geral. Esta é a causa principal porque estamos onde estamos: se temos a terceira visita do FMI, não é por acaso.
Quais são as vossas fontes?
BR: O portal Base e o Diário da República. Consultamos diariamente o portal dos contratos públicos, pois é lá que são publicadas, por obrigação legal, as despesas de algumas das entidades públicas, e constatamos que há um recurso constante e permanente ao contrato por ajuste directo. Como o nome diz, este é um tipo de contrato através do qual o ente público contrata directamente uma entidade, sem consultar outros eventuais concorrentes, o que omite o princípio concorrencial, que é um dos princípios da contratação pública. O ajuste directo é legalmente permitido, mas tem um tecto de valor e muitas das vezes ou o tecto não é respeitado ou há a velha artimanha de dividir o montante até ao limite máximo, fazendo vários ajustes directos.
No livro, há vários exemplos rotulados “Isto parece a Grécia”. Somos iguais?
RM: Isto parece a Grécia, pela forma como os decisores políticos lidam com o dinheiro público – temos muitos pontos em comum. Quando impera o discurso do “não há dinheiro para nada” continuamos a ver, no portal Base e no Diário da República, quer contratos quer ajustes directos de obras e de projectos em que é bastante difícil perceber a relação custo-benefício. Há autarquias a construir museus, centros culturais, casas da cultura, casas da juventude. E não é só ao nível das autarquias – é transversal. Isto é o tipo de equipamento que já existe em número suficiente e que sabemos se torna depois difícil de rentabilizar. Além das obras públicas – de grande ou pequena dimensão – terem sempre derrapagens, raramente é tido em conta o custo que têm após estarem construídas – o custo de manutenção, o custo com pessoal, um encargo que existe por inerência à obra e vem a seguir.
É ao nível das autarquias que o dinheiro público é mais esbanjado?
BR: O sector empresarial do Estado é muito problemático. Há uma constatação técnica do Tribunal de Contas ao nível do sector empresarial do Estado. As pessoas falam muito das autarquias, porque as autarquias são-nos mais próximas e é muito mais fácil chegar à nossa assembleia de freguesia ou assembleia municipal e sabermos o que se faz com o nosso dinheiro. Ou até porque nos deparamos com obras desnecessárias. Mas o sector empresarial do Estado é problemático, pois não está tão próximo da população. E tem competências especiais. As PPP são outorgadas através de empresas do Estado como, por exemplo, as rodoviárias, através da Estradas de Portugal.
É nos ajustes directos que se escondem os piores exemplos?
BR: O recurso frequente ao ajuste directo obsta à transparência. O Tribunal de Contas analisou o sector empresarial do Estado em 2007, um relatório só especificamente sobre ajustes directos. Das 69 empresas públicas analisadas, no total, e só nesse ano, adjudicaram 102,7 milhões de euros de despesas, sendo que 70% das adjudicações foram feitas com recurso ao ajuste directo e só em menos de 2,7% dos casos foi consultado mais de um prestador de serviços. Isto espelha bem a forma de actuação do sector empresarial do Estado, quer violando regras e princípios como o da concorrência, quer ao nível da transparência e da relação custo-benefício. O problema do ajuste directo é que nunca sabemos – só podemos imaginar – se não seria possível fazer o mesmo por um preço muito mais baixo. Não sabemos, porque não há esse termo de comparação. O Estado não zela pelo interesse público quando recorre amiúde a este tipo de contratos.
E não haverá nisto tudo também demasiado Estado?
RM: O que vemos muitas vezes é a sobreposição de tarefas, de entidades diferentes do Estado. Por exemplo, para a área de desporto de uma cidade, temos a junta de freguesia, a câmara, o governo civil, a administração central, com um Estado que quer chegar a todo o lado. A dada altura, através de ajustes directos, apercebemo-nos de que a Parque Escolar estava a preparar um museu da Educação. Nunca tínhamos ouvido falar de nada semelhante. Pesquisámos sites de notícias e não encontrávamos nada e não havia sequer nenhum ministro a falar deste projecto. Ou seja, uma empresa pública decidiu criar um museu da Educação. O projecto não avançou, mas o facto de se ter pensado nisso é sintomático.
E nos contratos de concurso público?
BR: Aí, à partida, estão cumpridas todas as regras da contratação pública, só que temos outro problema prático: não há obra pública sem derrapagem entre o preço inicialmente previsto e o final. Esta derrapagem orçamental tem de ser justificada contratualmente e entram em jogo os famosos “trabalhos a mais”, que no decurso das empreitadas de obras públicas se consideram necessários, na maior parte das vezes, por negligência técnica de quem contrata e de quem executa – o Tribunal de Contas refere isto explicitamente. Mas os responsáveis continuam a ignorar estas recomendações.
Onde está a negligência, no caso dos “trabalhos a mais”?
BR: Nos concursos públicos normalmente ganha quem preenche os requisitos, mas estes “trabalhos a mais” traduzem--se num aumento do preço. Não obstante existir um limite, um tecto, para o recurso ao ajuste directo, acontece geralmente, quando as obras estão já em execução, “os trabalhos a mais” serem contratualizados à mesma entidade que ganhou o concurso, por ajuste directo. Podemos tirar daqui a seguinte conclusão: se perante o preço final, com estes “trabalhos a mais”, erros e omissões, deveria ter sido aquela entidade a ganhar o concurso? A lei só permite, aliás, “trabalhos a mais” em situações que não era possível prever. Muitas das vezes há negligência técnica – o que o próprio Tribunal de Contas identifica – pegam numa obra com um estudo, com toda a morosidade do processo de contratação, e há casos em que são iniciadas obras com base em projectos que foram feitos dez anos antes. Qualquer leigo sabe prever que uma obra não é exequível em tais condições e ao contratarmos para tal projecto estamos a enganar-nos a todos. Há muita negligência na gestão dos dinheiros públicos, como se não se sentissem de todo obrigados a agir com responsabilidade.
Parece-vos que há um problema de impunidade?
BR: O que permite que isto aconteça há décadas é a impunidade. E só é assim, por falta de vontade. A gestão danosa está contemplada no código penal e não é assim tão subjectiva como se sugere. Basta pegar nos relatórios do TC. É evidente que há gestão danosa nas obras públicas. E há falta de cultura cívica na sociedade portuguesa. O cidadão vai votar, quando vai, e acha que termina ali a obrigação. Nas escolas, ou noutros espaços públicos, não é fomentado o discurso cívico e é claro que o poder público não quer transparência. A administração pública quer viver como tem vivido durante muitos anos, no secretismo. Temos um quadro legal, que começa ao nível da Constituição portuguesa, que passa pelo código de procedimento administrativo, que rege a actuação dos entes públicos, de uma forma geral, e vai a uma lei específica, que é a lei de acesso aos documentos administrativos – lei que é violada todos os dias. Nesta matéria, nem precisamos de mais leis, necessitamos apenas que sejam cumpridas. Algumas leis são feitas para complicar. E quem é o legislador por excelência? A Assembleia da República. E vemos a leviandade com que muitas vezes são feitas as leis.
O Tribunal de Contas é ignorado?
BR: O Tribunal de Contas é muito ignorado neste país, seja pela sociedade civil seja pelos agentes públicos, inclusivamente pelo próprio Ministério Público, que é o detentor da acção penal e que poderia prestar muitas vezes outra atenção às conclusões da instituição. A única penalização que o TC pode aplicar, quando há gestão irresponsável, são coimas. Mas os visados nesta matéria, condenados por má gestão pública em exercício de cargos públicos, não pagam as coimas que lhes são aplicadas, em manifesto desrespeito pelo órgão de soberania.
Este tipo de situações é suficientemente investigado pelo Ministério Público?
BR: Chegam-nos também denúncias que vêem aqui ou ali indícios de um contrato feito à medida para determinada empresa. Mas isso já não nos cabe a nós provar. Em muitas situações, as entidades responsáveis em matéria penal deviam interessar-se e investigar. São muitos os casos em que se percebe este tipo de actuação, mas que teriam de ser investigados e não são. Basta ver que existem empresas que ganham concursos de obras públicas que também derrapam, não garantem maior eficiência na execução dos trabalhos, inclusive a nível financeiro, e existem outras entidades mais pequenas que são cumpridoras. Temos o caso do portal das comunidades portuguesas – uma empresa que foi criada e no mesmo ano ganhou dois ajustes directos, cada um de 47 mil euros, para fazer traduções nesse site. O próprio portal não tem tradução integral de inglês. Conseguimos contar as palavras que estão traduzidas para inglês. Essa empresa encerrou depois desse serviço. O Ministério Público deveria ter investigado e não investigou.
Quais os casos mais sintomáticos?
BR: São muitos. Há o caso de Oeiras, que gastou 1,25 milhões de euros numa escultura. Ou o caso de Lamas, uma freguesia do Sátão, que tem 2722 habitantes, e que abriu concurso público para um parque infantil orçado em 744 mil euros, custo inicial. Mas não são só as autarquias que fazem este tipo de despesa. Veja as fundações – são um enigma. Sendo públicas, funcionam com dinheiro nosso, mas têm estatuto de direito privado, pelo que não são obrigadas à publicitação da despesa nem à transparência devida na sua aplicação. Como não há a moralidade que seria de esperar no exercício da coisa pública, já que a lei não os obriga, não revelam. As fundações são uma óptima forma de permitir que certas entidades públicas gastem sem controlo, sem escrutínio. A nível contabilístico das contas do Estado também. Mas isso foi uma operação contabilística e jurídica de um determinado governo que decidiu passar uma série de institutos públicos a fundações.
Há casos que nunca vieram a lume?
BR: Nunca ninguém falou da Comissão Nacional para o Centenário da República. Essa comissão, para além de ter um orçamento de dez milhões de euros, que é uma coisa que não se entende, num país que não é pobre desde ontem, foi criada em 2008, as comemorações tiveram lugar em 2009 – e foi uma festarola. Os livros editados chegaram a pouquíssimos cidadãos e gastou quase 100 mil euros num torneio de golfe para o centenário da República. Um torneio de golfe! E outros 100 mil euros só para o seu site. Um site por 100 mil euros? E há o caso do site do Douro Valley, que promove a região do Douro – custou 600 mil euros. Tivemos emails de vários técnicos especialistas em multimédia que nos explicaram que o site não tem uma série de funcionalidades que qualquer portal de promoção turística deve ter. Os próprios técnicos disseram que este valor é inacreditável, que mesmo que tivesse tudo o que há de melhor não custaria nunca 600 mil euros.
Permanece muita informação não divulgada?
RM: O capítulo respeitante às autarquias é bastante extenso. Como são obrigadas a tornar público tudo o que sejam ajustes directos, é fácil apercebermo-nos dos casos mais caricatos. Quando decidimos abordar os institutos públicos, empresas públicas e fundações, apercebemo- -nos que, enquanto cidadãos comuns, não tínhamos acesso a essa informação. É inacreditável que nem o governo soubesse quantas fundações existem, qual a sua real utilidade e que benefícios fiscais têm. É tudo muito pouco transparente – no caso das juntas de freguesia, por exemplo, quase todas têm um site, mas não disponibilizam facilmente um orçamento detalhado. E temos o caso paradigmático da Presidência da República, que no seu site apresenta relatórios de grande detalhe, sobre a eficiência técnica do edifício da Presidência, mas não apresenta nenhum tipo de informação sobre o orçamento. Estas parecem ser opções nada inocentes, e são transversais a tudo o que seja Estado.
Há informação que não vos foi facultada?
RM: Neste trabalho colocámo-nos sempre na posição do cidadão comum – partimos sempre daquilo que está acessível a qualquer cidadão e que pode ser confirmado por qualquer pessoa. E há outros níveis a que não é possível aceder de modo nenhum. No capítulo das fundações, por exemplo, debruçámo-nos um pouco sobre as responsáveis pela Capital Europeia da Juventude e a Capital Europeia da Cultura, em Braga e Guimarães. No caso da Capital Europeia da Juventude, um bocadinho diferente da de Guimarães, muito simplesmente não conseguimos encontrar um orçamento detalhado. Como foi seguido o mecanismo de organizar o evento através de uma fundação, torna-se ainda mais opaco o acesso a detalhes orçamentais.
E há casos antigos que estão esquecidos, apesar de andarmos a pagá-los?
BR: Um caso antigo que já está esquecido, um dos recordes nas derrapagens das obras públicas, é a Casa da Música. A derrapagem atingiu os 200%. Ainda andamos a pagá-la. Era para ser a obra emblemática da Capital Europeia da Cultura e não estava pronta na data das comemorações. Fala-se das derrapagens das obras públicas no momento em que estas ocorrem mas depressa ficam esquecidas, sem qualquer consequência para os responsáveis pela gestão danosa. Continua a não haver mudança a este nível. Enquanto esta atitude persistir, as obras continuam a fazer-se em quantidade mas falha a qualidade na sua execução. É um problema que temos de combater independentemente de sermos ricos ou pobres.
E quanto ao despesismo dos anos que se seguiram ao despoletar da crise?
RM: O ano 2009, ano de três eleições, foi um ano muito profícuo em festas e eventos e tudo o que enchia o olho. Tudo o que seja valores associados a eventos foram montantes milionários. E temos a convicção que, como para o ano vamos ter eleições autárquicas, mesmo havendo limitações de dinheiro, haverá muitas autarquias a fazer obras de fachada, arranjos urbanísticos e as tais construções dos centros culturais, que são obras que nunca têm fim. Já vemos sinais disso no Diário da República.
Acontece a inutilidade da despesa ser camuflada na linguagem que descreve os contratos?
RM: Os centros culturais têm muitos outros nomes. Podem ser chamados incubadoras de empresas, ou ter outros nomes sonantes, mas o fim é sempre o mesmo: são construídos edifícios que ficam vazios e sem utilidade.
Com a troika e a crise reconhecida, continuam a surgir casos de aplicação incorrecta dos dinheiros públicos?
BR: Veja casos concretos: o município de Fronteira decidiu investir 380 mil euros no relvado sintético de uma freguesia com pouco mais de mil habitantes – uma obra anunciada em 2011. Já com a troika cá, a Madeira, na BTL 2011, a Bolsa de Turismo de Lisboa, pagou 35 mil euros a uma agência de manequins só para marcarem presença no stand. O município de Lagoa, no Natal de 2011 gastou 17 mil euros só em chocolates. A câmara de Almada comprou, a meio de 2011, relógios de ouro num valor de 31 mil euros. Isto está enraizado, é cultural. A mudança não vai ocorrer por estar cá a troika e por estarmos paupérrimos, pois é uma questão de mentalidade.
Foi divulgado o relatório de avaliação das fundações. Um relatório transparente?
RM: É incompreensível o tempo que o governo demorou a tornar públicas as transferências que faz para as fundações. Foi um tema bandeira da campanha eleitoral, ninguém sabia sequer dizer quantas fundações existiam no país e o próprio Tribunal de Contas assumiu a sua incapacidade em identificar este universo. Mesmo assim, o relatório agora divulgado é bastante incompleto. Porquê esta opção de divulgar apenas as transferências realizadas entre 2008 e 2010? Porque é que várias instituições que se intitulam de fundações não foram sequer contactadas? Como se explica que o valor patrimonial das fundações se multiplique nos anos seguintes à sua criação? Pelo menos, fica a virtude de se ter ficado a saber de alguns casos caricatos, como o do presidente de uma fundação com acção social a ganhar 20 mil euros/mês ou o da junta de freguesia que criou uma fundação. No livro analisámos vários casos de fundações e logo aí alertámos para coisas tão simples como o facto de as fundações não publicarem nos seus sites os estatutos e os relatórios e contas. Há ainda vários passos que têm de ser dados em nome da transparência, nomeadamente saber, em tempo real e útil, as transferências de dinheiros públicos para estas entidades.
Aconteceu-vos serem acusados de estarem ao serviço de interesses nas vossas denúncias?
RM: Há quem use estratagemas difamatórios, para desviar a atenção. Quando divulgámos que o presidente do INATEL, Vítor Ramalho, tinha pago cinco mil euros por uma entrevista a uma revista, a reacção imediata dele foi dizer que nós estávamos ligados a um grupo interessado na privatização das unidades hoteleiras da fundação. Em nenhum momento admitiu que a despesa foi mau uso do dinheiro público. Não se percebe que, depois de tantas denúncias sobre o INATEL, não tenha havido consequências.
i -Por Nelson Pereira
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