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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Extrato do próximo romance A IMENSA SOLIDÃO DO PROLETARIADO


Uma vez esteve tentado à desintegração total do seu corpo, o suicídio. Foi numa noite de intenso desespero e da lembrança de um episódio passado na guerra colonial.
Com ele foi para essa guerra um soldado, um belo e estranho rapaz. Não sabia o seu nome verdadeiro. Todos lhe chamavam Anjo. Mas, coisa rara, e ao contrário do que sucedia com todos os elementos efeminizados da tropa, os soldados não
perturbavam a vida do Anjo. Havia um recato que os afastava de penetrarem na vida íntima do estranho soldado. Nunca ninguém o viu nu porque ele sempre se desencontrava dos outros nos banhos ou na toilette mais íntima, e dormia sempre com um largo pijama. Mas ali havia um mistério. E o mistério ainda era maior porque a turba, ao contrário do que sucedia a tudo que lhe cheirasse desvio sexual, mantinha em relação a ele um estranho respeito.
Uma noite a verdade foi revelada a Luís.
Tinha ficado de serviço nesse fim-de-semana, no RI20, o maior quartel de Luanda da época colonial. Quase todos os soldados tinham partido para os bares da cidade onde iriam tentar abafar a sua imensa infelicidade.
Luís, no fim do turno, dirigiu-se à camarata para descansar. Antes, e porque o calor tropical o fazia suar abundantemente, decidiu tomar um duche. Dirigiu-se para os balneários e ouviu o ruído da água que saía das torneiras, sinal de que alguém tivera a mesma ideia.
E viu o Anjo nu. O Anjo num corpo belo e estranho. Não podia afirmar que aquele corpo era de um homem ou de uma mulher. Porque era comum aos dois géneros. Os seios eram pequenos e ligeiramente pontiagudos. O sexo era minúsculo e quase desaparecia pela sobreposição das pernas. Mas não era um sexo; eram dois. Um feminino e outro masculino, em miniatura.
Luís tentou lembrar-se de onde conhecia aquele corpo. Ah, sim, de Chelas, do tecto da velha igreja. Lá estava a imagem de um anjo que era em tudo idêntica à do corpo que contemplava. E da mesma forma este Anjo soldado parecia levitar enquanto a água lhe acariciava o corpo.
Luís ajoelhou e o Anjo sorriu, sem vergonha da sua nudez e da forma hermafrodita do seu corpo.
-É neste lugar de homens rudes que mais respeitado sou – disse o Anjo, enquanto levantava Luís da posição de adoração.
Luís estava atarantado e nada dizia. O Anjo continuou:
-Lá na minha terra chamam-me tudo: paneleiro, florzinha, brochista…
Luís ganhou coragem e perguntou:
-Mas, se és um anjo, como podem as pessoas ofender-te?
-Não te esqueças de que sou um anjo terreno. As pessoas adoram os anjos –menos o mais importante deles todos, o anjo da luz, só porque se rebelou… -,aceitam a sua indefinição sexual – as discussões que não fazem sobre o sexo dos anjos!? -, mas desde que eles continuem nesse limbo da memória. Porque, quando um anjo desce à terra e vem viver com os humanos, aí tudo o que era aceite como belo é encarado como deformação…
O Anjo ajudou Luís a despir-se e deu-lhe banho. Depois agarrou-o pela mão e levou-o para a sua cama. Quando a soldadesca regressou das putas, pela madrugada, encontrou-os nus e abraçados, dormindo.
Ao contrário da gritaria que sucedia quando um acto homossexual era presenciado nas casernas, todos guardaram o maior silêncio e um soldado tapou os dois corpos nus com um lençol.
Passados dias formaram companhia e partiram para operações no Norte de Angola, para proteger os bailundos que apanhavam o pouco café das fazendas abandonadas.
A guerrilha esperava por eles e, passados meses, armou-lhes uma emboscada. Luís não se encontrava nesse grupo de combate que foi armadilhado. Mas foi o seu grupo que foi levantar os mortos dessa emboscada, doze.
E ali estava o Anjo caído, retalhado à catanada. Quando Luís lhe tocou sorriu tristemente:
-É hora de partir…
Com lágrimas nos olhos, Luís correu a buscar plasma, sangue artificial, para tentar salvar o amigo, mas quando voltou ao local apenas viu a forma de um corpo no capim. Olhou para o céu e pareceu-lhe ver, numa nuvem, o corpo esplendoroso do Anjo.
Quando foram procurar na secretaria do quartel a documentação do Anjo, para informar a família da sua morte, não havia documentação nenhuma.
Para aguentar o horror daquela imagem dos doze camaradas retalhados pelas catanas da guerrilha andou oito dias seguidos bêbado, e até dormia com uma garrafa de brande para que as recordações o não atormentassem até à loucura. Por isso não podia garantir que o que relembrava do Anjo se passara de verdade, ou se não era um delírio desses oito dias em que, por acção do brande, esteve ausente da vida.
Na hora de tomar uma decisão de partir ou de ficar batalharam na sua mente os dois pilares da sua formação ideológica: o materialismo marxista e o idealismo cristão.
“Não, ficarei; beberei o meu cálice até ao fim.”
E assim fez a síntese das duas teorias.


Extrato do próximo romance A IMENSA SOLIDÃO DO PROLETARIADO


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